quarta-feira, 16 de abril de 2025

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Coisa que me não parece curial. Quê? Afinal, porque o prendestes? De que o acusais? Ele é réu de que crime?»

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O Sósia

«(…) Parece que a Senhoria procedeu assim a instigação do embaixador de Espanha. E como poderia o embaixador de Espanha saber?, perguntou frei Estêvão. Nem quero pensar, disse frei Crisóstomo com ar grave, que entre nós haja um traidor. Pode lá ser!, exclamou Pimentel levando a mão ao punhal. Teria de se haver comigo. E comigo, disse Pessoa. Tens razão, Pimentel, secundou Nuno Costa. Não pode ser. Talvez, antes, tenha havido inconfidência saída de casa do arcebispo... E lançava aos companheiros um olhar sagaz. Vou à Senhoria, disse Frei Estêvão. Hei-de falar com alguém do Conselho. Quero saber o que se passa. No palácio o juiz Marco Quirini recebeu-o com solicitude, disse que o processo estava confiado a mais três juízes, além dele, e que seguia com todas as cautelas dada a gravidade e o melindre da situação. Queremos honestamente esclarecer a identidade do preso e apurar a verdade. Temos-lhe feito constantes interrogatórios... E ele?..., afirma e confirma o que vós bem sabeis. Não me conformo, disse frei Estêvão. Há aqui qualquer coisa que me não parece curial. Quê? Afinal, porque o prendestes? De que o acusais? Ele é réu de que crime?

Visivelmente embaraçado, Marco Quirini respondeu: Ele foi intimado pela Senhoria a, no prazo de oito dias, sair dos territórios da República. Não obedeceu. E que crime cometeu ele para ser expulso da República?... Não respondeis. Respondo eu: o crime de afrontar a Espanha. Examinamos o caso com isenção... Sob a pressão do embaixador castelhano. Não nos deixamos conduzir por qualquer influência. Se chegardes à conclusão de que ele é um embusteiro..., será condenado. Se finalmente acreditardes que ele é o rei de Portugal... Teremos de enfrentar a inimizade da Espanha. Da Espanha?, exclamou frei Estêvão levantando-se. E a França? E a Flandres? E a Inglaterra?... Marco Quirini acompanhou-o à porta: Poderei dar-vos um conselho? Agradeço-vo-lo. Ide a Portugal. Procurai obter dados, sinais, indícios, traços concretos da identidade de el-rei Sebastião... Estai certo de que assim farei. Não desistirei enquanto não libertardes o meu rei.

A Ponte dos Suspiros

Gaivotas e pombas são as minhas visitas, às vezes um ou outro pardal pousa a medo no beiral do meu janelo de grades. Dou-lhes migalhas do meu pão. Habituam-se ao ritual e acabam por também eles serem o meu relógio dos dias intermináveis. A única vantagem deste meu cárcere é não se situar nos caboucos do palácio, mas alcandorar-se cá em cima no balouçar dos nevoeiros, sobre a ponte dos Suspiros. Sinto a maresia subir até mim, mas não vejo o canal nem a laguna. Esta experiência me faltava, ser encarcerado e ter a fragilidade ameaçada com a prepotência de interrogatórios, a iminência de torturas e talvez até de morte ignominiosa. Que fazer? Luto por que tempo e lugar se não alonguem de mim e me não deixem abandonado à impotência da angústia, suspenso sem amarras que me amparem a queda no aniquilamento. Acuda-me este pombo que agora aí pousou e se está meneando em vénias e arrulhos. Parece saudar-me. Estendo-lhe a palma da mão cheia de migalhas, como costumava em San Beneto, em casa de Jerónimo Migliori, com os pombos a esvoaçarem-me em redor, a pousarem-me nos ombros, nas mãos» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

 JDACT, Fernando Campos, História, Literatura, 

segunda-feira, 14 de abril de 2025

O Cavaleiro de Olivença João Paulo Costa. «…  os domínios da coroa portuguesa há duzentos anos, no tempo d’el-rei Dinis I. pelo tratado de Alcanizes, a fronteira fora definida para sempre e Olivença….»

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O pedido da Rainha

«O grupo português trotava calmamente. O Relâmpago estava esgotado e uma montada levava dois cavaleiros. Quando contornaram nova curva, ao fundo surgiu a vila. Olivença, guarda avançada de Portugal além-Guadiana, ostentava poder e riqueza. A vila integrara definitivamente os domínios da coroa portuguesa há duzentos anos, no tempo d’el-rei Dinis I. pelo tratado de Alcanizes, a fronteira fora definida para sempre e Olivença ficara do lado certo. O rei lavrador povoara-a e defendera-a, mas a cerca velha cedo se mostrou insuficiente para proteger todos os oliventinos, pois a vila cresceu depressa, até que el-rei Fernando I ordenara a construção de novas muralhas.

