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«(…) Outro se
enganaria, mas não Baltasar, que sempre acorda à mesma hora, muito antes de
nascer o sol, hábito inquieto de soldado, e fica alerta a ver retirar-se
devagar a escuridão de cima das coisas e das pessoas, a sentir aquele grande
alívio que levanta o peito é o suspiro do dia, o primeiro e impreciso traço
grisalho das frinchas, até que um leve rumor acorda Blimunda e outro som começa
e se prolonga, infalível, é Blimunda a
comer o seu pão, e depois que o comeu abre os olhos, vira-se para Baltasar e
descansa a cabeça sobre o ombro dele, ao mesmo tempo que pousa a mão esquerda
no lugar da mão ausente, braço sobre braço, pulso sobre pulso, é a vida, quanto
pode emendando a morte. Mas hoje não será assim. Um dia e outro dia perguntou
Baltasar a Blimunda por que comia todas as manhãs antes de abrir os olhos,
perguntou ao padre Bartolomeu Lourenço que segredo era este, ela respondeu-lhe
uma vez que se acostumara a isso em criança, ele disse que se tratava de um
grande mistério, tão grande que voar faria figura de pequena coisa, comparando.
Hoje se saberá. Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel onde
costuma guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tacteia o
chão, a encherga, mete as mãos por baixo da travesseira, e então ouve Baltasar
dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os
punhos cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por alma de quem
lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou
ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis deitou-lhe
o braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, depois passou-lhe a
perna direita por cima, e assim libertada a mão, quis afastar-lhe os punhos dos
olhos, mas ela tornou a gritar, espavorida, Não me faças isso, e o grito tal
que Baltasar a largou, assustado, quase arrependido da violência, Eu não te
quero fazer mal, só queria saber que mistérios são, Dá-me o pão, e eu digo-te
tudo, Juras, Para que serviriam juras se não bastassem o sim e o não Aí tens,
come, e Baltasar tirou o taleigo de dentro do alforge que lhe servia de
travesseira. Cobrindo o rosto com o antebraço, Blimunda comeu enfim o pão. Mastigava devagar. Quando terminou,
deu um grande suspiro e abriu os olhos. A luz cinzenta do quarto amanheceu de
azul para aqueles lados, assim pensaria Baltasar se tivesse aprendido a pensar
coisas destas, mas melhor que pensar finezas que poderiam servir nas
antecâmaras da corte ou nos palratórios das freiras, foi sentir o calor do seu
próprio sangue quando Blimunda se virou para ele, os olhos agora escuros, e de
repente uma luz verde passando, que importavam agora os segredos, melhor seria
tornar a aprender o que já sabia, o corpo de Blimunda ficará para outra
ocasião, porque esta mulher, tendo prometido, vai cumprir, e diz, Lembras-te da
primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro,
Lembro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste que estavas a ouvir
quando eu te disse que nunca te olharia por dentro. Baltasar não teve tempo de
responder, ainda procurava o sentido das palavras, e outras já se ouviam no
quarto, incríveis, Eu posso olhar por dentro das pessoas. Sete-Sóis soergueu-se
na enxerga, incrédulo, e também inquieto, Estás a mangar comigo, ninguém pode
olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não acredito, Primeiro, quiseste saber,
não descansavas enquanto não soubesses, agora já sabes e dizes que não
acreditas, antes assim, mas daqui para o futuro não me tires o pão, Só acredito
se fores capaz de dizer o que está dentro de mim agora, Não vejo se não estiver
em jejum, além disso fiz promessa de que a ti nunca te veria por dentro, Torno
a dizer que estás a mangar comigo, E eu torno a dizer que é verdade, Como
hei-de ter a certeza, Amanhã não comerei quando acordar, sairemos depois de
casa e eu vou-te dizer o que vir, mas para ti nunca olharei, nem te porás na
minha frente, queres assim, Quero, respondeu Baltasar, mas diz-me que mistério
é este, como foi que te veio esse poder, se não estás a enganar-me, Amanhã
saberás que falo verdade, E não tens medo do Santo Ofício (maldito),
por muito menos têm outros pagado, O meu dom não é heresia, nem é feitiçaria,
os meus olhos são naturais, Mas a tua mãe foi açoitada e degredada por ter
visões e revelações, aprendeste com ela, Não é a mesma coisa, eu só vejo o que
está no mundo, não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas,
não faço passes de mãos, só vejo, Mas persignaste-te com o teu sangue e
fizeste-me com ele uma cruz no peito, se isso não é feitiçaria, Sangue de
virgindade é água de baptismo, soube que o era quando me rompeste, e quando o
senti correr adivinhei os gestos, Que poder é esse teu, Vejo o que está dentro
dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que está por
baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou
em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir,
quem me dera que o não tivesse, Porquê, Porque o que a pele esconde nunca é bom
de ver-se, Mesmo a alma, já viste a alma, Nunca a vi, Talvez a alma não esteja
afinal dentro do corpo, Não sei, nunca a vi, Será porque não se possa ver,
Será, e agora larga-me, tira a perna de cima de mim, que me quero levantar.
Durante todo esse dia, Baltasar
duvidou se tivera tal conversa, ou se a sonhara, ou se, simplesmente, estivera
num sonho de Blimunda. Olhava os grandes animais suspensos dos ganchos de ferro
antes de serem esquartejados, esforçava os olhos, mas não via mais que a carne
opaca, esfolada ou lívida, e quando os pedaços e as postas se espalhavam nas
bancadas ou eram atirados para os pratos das balanças, compreendia que o poder
de Blimunda tinha mais de condenação que de prémio, porque o interior destes
animais não era realmente um gosto para a vista, como não o seria o das pessoas
que vêm à carne, nem o das que a vendem, ou cortam, ou carregam, que é o ofício de Baltasar. Aliás, viu na
guerra o que está vendo aqui, que para averiguar o que dentro há é sempre
preciso um cutelo ou um pelouro, um machado ou o fio duma espada, uma faca ou
uma bala, então se rasga a frágil pele, ainda mais dorida virgindade, os ossos
aparecem, e as tripas, e com este sangue não vale a pena benzer-nos, porque não
é de vida, sim de morte». In José Saramago, Memorial do
Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN
972-21-0026-2.
Cortesia de Caminho/JDACT