domingo, 17 de janeiro de 2016

Da Sedução. Pablo Picasso. Bertolt Brecht. «Manhã de Junho ardente; uma encosta escalvada, seca, deserta e nua, à beira duma estrada. Terra ingrata. Onde a urze a custo desabrocha, bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha»

jdact e picasso
Canção da viúva apaixonada
«Ai, sei, nunca o deveria admitir
que toda eu tremo quando lhe sinto a mão
ai, como tal pôde advir
que rezo a Deus pela sedução
ai, cem cavalos não me arrastariam ao pecado
não fosse ele por mim tão desejado.

Se tanto contra amor me escudei
era afinal o escudo de quem divisa
que perante ele de camisa, eu sei
serei saqueada até à camisa
como se ele então atendesse ao meu brado!
Não fosse ele por mim tão desejado!

Não creio ser ele digno de mim
será mesmo amor que tem por mim?
Devorado o meu tesouro em festim
jogara ao lixo a travessa no fim?
Ai, sei porque foi meu escudo tão fechado:
não fosse ele por mim tão desejado!

Tivesse eu de juízo três vinténs
não teria acedido ao que ele me pediu
mas ter-lhe-ia esmurrado os acéns
quando demais se abeirou, como se viu.
Ai, queria que ele fosse para o diabo!
(Não fosse ele por mim tão desejado)»


Canção da inocência maculada ao dobrar a roupa branca
O que minha mãe me disse
verdade não pode ser.
Ela disse: não há água que lave a nódoa
se a pureza se perder.
Não é verdade comigo
e também não é com o linho
nisso o rio é bom amigo
põe logo tudo limpinho.

Aos onze fui pecadora
como é mulher perdida
só quando fiz os catorze
abandonei essa vida
Já estava o linho encardido
no rio foi mergulhado
no cesto está agora virgem
como se nunca aflorado.

Eu já era anjo caído
antes de homem conhecer.
Bradava aos céus, Babilónia
escarlate podem crer.
No rio o linho em rondas
enxaguado ao de leve
sente no beijar das ondas:
fico branco como a neve.

Quando me abraçou o meu primeiro
e eu o abracei a ele
senti que do peito e do ventre
o mau instinto se expele.
assim se passa com o linho
assim comigo se passou
corre a água em torvelinho
e o sujo grita: aqui estou!

Mas quando os outros vieram
ano mau não teve fim.
Deram-me nomes que eram
nomes de coisa ruim.
Com poupança e privação
não há mulher que se aguente.
Está na caixa o linho em vão
e encardido se sente.

E veio outro outra vez
num ano que outro era.
E vi, com tudo ao revés
que eu outra me conhecera.
Mergulha-o no rio, agita-o!
Há lá sol, há vento, há cloro!
Oferece-o, exercita-o:
fica fresco como novo!

Muito ainda, sei, pode vir
ate estar tudo acabado.
Mas se não se lhe deu uso
o linho foi desperdiçado.
Quando já está pelo fio
não há rio que o lave
leva-o em farrapos consigo
esse é o fim que lhe cabe».
Poemas de Bertolt Brecht, in ‘Da Sedução

In Bertolt Brecht, Da Sedução, Poemas Eróticos, Gravuras de Pablo Picasso, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2004, ISBN 972-53-0018-1.

Cortesia da EBizâncio/JDACT