sábado, 8 de dezembro de 2018

A Tentação de D. Fernando. Jorge S. Correia. «Tal como o rei e os grandes nobres que o apoiavam, também a peonagem se deixou levar pela onda de entusiamo. Não era para tanto, mas que se havia de fazer?»

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Invasão da Galiza
«(…) Mas será que o Trastâmara assassino não vem a terreiro defender o território galego?, interrogava-se Fernando I com justificada surpresa, em voz alta, para que os mais próximos ouvissem e comentassem. Não vem, senhor!, afirmou o conde Andeiro. Todos na Hispânia vos conhecem. Sabem o cavaleiro que vós sois, temem-vos. Se não o fordes buscar, majestade, ao vosso encontro é que ele não virá. Travestido de uma confiança construída por aduladores, Fernando avançou. Ir em frente não lhe custava, mas ao chegar a Monterrey teve a primeira surpresa. O pueblo não tinha mais do que uma fortaleza mal defendida, com pouca população, incapaz de se defender de um exército inteiro. Mas o que se havia de fazer? Teimosos, não queriam nada com o rei português, uns ingratos que não viam nele o rei elegantíssimo que era. Rejeitam-me? Não querem um rei bem-parecido e de boas maneiras? Preferem um assassino? Pois bem, vamos lá a ver se têm ameias que cheguem para aguentar a força lusitana.
Pelo sim, pelo não, Fernando pediu ao conde Andeiro que parlamentasse com os sitiados. E já estava a ser magnânimo. Oferecia-lhes uma rendição honrosa, isso bastava, porque a outra hipótese era arrasar Monterrey com tudo o que havia lá dentro. Na volta, o conde Andeiro apenas disse que os do castelo preferiam morrer a deixar-se governar por um rei estranho. Estranho? Nem estranho, nem mal acabado, o que eles querem é empatar, deduziu o rei. A indignação do formoso rei não tinha razão de ser. O que os de Monterrey queriam dizer é que ele era estrangeiro, galego não era de certeza. As vossas palavras são ordens que todos respeitaremos, assentiu João Fernandes Andeiro, disposto a expulsar as dúvidas da cabeça do rei, mas, senhor, o que o alcaide quis dizer é que vós sois estrangeiro, não tem nada de pessoal.
Adiante, tomai a dianteira, mandai formar as forças e atacai. Os engenhos do contrapeso começaram a deslocar-se devagar, e quando chegaram à distância de tiro, lançaram os seus pesados pedregulhos contra as portas e as ameias do frágil castelo, começando a partir os cubos e a destapar os sitiados que tentavam com as suas bestas acertar nos combatentes portugueses. Partidos os dentes do castelo, as bastidas (construção de madeira como torre ou castelo mais alto do que a muralha do inimigo, permitindo aos assaltantes desfechar ataques sobre os sitiados escondidos atrás das ameias) logo avançaram até se encostarem às muralhas, num instante despejando dentro do burgo hordas de guerreiros prontos a matar e a pilhar o que por lá houvesse.
A vitória sobre os de Monterrey foi um ápice. Embriagado pelo triunfo insignificante, transformado logo pelos apologistas em uma batalha decisiva, el-rei convenceu-se de que não havia força que o detivesse na sua caminhada triunfal: hoje foi Monterrey, mais à frente e mais longe será Valladolid, até só haver um rei em toda a Hispânia. Viva o nosso rei, viva Portugal! Viva a Galiza!, exultavam com ele uma corja de bajuladores e sanguessugas do erário.
Tal como o rei e os grandes nobres que o apoiavam, também a peonagem se deixou levar pela onda de entusiamo. Não era para tanto, mas que se havia de fazer? A vitória é o oposto da derrota, nisso o rei e toda aquela pantalha tinham razão, pois se fosse ao contrário, se em vez de vencer, fracassassem, seria uma humilhação. Por isso, os quatro amigos da taberna da Mariamem, lídimos representantes das classes menos favorecidas, regalavam-se à sombra dos choupos frondosos nas margens da ribeira, comendo uma galinha que surripiaram com facilidade. Sim, era uma guerra cansativa, está bem de ver, pois andar de um lado para o outro com a tralha às costas, sempre disponíveis para acorrer às requisições dos seus senhores, custava muito, mas tinha as suas compensações, entre elas os soldos que entrariam no bornal, e como naquele dia, comer um acepipe sem penas». In Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-344-8.

Cortesia de CdoAutor/JDACT