Os cavaleiros aproximavam-se, e aos seus olhos destacava-se a torre de menagem altaneira, reconstruída no tempo de João II. No alto, flutuava a bandeira branca com a esfera armilar e uma outra com o escudo de Portugal. Já havia novos bairros desprotegidos, pelo que a cerca fernandina carecia de acrescentamento. Quando se acercaram, já distinguiam o fosso que contornava a muralha e ouviram o relógio dando as horas. Fora colocado numa esquina da cerca velha, em torre reforçada para o efeito. Ao longe, nas colinas sobranceiras à vila, erguiam-se duas atalaias que vigiavam Castela; uma espreitava para as bandas de Alconchel e a outra na direcção de Badajoz e de Jerez de los Caballeros.

Agora sinto-me mesmo de volta a Portugal, suspirou Francisco. Ainda bem que Vossa Senhoria andava por perto. Estava preocupado com o teu atraso e nossas atalaias avisaram que tinham avistado um cavaleiro a ser perseguido, vindo nesta direcção, e saí logo com estes homens. Estava certo que irias entrar por aquele vau, e ao deixar os castelhanos entrar em nosso reino, ficámos em vantagem. Além disso, eles estavam pior armados do que nós.

O grupo entrou pela Porta de São Sebastião, junto à torre de menagem, e foi saudado pela soldadesca que aguardava notícias. Francisco, vem comigo, ordenou Vasco. Pouco depois estavam na casa do Melo, que se situava na parte velha da vila, próxima da Porta de Alconchel. O que tens para mim? O correio pousou o bornal, despiu as calças e tirou um envelope que estava num bolso por dentro da perna; com uma faca descoseu sua capa e tirou um macinho com vários papéis em letra miudinha; finalmente, acionou o mecanismo que abria a sola se sua bota e retirou saí uma nova missiva. Parece que foste reconhecido, Francisco.

O meu contacto em Mérida estava nervoso. Fostes a Mérida? Não vieste directo de Cáceres? Não, senhor. O nosso amigo de Cáceres disse-me que havia novidades para mim em Mérida. Então o nosso agente de Cáceres bandeou-se e tu estás mesmo identificado. Qual é a carta que te deram em Mérida? É essa com o brasão. Vasco deu um estalo com a língua, ao ver o símbolo dos Pachecos, e sua perna direita escoiceou. Foi uma armadilha para se certificarem que eras um dos nossos correios.

O que diz a carta? Não te interessa, tolo. Temos que te mudar. Dentro de duas semanas partes comigo para a Flandres. Lá faz frio. E aqui cortam-te o pescoço num instante. E Vossa Senhoria não poderia aceitar que eu deixasse este serviço? Se assim o queres, serei eu próprio a cortar-te o pescoço, rosnou Vasco Melo, com o nariz mexendo-se desenfreadamente». In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.

 Cortesia de CL/TDebates/JDACT

 JDACT, Olivença, Conhecimento, Literatura,

domingo, 13 de abril de 2025

Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «… às vezes dá a outra metade, prometida. Então, nos dias seguintes, os criados de mesa dos hotéis telefonam…»

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Mary

«(…) Vindo de Madrid, nos próximos dias chegaria a Lisboa um homem, de seu nome Nubar Gulbenkian, filho de um milionário arménio. Ficaria instalado no Aviz, o melhor hotel da cidade. O homem traria informações sobre dois pilotos ingleses da RAF, que estavam a atravessar clandestinamente a Espanha. Mary teria de os fazer entrar em Portugal, sem a PVDE notar, e de os fazer seguir para Londres. Não posso ser eu a falar com o Nubar, explicou Mary. Isso seria desmascará-lo. É um importante apoio nosso, mas tem de permanecer secreto. Se os nazis o descobrem é um desastre. Porquê? Mary olhou para mim, como se a calcular o quanto podia contar. O Nubar é um excêntrico. Passeia-se em Lisboa a pé, com uma bengala, seguido uns metros atrás pelo seu Rolls Royce, que guarda na garagem do Aviz. A sua excentricidade é um bom disfarce. Deu uma curta gargalhada, e acendeu outro cigarro: sabes o que contam dele? Sempre que se senta à mesa dos restaurantes dos hotéis, em Lisboa ou no Estoril, rasga uma nota ao meio e dá metade ao criado que o está a servir, prometendo-lhe a outra metade para o final da refeição, se considerar que foi bem servido.

