jdact
Do
Sonho e da Guerra
«(…)
O rei Dinis I, esse, ah, meu amigo!, era diferente. E vede lá, dos dois o que maior
dor me provocou foi João. Apesar de Dinis I ter, inclusive, pretendido assassinar-me.
Dinis I é mais novo ainda, menos um ano que eu. Foi sempre um menino querido
para o pai que via nos filhos de dona Inês o futuro da sua terra, a consumação dos
seus miríficos sonhos. Desde pequeno foi-lhe concedido um rendimento que, à morre
do pai, rondava as dez mil libras. Altivo, também extremamente pertinaz e violento,
tem como aio um homem de nobre carácter, é certo, mas que lhe incutiu na alma um
veneno indestrutível, o ódio: Gil Vasques Resende. Já homem, escolheu para conselheiro
aquele que foi a alma e o cérebro do assassínio de sua própria mãe: o ressabiado
Diogo Lopes Pacheco. Aprendi ao longo da minha vida que em política não há bem ou
mal mas resultados. Se foi isso que o Pacheco ensinou a meu cunhado Dinis, estaria
certo, mas não compreendo como rum homem que se diz nobre e de honestos sentimentos
pode compactuar e comer à mesma mesa com outro que barbaramente retirou a vida àquela
que o pôs aqui neste mundo. Talvez eu esteja errada, frei Juan, e os desígnios
do mundo e de Deus, que me ultrapassam, os justifiquem mas não posso, em
consciência, aceitar. Disseram-me, e posso até vos dizer quem, a minha camareira
Maria Peres e o Guedelha, que foi médico meu e do rei meu marido, que Dinis, para
se livrar de mim, como em Lisboa não conseguiu, quando Fernando e eu resolvemos
casar, até contratou os serviços de uma dessas mulheres que se dedicam à bruxaria...
Ela, a tal mulher, uma judia pobre enrolada num manto apardado, de baixa qualidade,
é evidente, e que os mortos espoliava para lhes vender os tristes panos,
derretera chumbo e lançara-o em água fria para com ele conseguir uma figura de
mulher que, depois, pendurou num pedaço de cordel e sobre ela fez muitos sinais,
proferiu encantamentos e disse orações numa estranha língua que ninguém percebia.
O sortilégio só resultou alguns anos depois... Sempre conheci judeus. De resto
existe sempre na Casa Real um ou vários. Tive-os ao meu serviço na fazenda,
como criados e como médicos. O Guedelha de que lhe falei for médico, ilustre,
mas, como todos, não conseguia milagres. Fernando não se curou. O irmão do judeu,
chamado José, era um dos mais belos homens que conheci. De elevada estatura,
branco, aquela tez pálida e os lábios vermelhos, o cabelo acobreado, uma figura
no todo cativante e majestosa. É escritor e poeta e, dizem, filósofo. O Guedelha
lá tem sobrevivido. É agora o médico do Mestre de Avis, do rei de Portugal.
Em Lisboa
os judeus vivem entre as barbacãs da cerca que o rei Afonso construiu, o terceiro
de nome, e a Porta do Mar. Ainda chamam a essa zona o bairro de Gibraltar, da Vila
Nova. Ainda me recordo das badaladas do sino da Oração, ao lusco-fusco, quando
os judeus e os mouros, que viviam e vivem a Oriente de S. Domingos e na base do
monte de Alfela, acorriam de rodo o lado onde labutavam e mercadejavam com os cristãos,
para o sossego de suas casas, isolados da população cristã. Recordo-os e à cidade,
que sempre me odiou por obra e graça dos burgueses e de meus cunhados. A cidade
que se lança sobre o rio como uma barca branca, saída de tempos passados, ruidosa
e viva, cheia de luz e que eu pensei amar quando a olhei pela primeira vez. Há momentos
especiais da nossa memória que, despertos, são um livro, uma vida. E chegam a
ser tão fortes, perfeitos e poderosos que acabam por criar um tempo próprio, libertos
de nós, como se não nos pertencessem. Vêmo-los ali, na nossa frente, quase intocados,
não fora a saudade. Vi Lisboa pela primeira vez só um ano depois de me ter casado,
em 1407. Só conheci Fernando em casa de sua irmã, a Infanta, em Agosto de 1409,
quando fui visitar minha irmã, então já viúva e também mãe de um filho». In
Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998,
Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.
Cortesia
de Presença/JDACT