quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O Labirinto Perdido. Kate Mosse. «O instante do impacto nunca chega. Os ossos não se partem nas pedras e sílices cinzentos. Em vez disso, Alice cai no chão correndo, e segue aos tropeços por um caminho íngreme»

Cortesia de wikipedia e jdact

Chartres. Norte da França
«(…) Os quatro ajudantes mais graduados deixam as suas posições e se movem para junto da Sacerdotisa. A sua cabeça é inclinada para trás, com delicadeza, e um líquido espesso e doce escorre por entre os seus lábios. É o que esperava, e ele não resiste. Conforme o calor se espalha pelo seu corpo, ele levanta os braços e os seus companheiros ajeitam um manto dourado sobre os seus ombros. Aquelas pessoas estão acostumadas com o ritual, mas mesmo assim ele pode sentir o nervosismo. De repente, ele sente algo como uma tira de ferro em volta do pescoço, apertando a sua traqueia. Suas mãos voam para a própria garganta enquanto ele luta para respirar. Tenta gritar, mas as palavras não vêm. A nota aguda e cortante do sino começa outra vez a ressoar, constante e persistente, submergindo-o. Uma onda de náusea percorre o seu corpo. Ele pensa que vai desmaiar e agarra o objecto na sua mão em busca de conforto, com tanta força que as suas unhas cortam a pele macia da palma da sua mão. A dor intensa o ajuda a não cair. Agora ele entende que as mãos nos seus ombros não são reconfortantes. Não o estão amparando, mas sim segurando-o. Outra onda de náusea o 13 submerge e a pedra parece mover-se e escorregar sob o peso do seu corpo.
Seus olhos estão embaçados e ele não consegue focalizar nada, mas pode ver que a Sacerdotisa está segurando uma faca, embora não tenha ideia de como a lâmina prateada foi parar na sua mão. Tenta se levantar, mas a droga é forte demais e já lhe tirou as forças. Ele não consegue mais controlar os braços e pernas. Non!, tenta gritar, mas é tarde demais. De início, pensa ter levado um soco entre os ombros, só isso. Então uma dor difusa começa a espalhar-se pelo seu corpo. Algo morno e macio escorre lentamente por suas costas. Sem aviso, as mãos o soltam e ele cai para a frente, desabando como uma boneca de pano enquanto o chão parece erguer-se e vir ao seu encontro. Não sente dor quando a sua cabeça bate no chão, cujo contacto na sua pele parece de alguma forma fresco e agradável. Todo o barulho, toda a confusão e medo estão indo embora. As uas pálpebras estremecem e se fecham. Ele não tem mais consciência de nada a não ser da voz dela, que parece vir de muito longe.
Une leçon. Pour tous, ela parece dizer, embora isso não faça sentido. Em seus últimos e entrecortados instantes de consciência, o homem acusado de revelar segredos, condenado por ter falado quando deveria ter ficado calado, segura o cobiçado objecto com força na mão até a sua ligação à vida cessar e o pequeno disco cinza, do tamanho de uma moeda, rolar para o chão. Numa das faces do disco estão inscritas as letras NV. Na outra está gravado um labirinto.

Pic de Soularac. Montes Sabarthés
Por um instante, tudo é silêncio. Então a escuridão se dissolve. Alice não está mais na caverna. Está flutuando num mundo branco, sem gravidade, transparente, pacífico e silencioso. Está livre. Segura. Alice tem a sensação de deslizar para fora do tempo, como se estivesse caindo de uma dimensão para outra. A linha entre passado e presente agora desaparece nesse lugar onde não existe tempo nem espaço. Então, como o alçapão de um cadafalso, Alice sente um súbito puxão, uma queda, e começa a despencar pelo céu aberto, caindo, caindo em direcção à encosta coberta de florestas da montanha. O ar frio silva nos seus ouvidos enquanto ela mergulha, cada vez mais depressa e com mais força, rumo ao chão. O instante do impacto nunca chega. Os ossos não se partem nas pedras e sílices cinzentos. Em vez disso, Alice cai no chão correndo, e segue aos tropeços por um caminho íngreme e irregular no meio da floresta, entre duas colunas de árvores altas. Densas, imponentes, elas se erguem acima dela tornando impossível ver o que há atrás. Rápido demais.
Alice agarra-se aos galhos como se eles pudessem reduzir a velocidade da sua queda, impedir esse voo de cabeça rumo a um lugar desconhecido, mas as suas mãos passam directo pela vegetação como se ela fosse um fantasma ou espírito. As uas mãos arrancam tufos de pequenas folhas, como cabelos numa escova. Ela não pode senti-los, mas a seiva tinge de verde as pontas dos seus dedos. Ela os leva até ao rosto para inalar o seu aroma delicado, acre. Tampouco consegue sentir o seu cheiro. Alice sente uma dor na lateral do abdómen, mas não consegue parar porque há algo atrás dela, se aproximando cada vez mais. O caminho continua muito íngreme sob os seus pés. Pela textura, tem consciência de que raízes secas e pedras substituíram a terra macia, o musgo e os galhos no caminho. Mesmo assim, não há ruído. Nenhum pássaro canta, nenhuma voz chama, não se ouve nada a não ser a sua respiração irregular. O caminho arqueia e se dobra para um lado e para o outro, lançando-a para lá e para cá, até que ela faz uma curva e vê o silencioso muro de chamas que impede a passagem logo adiante». In Kate Mosse, O Labirinto Perdido, Labyrinth, 2005, Publicações dom Quixote, 2006, ISBN 978-972-202-969-8.
                                                                              
Cortesia de PdomQuixote/JDACT