Como é imprevisível, às vezes dá a outra metade, outras esquece-se, ou não dá a metade prometida. Então, nos dias seguintes, os criados de mesa dos hotéis telefonam uns para os outros, à procura da metade da nota que lhes falta, a ver se algum dos outros a tem! Rimo-nos. Naquela época, Lisboa era também um porto de abrigo de muitos milionários europeus, fugidos à guerra, e a cidade fascinava-se com as características de tão ilustres visitantes. Como é que ele sabe que pode confiar em mim?, perguntei. Mary enviaria a Nubar uma mensagem através de um criado do Hotel Aviz. Era outra característica de Lisboa: os criados dos hotéis eram verdadeiros pombos-correios, além de fontes preciosas de informação. O problema era que alguns também trabalhavam para os nazis.

É um dos nossos, murmurou. Uma certa excitação invadira-me. Sentia-me a ser posto à prova. Mary, contudo, tomou a emoção por receio. Não há perigo nenhum, Jack Gil. É só entrares no hotel, pedires para falar com o homem, e depois transmitires-me o que ele te disser. Não há pistolas fumegantes, nem nazis a espreitar nos corredores. Foi a minha vez de dar uma gargalhada: és muito persuasiva! Mirou-me através do seu copo de brandy, e a sua cara surgiu-me deformada pelo vidro e pelas pedras de gelo: confio em ti, Jack Gil. Não sei bem porquê. Ou talvez saiba... Talvez saibas? Desviou o copo, fazendo contacto visual comigo: sabes segurar muito bem nas saias de uma mulher. E isso é razão para confiares num homem? Mary levantou-se e caminhou pela sala na direcção da janela. Lá fora, o ciclone aumentara de intensidade. As portadas exteriores das janelas batiam com força contra a parede, produzindo um ruído desagradável.

Está feio, comentou Mary, observando a rua, e repetiu o que dissera horas antes no carro. Deve ser por isso que hoje não há ninguém a ver ninguém. Era como se o facto de não existir ninguém a observá-la a libertasse da opressão. Foi talvez nesse momento que percebi que era muito infeliz em Lisboa. A sua solidão comoveu-me. Com o passar dos meses viria a confirmar que, sem filhos e com um casamento moribundo, Mary estava à beira de um colapso. Achas que Salazar está a dormir?, perguntou ela, mudando de novo o rumo da conversa. Passava da meia-noite. Dizia-se que Salazar dormia pouco, mas era provável que àquela hora estivesse deitado. Acho que sim. Mary sorriu: um ditador nunca dorme. Pode ser neutral, mas não dorme»» In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Espionagem,

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Aníbal Belo (1945-2001). Carta de Marvão. «… aliviava-se, com prazer, a falar de teatro, de tipografias, dos presencistas, e muito especialmente de Francisco Bugalho, e de José Régio…»

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NOTA:: Mário Rainho faleceu no dia 2 de Janeiro de 2025, com 97 anos

«Daquele aconchego agasalhante, dado a peregrino de longe que vinha pedir pousada, tomei boa nota para a vida, evocando, da memória, os versos de ouro de Pitágoras, quando impõem o dever de honrar os pais e de agradecer a hospitalidade do estalajadeiro. Agora, em triunvirato, o Garcia, eu e o Mário Rainho continuamos a nova rota traçada por via de destinos e de circunstâncias, enleados de redes de sentimentos e de olhares, que o andar dos passos mostraram ser comuns.

O Mário Rainho aproveitou para me levar às Casas Amarelas, que mais não eram do que a sede do poder judicial, onde também estava instalada a Conservatória Registral, que ele próprio personalizava. De notável espírito de observação, era ali, por dentro daquelas janelas de guilhotina, o seu terreiro profissional, onde a sua vocação se professava, à lente, a analisar os documentos e cartas públicas do notário de Marvão, que, todas as semanas, desapiedadamente, lhe deixava, aos montes, fruto da sua exaração semanal, com letra miudinha, o que o obrigava a levantar, obliquamente, os óculos, para enxergar as certezas daquelas verdades declaradas.

