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(…) Acho que vai ser maravilhoso, Tatie,
disse minha mulher. Ela possuía um rosto suavemente modelado e tanto os olhos
como a boca se lhe riam ante qualquer decisão como se se tratasse de ricos presentes
que eu lhe oferecesse. Quando é que partimos? Quando quiseres. Ai, quero ir já!
Não sabes isso? Talvez, quando regressarmos, o tempo já esteja bonito e límpido.
Desde que esteja límpido, embora faça frio, o tempo pode ser óptimo. Com certeza,
respondeu ela. Que boa lembrança, essa que tiveste, de irmos viajar!
Quando regressámos, o tempo ia lindo e luminoso, embora frio.
A cidade já se adaptara ao Inverno. Havia boa madeira à venda na floresta: o
carvão vendia-se mesmo em frente da nossa casa e havia braseiras à porta de
muitos dos bons cafés, de maneira que até nas esplanadas se estava quente. Também
o nosso apartamento se mantinha quente e alegre. Queimávamos boulets, que eram blocos de pó de carvão
moldados em forma de ovo, na fogueira de lenha, e, nas ruas, a luz do Inverno
enchia-se de beleza. Nessa altura, já estávamos habituados a ver as árvores
nuas perfilarem-se contra o céu. Passeávamos então, com um vento cortante e
fino, pelas ruelas de saibro dos jardins do Luxemburgo, que a chuva acabava de
lavar. As árvores, desde que nos havíamos habituado a vê-las despidas de
folhas, assemelhavam-se a esculturas; o vento do Inverno soprava sobre a superfície
dos lagos, fazendo saltar a água das fontes à claridade luminosa do dia. Depois
da estada nas montanhas, todas as distâncias nos pareciam curtas.
Devido
à mudança de altitude, nem reparava na altura das colinas, a não ser com
satisfação, e o subir até ao último andar do hotel onde trabalhava, num quarto
que deitava para todos os telhados e chaminés do quarteirão, constituía um prazer.
A lareira funcionava com boa tiragem no meu quarto, onde, depois de este bem
aquecido, dava gosto trabalhar. Levava para o quarto, em cartuchos de papel,
tangerinas e castanhas assadas; descascava e comia as laranjas pequenas que se
assemelhavam a tangerinas e cujas cascas e sementes atirava ao lume; comia
igualmente as castanhas assadas quando tinha fome. E a verdade é que o passear
ao frio e o trabalho me faziam sempre fome. Tinha no quarto uma garrafa de kirsch que havíamos trazido das montanhas e
do qual bebia sempre que estava a chegar ao fim de um conto ou quando o meu dia
de trabalho se encontrava prestes a terminar. Quando me parecia ter já
trabalhado o suficiente, guardava o caderno ou o papel na gaveta da mesa e
metia na algibeira as tangerinas que tivessem sobrado. Se assim não fizesse,
elas gelariam no quarto durante a noite.
Era
maravilhoso descer os compridos lanços da minha escada com a consciência de que
o trabalho me correra bem. Tinha por hábito trabalhar sempre até apurar alguma
coisa de válido e parava logo que sabia o que a seguir viria a acontecer.
Assim, tinha a certeza de poder continuar no dia seguinte. Mas, às vezes,
quando começava um novo conto e não conseguia dar-lhe andamento, tinha por hábito
sentar-me diante do lume, a espremer a casca das laranjitas na direcção das
chamas e a admirar o esguicho azul que elas provocavam Outras vezes, punha-me
de pé e, enquanto olhava os telhados de Paris, ia pensando: não te apoquentes.
Sempre conseguiste escrever e agora há-de acontecer o mesmo. Tudo o que tens a
fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreve a frase mais verdadeira que
souberes. Então, escrevia uma frase verdadeira e, a partir dela, lá arrancava.
Aquilo era fácil afinal, porque havia sempre uma frase verdadeira que eu
conhecia ou lera ou ouvira a alguém. Se eu começasse a burilar frases, ou a
escrever como alguém que estivesse a apresentar um tema ou a fazer uma introdução
a qualquer assunto, já sabia que teria de eliminar todos esses floreados, de
rejeitar tudo para recomeçar com a primeira afirmação simples e directa que
escrevera. Foi lá no alto, nesse quarto, que decidi escrever um conto acerca de
cada caso que eu conhecesse. Era o que eu tentava fazer sempre que escrevia,
processo esse que constituía uma excelente e severa disciplina.
Foi
também nesse quarto que aprendi a não pensar em coisa alguma que andasse a
escrever, desde o momento em que largasse o trabalho, até ao dia seguinte.
Dessa forma, o meu subconsciente continuaria a trabalhar nele e, ao mesmo
tempo, eu ia escutando o que as outras pessoas diziam, ia observando tudo, e
assim esperava ir continuando a minha aprendizagem. Punha-me a ler para não
pensar no meu trabalho; se não, seria incapaz de prosseguir com ele. Descer as
escadas após um trabalho bem feito, e isso requeria tanta sorte como disciplina,
provocava-me uma sensação maravilhosa e
deixava-me livre para passear por Paris à minha vontade». In Ernest
Hemingway, Paris é uma Festa, 1960, Edição Livros do Brasil, Lisboa, Colecção
Dois Mundos, 2000, ISBN 978-145-165-540-7.
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