quinta-feira, 5 de setembro de 2019

A Bicicleta que Fugiu dos Alemães. Domingos Amaral. «Após nova baforada no charuto, explicou a logística da partida, já impecavelmente organizada, como, aliás, tudo na sua longa carreira naquela irmandade internacional»

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Paris, 3 de Junho de 1940
«(…) Ao voltar-se, a minha prima viu a ponta acesa de um charuto. Era Madre Mary,. Nascida há sessenta e quatro anos em Montreal, no Canadá francês, chamava-se Mary em vez de Marie, uma imposição do pai anglófilo e autoritário, que a mãe francófona aceitara antes de falecer devido a complicações após o parto. Esta orfandade materna da Madre, bem como a má relação com o pai, gerou em Carol um claro efeito de identificação, pois também se dava mal com o progenitor e perdera a mãe três anos antes.  Não consegues dormir?, perguntou Madre Mary. As olheiras cavadas da religiosa abafavam os seus famosos olhos verdes e beliscavam a harmonia de um conjunto ternurento, composto por uma cara arredondada, umas bochechas fofas e uns lábios grossos. Vem comigo, ordenou. Mal entraram no gabinete dela, a minha prima reparou nas caixas de papelão abertas, idênticas às que se enchiam em tempo de mudanças. Inquieta, viu-as repletas de livros, mas nada perguntou. A freira dirigiu-se à secretária e desdobrou um mapa da Europa, enquanto dizia ser impossível manter o convento a funcionar, pois as bombas alemãs iam lançar o pavor nas freiras. Já não queriam ficar em Paris, agora será impossível.
Carol sentiu uma dor na barriga ao escutar o anúncio de que em breve iriam evacuar Saint-Sulpice. Permanecer seria um perigo, declarou a Madre, debruçando-se sobre o mapa e pousando o indicador da mão direita na Holanda. Após uma curta passa no charuto, deslizou a ponta da unha e recordou o avanço dos panzers nazis, iniciado com a invasão dos Países Baixos e complementado com a da Bélgica e, por fim, a de França. A travessia das Ardenas foi uma manobra de mestre, constatou Madre Mary. A vertiginosa estratégia alemã encurralara os exércitos britânicos e franceses, obrigados a recuar até ao canal da Mancha. Estão cercados em Dunquerque há semanas, e os ingleses tentam resgatar o maior número possível de soldados. Churchill, o novo primeiro-ministro do Reino Unido, com quem a superiora de Saint-Sulpice sentia afinidade por gostarem ambos de charutos cubanos, requisitara todas as embarcações em condições de navegar para salvar as suas desesperadas tropas. Milhares de soldados tinham regressado a Inglaterra em barcos de recreio ou de pescadores, mas muitos haviam sido mortos nas praias. Uma desgraça e uma humilhação!, protestou a religiosa.
Nunca esperara uma vitória nazi tão fácil e garantiu, desolada, que Dunquerque iria cair no dia seguinte. Bem relacionada com o que restava do frágil Governo da França, recebera pelo telefone informações fiáveis: o exército e a armada franceses, esgotados e desmoralizados, iriam capitular. Resta-nos a Linha Maginot. Os dedos de Madre Mary sobrevoaram o mapa até pousarem na fronteira entre a França e a Alemanha, onde, anos antes, nascera uma linha de fortificações destinada a impedir a invasão nazi. Milhares de canhões franceses apontavam ao inimigo e a propaganda destilada pelos jornais de Paris garantia uma defesa inexpugnável da pátria, mas a experiente Madre duvidava. Os nazis estão parados em frente da Maginot há semanas... Madre Mary nunca se fiara na drôle de guerre, os meses de espera passiva por combates que não surgiam, geradora nos gauleses da sensação tola de que aquela farsa jamais se tornaria uma guerra real. Porém, Hitler não brincava aos discursos. Vão atingir a Maginot onde menos esperamos, intuiu a Madre superiora de Saint-Sulpice.
Após nova baforada no charuto, explicou a logística da partida, já impecavelmente organizada, como, aliás, tudo na sua longa carreira naquela irmandade internacional, iniciada na ilha Martinica, onde ganhara alguns hábitos peculiares, como o gosto pela sesta, pelo rum e pelos charutos cubanos; e depois continuada na Argélia, país onde provara a sua competência mais uma década até lhe ser oferecido o posto mais elevado da congregação, a direcção do Saint-Sulpice, em Paris, um merecido prémio para quem fora no colégio uma menina de óptimo e durante a carreira uma irmã completar, que tanto sabia mandar como obedecer. No presente e sob a sua supervisão, além de um vasto programa de caridade, encontravam-se um convento habitado por uma centena de religiosas, a residencial onde Carol dormia e uma famosa igreja parisiense, diariamente aberta ao público». In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.

Cortesia CdasLetras/JDACT