Haveria eu de lembrar por muitos anos a sua assinatura, com uma grande cauda sobreposta e alongada, quase elíptica, a abranger o seu nome todo, que, com o andar dos anos, de elisão em elisão, se ia sintetizando, desnudando-se dos arredondamentos originários. No intervalo dos seus tiques registrais, aliviava-se, com prazer, a falar de teatro, de tipografias, dos presencistas, e muito especialmente de Francisco Bugalho e do irmão e de José Régio e das suas Histórias de Mulheres, entretendo-se na discussão da lenda de misoginias, que acerca dele se cultivavam. Os dias futuros haviam de me mostrar a sua enorme e talentosa capacidade de interpretar papéis, de difícil tradução, na arte de representar.

Era ininterrupta a sua constância, no apelo aos elementos da sua equipa de teatro, que dirigia, exigindo-lhes presenças, que só a luta contra o cómodo da televisão vencia, deixando-as, livres, para o ensaio ou para a declamação. A militância por todos os valores da sua terra faziam dele um centro de atenções, que testemunhava a circum-navegação de todos os acontecimentos colectivos na Vila. O Mário Rainho não era qualquer pessoa subalterna a valores do espírito, sempre rente ao saber, sempre ao pé do sortilégio da beleza incandeante, que o motivara a ser quem é, formatado pelas circunstâncias da vida, marcada que foi, logo na infância, pelas letras que apreendera a colocar na tipografia, umas ao lado das outras, o que lhe propiciou o amanhecente gosto pela leitura. Era um caso típico de autodidaxia, no qual conseguiu forjar uma personalidade de vigores e robustecimentos, donde emergem virtudes e valências, que sobrepairam à vulgar mediania, onde, latentes, as mediocracias medram.

O Mário Rainho, agradecido ao acaso por aquele tão fortuito encontro, contente de mim, ao lado dele e do Garcia, ao seu lado, ia ilustrando a Vila dos seus varões ilustres, do passado e do presente, quando me sugeriu, por ali estarmos perto, dar uma saltada à Câmara da vila, onde o Presidente Carolino teria, com certeza, prazer em conhecer-me, e com quem eu gostaria de falar. Que sim, que era boa ideia, e lá fomos os três, ao mesmo tempo, ao mesmo lado, como que a gradar as ruas e os acontecimentos que se tinham rebolado sobre elas.

Seguimos pelas Carreiras de Cima e fomos lá à frente, onde parámos, para entrar, subindo, uma grande escadaria, que se atingia, depois de ultrapassado um precioso portão de ferro forjado, como que a dizer do subido e superior ar daquela casa municipal, domicílio das respostas às solicitações dos cidadãos da vila e do seu termo. O Presidente apareceu, o Mário Rainho disse quem eu era, e com saudações contagiantes nos cumprimentámos, com delicadezas mútuas, que o tempo haveria de decretar duradoiras». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT

Castelo de Vide, Mário Rainho, Aníbal Belo, Marvão, JDACT, 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Aníbal Belo (1945-2001). Carta de Marvão. «E a mim, narrador do futuro, testemunha credenciada de consensos, aprouve-me a função de assistir àquele acontecido encontro, forrado, para aquém, da espessura dos dias».


NOTA:: Mário Rainho faleceu no dia 2 de Janeiro de 2025, com 97 anos

«Engenheiro civil, caiu-lhe, no trabalho da vida, a tarefa de ir dirigir a construção do caminho-de-ferro do ramal de Cáceres. E, nessa qualidade, tinha que retalhar os tapadões, as tapadas, as hortas e os currais, que a estrada de ferro tinha naturalmente de dividir, cabendo-lhe o odioso de ferir, com golpes de espada, as heranças avoengas ou as deixas testamentárias de muitas gerações e os códigos de honra, que o estatuto de posse foi criando no deambular dos séculos. De fina sensibilidade, o engenheiro de tudo ia tomando conta e nota, inventariando emoções e retratos de personagens, com que criou a comédia de costumes imortalizadora.

O Mário Rainho alongava-se em biografias e hagiografias, em dados contornos, enquanto eu, de espírito cada vez mais giratório, me espairecia na lonjura dos acontecimentos, para trás e para a frente dos carris do tempo, ora evocando´Camilo Castelo Branco, que dizia que até os pardais se assustavam com aquele touro negro de ferro, a galgar as travessas, ora colocando o engenheiro Horta, na dianteira, a corrigir erros e cálculos do fidalgo João na estação de Caminho de Ferro da Beirã».

