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Uma viagem pela Coreia do Norte
«(…) À hora marcada, o comboio partiu.
Mesmo depois de ganhar balanço, seguia tão lentamente que, muitas vezes,
parecia mesmo que ia parar. Passava por cenas não muito diferentes daquelas que
tinha visto nas semanas anteriores. As pessoas que estavam a cavar os campos endireitavam
o tronco e ficavam a contemplar o comboio grande, a sua importância. As
crianças corriam, tentando acompanhar a velocidade da máquina, desfiando um
novelo estridente de entusiasmo. O comboio apitava quase sem parar, como se
quisesse dizer alguma coisa importante mas a garganta não funcionasse e só
fosse capaz daquele vagido rouco. Os americanos que viajaram connosco não
puderam ir de comboio, foram obrigados a ir de avião. Não entendi o motivo. Não
passamos por nada que, naquele momento, nos fosse desconhecido e que fizesse
sentido esconder do olhar dos americanos ou, se houve, não vi. Mas os três
americanos que viajaram connosco tiveram de apanhar um avião directo para
Pequim. Já todos sabíamos que não podíamos tirar fotografias durante a viagem.
Não era preciso perguntar, tinha sido sempre assim. Quando nos deslocávamos,
nunca se podia fotografar. Era fácil ouvir na cabeça a voz da guia a
repetir-nos dezenas de vezes por dia, com sotaque coreano: No pictures,
please. Mas o comboio deslizava com tanto vagar, era uma despedida tão
lenta e tão longa. Eu ia sentado na cama, a fazer o caminho de costas e, por
isso, quando alguma coisa aparecia na janela, só a podia ver a afastar-se,
irremediável e irreversível, a afastar-se. Seria preciso uma insensibilidade
completa à nostalgia para ser capaz de lhe resistir naquelas condições. Tirei
algumas fotografias. Porque estariam dois chineses a bater num peixe seco com
uma garrafa vazia de cerveja? Ao atravessar o corredor de várias carruagens,
cruzei-me com chineses a palitarem os dentes, a jogarem cartas, a dormirem ou a
cortarem as unhas. Na maioria dos compartimentos, havia caixas de plástico
abertas com todo o tipo de comidas. Os chineses estavam quase sempre descalços.
Tinham quase sempre a planta dos pés a descamar. Até à carruagem-restaurante,
só passei por estrangeiros: alguns ocidentais que iam na mesma viagem que eu, e
que conhecia, e muitos chineses, homens de negócios, em trabalho, habituados
àquela viagem. Para ver uma carruagem com coreanos, precisei de atravessar
várias, depois a carruagem-restaurante e, por fim, espreitar por uma pequena
janela baça: com pouca iluminação, entre paredes castanhas, atravessada por
filas de bancos compridos, ocupados por dezenas de pessoas carregadas de
bagagem; e a fotografia de Kim Il-sung ao lado da fotografia de Kim Jong-il,
muito sérios, lá ao fundo, no topo. Fitas garridas de flores de plástico, com
folhas de plástico, atravessavam uma das paredes da carruagem-restaurante. Ou
porque tinham calor, ou porque não se queriam sujar, ou porque os fazia sentir
mais descontraídos, os militares tinham os botões do uniforme abertos e,
enquanto comiam, ficavam apenas com o branco da camisola interior a tapar-lhes
o peito. Depois de comerem, podiam adormecer no lugar onde estavam sentados.
Esse era o caso de um que dormia com a cabeça e os braços largados sobre uma
mesa, muito bêbado, a cheirar a bêbado, com o cotovelo dentro de um pratinho
com pepinos às rodelas. Às vezes, resmungava sozinho e continuava a dormir. Os
homens das outras mesas olhavam para ele e riam-se. Se o tentavam acordar, ele
dizia umas palavras enroladas, riam-se de novo e deixavam-no estar. Só
insistiram mesmo em acordá-lo quando chegaram três estrangeiros que viajavam no
meu grupo e que não tinham onde se sentar. Ele ia para resmungar, mas
explicaram-lhe baixinho, ao ouvido, e ele levantou-se imediatamente e, sem
protestos, saiu a cambalear. Os estrangeiros podiam comer por cinco euros uma
refeição morna que era trazida em muitos pratinhos: pratinho de frango
desfiado, pratinho de kimchi, pratinho de vegetais cozidos, tigela de
arroz branco etc. A bebida era paga à parte e nunca havia troco que chegasse.
As contas eram acertadas com garrafas de água ou com pastilhas, cortadas à
tesoura de lâminas de chiclete. Eram pastilhas velhas, moles, que se desfaziam.
A carruagem-restaurante tinha grandes janelas, com cortinas feias, mas
estimadas, arranjadinhas. Então, podia estar a acertar com uma porção de arroz
na boca quando via uma passagem de nível, devagar, na janela. Invariavelmente,
o guarda estava em sentido, como uma estátua a suportar a passagem do comboio,
com o olhar imóvel num ponto e uma bandeirinha amarela enrolada, esticada à sua
frente. As estações, onde o comboio parava ou não, tinham sempre uma enorme
fotografia de Kim Il-sung no ponto mais alto. Essas fotografias ficavam no
lugar onde me parecia que, normalmente, deveria estar o relógio da estação.
Assim, era como se Kim Il-sung medisse o tempo. Na estação de Sinuiju, o tempo
parecia suspenso. Regressou à sua velocidade quando o segundo guarda saiu. E voltei
com o olhar ao interior do compartimento. E voltou o silêncio, marcado ainda
pela memória do som repetido do comboio a avançar pelos carris, o ritmo. O
guarda continuou a ver o passaporte e, com um sotaque que mantinha apenas os
traços essenciais da palavra, disse: Portugal». In José Luís Peixoto, Dentro do
Segredo, Quetzal Editores, Língua Comum, 2012, ISBN 978-989-722-060-9.
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