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«Quando
as perguntas que trazemos valem mais do que as respostas provisórias que
encontramos»
A
Leste do Paraíso
«(…)
Em relação à história de Abel e Caim, o primeiro fratricídio, convém verificar
a origem etimológica dos nomes dos personagens. Abel provém do hebraico hebel, que significa sopro ou vapor;
Caim deriva de qenar, que quer dizer
comprar. Abel é o nómada, o transumante, o pastor; Caim é o sedentário, o
agricultor, o que compra e vende, o dono da terra. Nesta história, com uma
evidente configuração etiológica, temos a memória de uma transição violenta
entre as sociedades transumantes e as sociedades de tipo agrário. E temos,
sobretudo, a narrativa da fraternidade descrita como um imperativo ético (mesmo
que violável), e não simplesmente como um dado da natureza. Na história dramática
de Caim e Abel é-nos dito que o projecto ético, o projecto fraterno, não é uma
imposição do sangue, pois o próprio sangue se pode voltar contra o seu sangue.
Os irmãos podem até matar-se. Mas a fraternidade é uma decisão e um projecto ao
alcance do Homem. É curioso o diálogo que Deus tem com Caim, no capítulo 4 do Livro
do Génesis: … ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta dos frutos
da terra; por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as suas
gorduras; o Senhor olhou com agrado para Abel e para a sua oferta, mas não olhou
com agrado para Caim nem para a sua oferta; Caim ficou muito irritado e o rosto
transtornou-se. O Senhor disse a Caim: … porque estás zangado e de rosto abatido?
Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se procederes mal, o pecado
deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te; cuidado, pois ele tem muita inclinação
para ti, mas tu deves / podes (timshel)
dominá-lo.
O belíssimo
romance de John Steinbeck, A Leste do Paraíso, pega nesta palavra que l)eus
dirige a Caim: … timshel, tu deves / podes.
O final da primeira parte do romance desenvolve uma pesquisa talmúdica sobre o sentido
desta expressão. O verbo hebraico timshel
é traduzido, nas Bíblias mais correntes, por tu deves, mas John Steinbeck,
partindo da argumentação rabínica, propõe que se leia tu podes. E desenvolve
esta ideia em algumas páginas extraordinárias. Ao Homem em confronto com o Mal,
transtornado a ponto de eliminar o seu próprio irmão, Deus não diz: vou retirar-te
a liberdade, vou condicionar-te para que isso não mais aconteça. Antes afirma:
tu podes vencer o Mal. O Mal aparece como um desafio e, quando se leem estes
textos bíblicos, nomeadamente os das origens, percebemos que há complexidade. Não
somos colocados perante uma moral codificada, mas no interior dinâmico de uma
moral narrativa. O Bem e o Mal não são uma inevitabilidade, mas constituem decisões
éticas. E perguntamo-nos: como pode o desgostado Caim não matar Abel, se lhe
dedica uma inveja mortífera, se sente o despeito, se todos os seus direitos de filho
mais velho acabam por ser relativizados por uma preferência aparentemente caprichosa
de Deus? Tudo lhe dá razão, é verdade, mas a razão de Caim não constitui um direito
de eliminar o irmão, porque Deus lhe diz uma palavra inesperada: tu podes (timshel) dominar o mal». In
José Tolentino Mendonça, O Hipopótamo de Deus, Paulinas Editora, Prior O
Hipopótamo de Deus. José Tolentino Mendonça. Prior Velho, 2013, ISBN
978-989-673-325-4.
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