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Prólogo
«Do ponto de vista artístico, o reinado de João V foi suficientemente
longo, rico e diversificado para permitir a confluência de correntes de pensamento
tão opostas como o Barroco e o Iluminismo, que nele coincidiram em fases também
opostas: o primeiro atingindo o seu declínio enquanto o segundo despontava já
com a característica agressividade do novo. No que diz respeito à literatura, e
apesar dos inegáveis sintomas do seu ocaso, o estilo barroco, nessa sua etapa
final, ainda deu origem a algumas obras de verdadeira apoteose de todo um tesouro
de saber e de experiência que se despedem numa espectacular explosão de beleza.
Quando se desenha já no horizonte a iminência do inutilia truncat, num
último momento do que se poderia chamar o carpe diem das formas
opulentas, assiste-se ainda a um derradeiro mergulho no prazer do excesso, e a
um derradeiro brado dos ditames da Contra-Reforma. O teatro de Sóror Maria do
Céu, publicado durante o reinado de João V, pode bem ser considerado como uma
espécie de epítome desse fim de época do Barroco português na sua vertente contrarreformista,
culminância tardia dum estilo e duma maneira de conceber o mundo que iriam em
breve ser destronados pela implantação das novas tendências racionalistas.
Da sua produção teatral conhecem-se actualmente nove peças, todas
publicadas na primeira metade do século XVIII, mas não obstante estarem disponíveis
na Biblioteca Nacional, não consta que alguma vez tenham sido representadas no
nosso século, nem tão pouco comentadas (ou até talvez lidas) pela maior parte
dos estudiosos da literatura portuguesa. A explicação para esse facto é
simples: o teatro produzido por autores portugueses no período barroco (e
não só no reinado de João V) deve ser a área da história da nossa literatura
menos conhecida e estudada. Ora sabendo-se, como se sabe, que, durante esse
cerca de século e meio em que hoje se situa o Barroco português na literatura,
a produção dramática em vários géneros foi considerável, como explicar esse
desinteresse, que quase só abre excepção para o Fidalgo Aprendiz e para
as obras de António José Silva? A razão desse desinteresse é conhecida: a
quase totalidade desse teatro está escrita em castelhano ou em latim. Mas,
fora das obras citadas, mesmo o que se julga ser uma insignificante parte do teatro
barroco escrito em português (entremezes, etc.) só há bem pouco começou a
merecer a atenção de alguns estudiosos.
Quanto a nós, à justificação do desinteresse pelo nosso teatro dessa
época por motivo da língua (ou línguas) em que foi predominantemente escrito, deve
acrescentar-se o anátema que desde a crítica neoclássica tem pesado entre nós
sobre o estilo barroco, e sobretudo o desconhecimento material de quase toda
essa produção, pois dessas obras conhecem-se, na maior parte dos casos, apenas
referências bibliográficas que não foram confirmadas por levantamentos
sistemáticos. Portanto, enquanto não for feito um levantamento exaustivo dessa
produção e não forem ultrapassadas as dificuldades com o estilo e com a língua,
será difícil atingir-se um conhecimento suficientemente aprofundado e, sem ele,
não se poderá fazer um juízo de conjunto que seja válido. A nossa tradução e
apresentação dos cinco Autos que constituem o Triunfo do Rosário de
Sóror Maria do Céu é um contributo no sentido de chamar a atenção, não só para
a obra em si, mas para o teatro dos autores portugueses dessa época. Estes
cinco autos, bem como as outras peças de Sóror Maria do Céu, foram publicados
em Lisboa em castelhano e, por isso, constam tanto da História do Teatro
Espanhol como da História do Teatro Português.
Em 1981, o teatro desta autora portuguesa foi objecto dum breve mas
notável estudo do lusófilo José Ares Montes, que o comparou ao de Calderón de
la Barca e ao de Sor Juana Inés de La Cruz. O Triunfo do Rosário, ponto
culminante na extensa obra dessa magnífica escritora, integra-se perfeitamente
no conjunto da sua produção em prosa e em verso, quer na temática quer no
estilo, já que toda ela gira à volta dos problemas centrais da salvação da alma
e dos meios para a atingir. Do mesmo modo que Calderón de la Barca, no seu
teatro alegórico, Sóror Maria do Céu faz o seu sermão artístico,
integrando-se assim no quadro mental que produziu aquela cultura dirigida que
Maravall definiu como característica do período barroco. De facto, a afincada
insistência posta na propagação dos princípios da Fé e na observância do culto
que, destinados a salvar o Homem, fundamentam a política da Igreja
contrarreformista, encontra-se na obra de Sóror Maria do Céu, como na de outros
escritores seus coetâneos. Mas a obra de Sóror Maria do Céu excede em muito os
limites duma arte ao serviço da religião, impondo-se, para além da mensagem
edificante, como exemplo duma criatividade esplêndida servida por uma segura
arte da escrita. Todos estes aspectos convergem nos cinco Autos do Triunfo
do Rosário produzindo um conjunto
que não deixará de impressionar todos os que forem sensíveis à sua
qualidade artística, mesmo que o não sejam já à sua mensagem ideológica. Cremos
bem que estas obras, sendo paradigmáticas duma visão do mundo que já não é a
nossa, de qualquer modo fazem parte duma herança cultural que nos compete
estimar e defender. [...]» In Ana Hatherly, Notas sobre O Triunfo do Rosário, Lisboa,
Quimera, 1992, Fundação Calouste Gulbenkian, Literatura de Conventos, Autoria
Feminina, Halp 32, 2005.
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