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«(…) De
manhã, enquanto a mulata dormia anestesiada de anis, rosnando de quando em
quando palavras de sanzala, eu procurava emprego nas redondezas a fim de
satisfazer os juros dementes do gordo: oferecia-me de aprendiz no martelar
satânico, de sangue nas têmporas, das oficinas de serralharia, ou de marçano
nos talhos de Bácoros esventrados, de pestanas loiras de menina; tentava provar
a capatazes de bóina aos quadrados que era tão dextro como os cabo-verdianos
das obras a furar à picareta o alcatrão das ruas, ou convencer os inspectores
sanitários, de bafo de lula doente, que governava melhor os urinóis municipais
do que os reformados trôpegos que despejam cartuchinhos de soda cáustica em
regos de pedra onde uma espuma leveda e borbulha. A pouco e pouco, com o garoto
a trotar-lhe nos fundilhos, alargou a sua busca inútil a zonas mais distantes
da cidade, perto do bairro da lepra onde as carroças da Câmara moíam os eixos
todo o dia; propunha-se para desocupar as valas comuns dos cemitérios das
cartilagens incómodas dos mortos; queria à viva força, de boné de pala nos
olhos, guardar cachalotes de automóveis nos parques junto ao rio, patrulhado
pelas escunas do reyno, a vê-los transformarem-se lentamente em corvetas;
esquadrinhava os becos do Cais do Sodré, mendigando trabalho aos porteiros-valetes-de-espadas
das boites de put…; almoçava bolos de arroz em leitarias solitárias com uma
única mosca a teimar sobre o balcão; passava um chupa-chupa de tangerina ao
miúdo e trepava aos miradoiros a impingir-se de guia para traduzir aos alemães
o panorama de capoeiras humildes e de miséria tranquila de Lixboa e os gatos
que lambiam o sol que lhes poisava na garupa; solicitava, quase de graça, o
emprego de levar bofetadas dos mímicos do Coliseu à medida que os trapezistas
rodopiavam a cintilar na cúpula, desprendendo nuvenzinhas virginais de talco; e
acabava por tornar, desalentado, à Residencial, por roçar um beijo distraído na
mulata que descia a colina coberta de escamas sumptuosas, por atravessar o
vestíbulo onde o lumbago do senhor Francisco Xavier, padroeiro de Setúbal,
gania como um metrónomo na cadeira de baloiço, e por se sentar finalmente nos
degraus ao lado do navegador ébrio, que riscava no chão, com um pauzinho, a
latitude provável das ilhas por achar.
Da escada assistiam não apenas à
chegada da noite que diluía as gaiolas e ressuscitava os cães mas à partida do
bando de tágides de lamê que a mãe do indiano enxotava, pela erva da encosta
abaixo, na direcção das discotecas de Arroios, da fachada da Morgue e do lago
de patos do Campo de Santana, deusas magras aos tropeços nos seixos e nas
raízes da terra perseguidas pelos filhos de umbigo ao léu que as chamavam, que
desistiam, que entravam na pensão como os cachorros regressam, derrotados, aos
portões das quintas, e a minha esposa cambaleava entre elas no exagero dos
saltos, estropiando sem remédio os sapatos doirados que o gordo me obrigava a
pagar para aumentar a dívida e a manter eternamente ligada aos seus impiedosos
compromissos de chulo, de forma que o meu débito crescia sem cessar com a força
dos pêlos do nariz e das plantas sem nome dos telhados, até que o fiscal da
Companhia das Águas me somou o dinheiro em atraso com os olhos de quem conta
draga-minas no horizonte, Faz tanto, e me aconselhou, a mamar da aguardente da
garrafa, A única solução é espetares uma faca na barriga desse preto que com o
corpinho da tua patroa já comprou dois prédios na Morais Soares e o trespasse
de uma mercearia na Penha de França, o camelo cada vez mais rico e eu reduzido
aos meus cálculos de ilhas e aos meus diários inúteis num reyno onde os
marinheiros se coçam, desempregados, nas mesas de bilhar, nos cinemas
pornográficos e nas esplanadas dos cafés, à espera que o Infante escreva de
Sagres e os mande à cata de arquipélagos inexistentes à deriva na desmedida do
mar. Afastávamos a medo os reposteiros da sala e ele logo Descubram-me os
Açores, e a gente descobria-os, Encontrem-me a Madeira, e a gente, que remédio,
encontrava-a, Encalhem-me no Brasil e tragam-mo cá antes que um veneziano
idiota o leve para Itália, e a gente trouxe-lhe ao Algarbe, onde ceava no meio
de uma roda de physicos e bispos, esse monstro esquisito de carnavais,
papagaios e cangaço, de tal jeito que ao vê-lo, assim estupidamente enorme,
arrastado por dezassete galés e mil e quatrocentos pares de bois, isto sem
contar as mulas e os escravos mouros, se apartou dos seus e nos perguntou
baixinho, ca hera homem avisado e de bom entendimento, Para que quero eu tal
coisa se já tenho chatices que me sobram?, de modo que nos ordenou que o puséssemos,
durante a hora da sesta, onde o tínhamos achado, sem conservar um papagaio
sequer, e nos esquecêssemos logo da pelagra e dos mortos que padecêramos para
lho dar, e ao pajem que interrogou, apontando a janela, Senhor, que nação é?,
respondeu sem hesitar, na sua voz rouca de almirante ancorado que era um banco
de areia da baixa-mar, meu palerma que nem o litoral conheces, e com muita
Ave-Maria e muito trabalho obedecemos ao que nos disse, ou seja puxar o Brasil
de volta para a América e quem viesse depois que se tramasse com aquilo, só que
não conseguimos conter os papagaios inverosímeis que voavam aos gritos nos
largos de Lixboa na agitação colorida das toalhas de banho». In
António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN
978-972-205-995-4.
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