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O
Deserto-Floresta no Ocidente Medieval
«(…)
O deserto de Paulo, Primeiro Eremita, é uma montanha, uma caverna, uma palmeira
e uma fonte. Ele vive aí, revestido de folhas de palmeira e alimentado, todos
os dias, de um meio pão que lhe é trazido por um corvo. Quando morre, dois
leões saem correndo do fundo do deserto, com as suas longas jubas que lhes esvoaçam
no pescoço. Depois de terem acariciado o corpo do velho com as suas caudas,
enquanto emitem altos rugidos à maneira de oração fúnebre, escavam-lhe uma sepultura
com as suas garras e nela o sepultam. Depois, abanando as orelhas e com a
cabeça baixa, vão lamber os pés e as mãos de Antão, que assiste estupefacto à cena
e os abençoa. O modelo eremítico de Antão é muito semelhante ao de Paulo.
Também ele, na última parte da sua vida, depois dos sessenta anos, vive na
montanha, numa gruta, num lugar que os viajantes modernos descrevem como particularmente
árido e austero, e que a Vida de Atanásio apresenta como um paraíso terrestre.
Também ele vive dos frutos de uma palmeira e dos pães que lhe trazem sarracenos-homens
negros, como negra era a ave de Paulo. Mas a primeira parte da vida eremitíca de
Antão consistiu num longo combate contra as visões de monstros e de demónios aterradores
que o assaltam. É o teatro da sombra das tentações.
Estes
temas são inesgotavelmente retornados, multiplicados, embelezados em duas
grandes recolhas hagiográficas: Consulationes,
redigidas no início do século V por João Cassiano, que viveu entre os eremitas
orientais, e Vidas dos Padres, um complexo conjunto de histórias traduzidas em grego,
que começa a circular no Ocidente no mesmo período. Como se disse, o deserto
dos monges egípcios apresenta-se como o lugar do maravilhoso, por excelência; o
monge encontra lá o demónio de um modo que pode dizer-se inevitável, porque o demónio,
no deserto, está em sua casa; mas o monge encontra também no deserto, de certo
modo, o Deus que lá veio procurar. O eremitismo ocidental, à procura de desertos
geográficos e espirituais. parece ter preferido, num primeiro momento, as ilhas.
É o caso no Mediterrâneo, de Lérins. onde a noção de deserto oscila entre uma
concepção paradisíaca e uma concepção de prova. É um lugar de libertação para os
que correm para a liberdade da solidão, o porto da salvação, como um canto do paraíso,
segundo Cesário Arles.
Na visão
paradisíaca do deserto há que não esquecer a familiaridade dos que lá vivem, ou
para lá se retiram, com os animais selvagens. É o modelo de Antão e de Paulo,
que, à falta de leões no Ocidente, faz do urso, do veado, do esquilo, os amigos
e os interlocutores dos eremitas. De S. Columbano pôde dizer-se: quer em Luxeuil
quer em Bobbio, manifestou sempre para com os animais uma simpatia quase franciscana.
S. Godrico, que morreu em 1170, tendo-se retirado para viver na solidão de Finchdale,
perto de Durham, acolhe na sua cela os coelhos e as lebres perseguidos pelos caçadores.
É o deserto asilo, o refúgio no refúgio. O imaginário romanesco prescindirá da zoologia
e fará de um leão o companheiro de Yvain. um S. Jerónimo cortês, no romance de Chrétien
de Troyes. No seu Elogio do Deserto,
o aristocrático Euquério de Lião, que se retira para Lérins entre 412 e 420.
depois de ter evocado todos os episódios famosos do Antigo e do Novo Testamento
que tiveram lugar no deserto (eremus = desertum,
precisa ele), declara que o deserto monástico é o lugar de todos os carismas e de
todas as teofanias. O ingresso no deserto é encarado, segundo uma expressão de S.
Jerónimo, como um segundo baptismo». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il
quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e
o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN
978-972-44-1563-5.
Cortesia
de E70/JDACT