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A
Letra Pitagórica
«(…) Falasse baixo! Não lhe
fizesse perguntas a que não podia responder, e impaciente levantava-se.
Ouviram-se passos no lajedo exterior. Também já de pé, insisti em voz sumida,
nervosa: que sabeis de mim? Diogo entrava. Eram horas de repousarmos, dizia frei
Gaspar. Que o seguíssemos. Ia mostrar-nos onde dormirmos. Não consegui por muito
tempo conciliar o sono. Receava mais uma vez não tornar a ver frei Gaspar, mas
de manhã, depois das orações e da missa, o velho frade esperava-nos para nos
levar junto do prior do convento. Era este um homem alto, robusto, cabeça a alargar
em triângulo a partir do queixo, nariz comprido, cabelo espetado como escova
cortado muito curto, grisalho nas têmporas, olhos vivos, atentos, voz fanhosa.
Tinha fama de grande filósofo. Pairava nas alturas do pensamento abstrato:
notava-se o esforço que fazia para descer daqueles paramos até às coisas
insignificantes e caducas que nós éramos, mas como era sábio conhecia-se também
a si próprio e, dando conta do esforço que fazia, tornava-se então humilde,
simples e dizia coisas graciosas. Afirmavam os que o conheciam de perto, e eu
ali o confirmei, que eram essas as únicas ocasiões em que se lhe abria o
semblante num sorriso que lhe transfigurava o aspecto severo. Ajoelhando
levemente, beijei-lhe o anel, tal como Diogo, sentindo a resistência que a sua
mão fazia na minha a contrariar um costume de que se não sentia digno.
Dir-se-ia que até isso havia sido
objecto de exame do seu espírito alertado. Deus vos abençoe. Como eu gostava, frei
Gaspar, disse ele, virando-se para o velho irmão, de ter a idade e o sangue na
guelra destes bons noviços, o irmão Diogo e o irmão João, que espero o sejam
muito breve. Mas já não tenho pernas para tais andanças!... Não sei como,
encontrei-me a dizer-lhe: em vez de pernas, tem vossa paternidade as asas do
pensamento que permitem os vôos altos das águias, ao passo que nós rastejamos
como pobres vermes... Era demasiado retórica a frase e postiça. Verduras! Frei
Gaspar ficou interdito, Diogo corou como uma romã, o prior todavia olhou-me com
um sorriso luminoso: falava eu por metáfora? Prouvesse a Deus fosse verdade o
que eu dizia. De qualquer maneira agradecia-me a palavra amável. Aliás, quem
falava como eu não era de forma alguma um bicho rastejante. Deixasse-lhe
contudo dar-me um conselho que lhe estava ditando a experiência. Eu pensava e
pensar era o começo do ..., do tormento. Eu sei, concluí eu. Olhou-me fundo nos
olhos, a espreitar-me os pensamentos íntimos. Tão novo falais assim!... É cedo,
é muito cedo ! Sursum corda,
irmão! Rezarei por vós. Frei Gaspar, curai de que lhes não falte nada,
dizia o prior, como se já outros pensamentos o solicitassem. Quando partis?
Ficai o tempo que quiserdes... Dou-vos a bênção.
Com a mão direita erguida, o anel
a rebrilhar, traçou no ar a cruz, fitando-me acintemente: benedíco vos, in
nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. E quando, depois de inclinados termos
proferido o amem, levantámos as cabeças, já só o vimos de costas a desaparecer
na umbreira de uma porta. Ficamos ali especados, com o indefinido sentimento,
eu mais que os outros dois, de que algo de não certo, de inadequado, de não
coadunado com a situação, se esfumava pairando no ar. Frei Gaspar cortava o
enleio: Bem! Já tínhamos a bênção do prior. Decerto queríamos agora visitar a
vila. Era digna de se ver. Tinha pena de não poder servir-nos de guia, pois não
poderia aguentar a nossa agilidade no andar, senão ainda nos mostraria algumas
curiosidades daquelas que falam da vetustez dessas pedras... Mas eu interrompia,
discordando. Muito gratos ficaríamos a frei Gaspar, não era verdade, irmão
Diogo?, se nos quisesse acompanhar na visita. Quanto à nossa destreza de
andarilhos, prometíamos que o travão da curiosidade lhe abateria a fervura...
Irmão Diogo anuía. Frei Gaspar não quis perder a oportunidade, havia tanto
tempo madrasta, segundo dizia, de um pouco de liberdade.
É esta
uma terra realenga desde Afonso V, vai ele dizendo enquanto caminhamos pela
sombra dos choupos que marginam o Asseca». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT