segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Cortes. Tetralogia Lusitana. Almeida Faria. «… trópicos e então terá de desertar a curto prazo ou, se for classificado entre os três melhores, ou quatro, qualquer quartel de cá, onde será instrutor de atiruenses como ele»

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«(…) André, recenseado há quatro anos, recensaído de Máfrica onde deixou dois ciclos como instruendo antiguerrilha na temida especialidade de, que o poupe a sorte, atirador de infantaria, aguarda por estes dias a decisão da selecção, no vertente caso colocação segundo dados do centro de estudos psicotécnicos do exército transmitidos aos serviços mecanográficos do exército que enviarão saber ao destinatário o que espera: trópicos e então terá de desertar a curto prazo ou, se for classificado entre os três melhores, ou quatro, qualquer quartel de cá, onde será instrutor de atiruenses como ele, amanuenses do tiro. Passará três anos mais a marchar, a estar especado diante de formaturas obtusas de atenção companhia olhar à direita à esquerda alinhar de esquerda em linha atenção batalhão sentido atenção pelotão descansar à vontade. Desmotivados guerreiros marimbando-se prá guerra e prá G3, arma destinada à execução do tiro individual, eficaz até aos 400 metros, podendo utilizar-se no corpo a corpo quando se lhe adapta o sabre-baioneta (modelo com guarda-mão de baquelite ou madeira), pode ainda utilizar-se, quando o modelo em questão apresenta bipé e guarda-mão metálico, como arma de apoio colectivo de determinada unidade, é automática, de cano fixo, funcionando por acção indirecta de gases (os gases exercem acção na culatra, por intermédio da base do invólucro), também executando tiro simples (tiro a tiro), alcance máximo 4000 metros, alcance útil 400 metros, alcance prático 500 metros, velocidade inicial 700 a 800 metros por segundo, cadência de tiro 550 a 600 por minuto, caso haja bala, o que só sucedia na carreira de tiro onde, diante de brancos alvos, depois de estarem deitados no chão coberto de cápsulas, lhes davam as munições, não fosse algum mais afoito lembrar-se de usar a mira contra chefes detestados, aspirantes-aspirinas sabujos dos superiores, alferes e tenentes e por aí acima até ao comandante da escola, figura avistada ao longe, muito escutada à saída-entrada na porta-de-armas pelos toques especiais do corneteiro da casa-de-armas ou sentinela ou lá como se chamava. André resistiu sem sucesso àquela trampa de rigidez emperrante, ler e escrever tornaram-se complicadas operações depois dum par de semanas metido na engrenagem de andar a toque-de-caixa desde o acordar com ecos da trombeta fantástica de juízo final percorrendo corredores abobadados próprios para mancebos se perderem nos primeiros tempos, nesse ex-convento transformado em caserna como quase todos os mosteiros donde expulsaram frades para lá meter militares e daí certa semelhança entre eles. Houve quem desertasse levando dentro da mala a G3 desmontada: tapa-chamas e lança-granadas, anel de ligação, extractor, mola do extractor, roletes da culatra, suporte superior para o zarelho da bandoleira, fixador do guarda-mão, punho do manobrador, peça do comando de travamento, detentor da cabeça da culatra, manga do ponto-de-mira, caixa da culatra, fundo da mesma e armação para o punho, punheta para isto tudo e mais para quem fabrica armas». In Almeida Faria, Cortes, Editorial Caminho, o Campo da Palavra, Lisboa, 1986.

Cortesia de Caminho/JDACT