No dissêncio dos dias, consegui pô-los a conversar acerca de cálculos, topografias e texturas de construção, conseguindo, com inegável sucesso, que o tempo se encurtasse para ser mais legível a história e mais fácil a construção dos amanhãs. Bom conhecedor do cadastro de Marvão, o Horta agradeceu a João da Câmara os seus ensinamentos, este louvou-lhe as simpatias e as referências da memória.

E a mim, narrador do futuro, testemunha credenciada de consensos, aprouve-me a função de assistir àquele acontecido encontro, forrado, para aquém, da espessura dos dias. O meu ajudante, com a fraqueza das forças a afadigarem as suas energias, foi-me levando para o jardim do Parque, todo recheado de árvores frondosas, de cujos galhos os passarinhos faziam coreto, para aí entoarem seus trinados de alegria. Era um jardim cuidado e frequentado por gente, que dele fazia uso vivo. Pessoas sentadas nos bancos, com ar despreocupado e livre, conversavam amenamente com figurantes que passavam, e a quem davam dedos grandes de conversa, para terapia da monotonia ou da solidão da mesma mesmice dos dias.

E, enquanto ele me continuava a falar das rivalidades com Marvão, eu, a boiar em mim, ia estendendo o olhar gostoso para aquela natureza, ali trabalhada e ordenada, quando, ao subir a ladeira, nas suas calmas, me apontou para a estalagem, que se esquinava no encontro de duas ruas. Era a Casa Parque, de construção de meados do século, denotando qualidade bastante para compensar os meus depauperados aposentos, já com descrição acima». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT

 Castelo de Vide, Mário Rainho, JDACT, O Saber,

Carta de Marvão. Aníbal Belo (1945-2001) «… esquina volvida, aparece o Mário Rainho, director de um grupo de teatro, um homem com quem havia de privar alguns anos, com um notável espírito de observação, supremamente evidenciado pelo anexim de observa, com que os homens da terra o marcaram»

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NOTA:: Mário Rainho faleceu no dia 2 de Janeiro de 2025, com 97 anos

«O filósofo veio à janela, olhou, de dentro para fora, e de cima para baixo, e, ao ver o frade branco, insultou-o, com muitos ralhos, com imprecações intermináveis, com maldições eternas .E, em altos berros e espadaladas várias, aparece ali naquela cena, saído de trás do reposteiro do tempo, esparvoado, o franciscano inglês Roger Bacon, a tomar partido pelo dono da casa, a quem tutorava naquele trabalho de ópticas, por sua conta desde o século XII, que não era mais que negócio de óculos e lentes de contacto...

E palavra puxa palavra, doutrina puxa doutrina, frade não deve a frade, vamos à bulha e todos ao monte, e o dominicano com o seu manto branco, muito mais sujo da refrega que o hábito castanho do franciscano. Spinoza, o judeu filósofo, agradecido, ia virar as costas para continuar a lapidar, quando, de repente e ofegante, chega o Richard Zimler do novo mundo, para fazer a acta do ali acontecido, trazendo como testemunha cientificadora o Alexandre Quintanilha, talvez para escrever agora sobre o último cabalista de Castelo de Vide, ensinando ao filósofo qual o melhor trajecto para a sinagoga portuguesa de Amesterdão.

João III, o Piedoso, apiedou-se de si e, sentado no banco da Fonte, que era o suporte de cântaros e bilhas de água ou o poiso das apeias das azémolas, com a cara escondida entre as mãos, para não ver o que deixou para o futuro, soluçava com gritos de permeio, que se ouviam a séculos de distância.

O Garcia, impressionado com aquele espectáculo dramático, deitou-me o olhar com tons complacentes, a sustentar desculpas por aquela ocorrência, rogando-me, por instantes, compreensão, e foi-me afastando daquele território, daquela cena, que mais parecia teatro vicentino do que momento azíago de declamação ocasional de papéis, previamente estudados, nas intertelas do devir dos acontecimentos.

Falava-me ele de teatro, falava eu de tragédia, de fingimentos na arte de representar na vida e das máscaras gregas de Epidauro, quando, esquina volvida, aparece o Mário Rainho, director de um grupo de teatro, um homem com quem havia de privar alguns anos, com um notável espírito de observação, supremamente evidenciado pelo anexim de observa, com que os homens da terra o marcaram.

Era uma pessoa recheada de singularidades, de alto e belo espírito, que também se embevecia de belezas. De entretém, de oportunidade, ao ver-me ser solidário nesses afazeres da alma, com delicadeza nos conduziu para uma outra rua e, postando-se em frente a uma casa, de altos e baixos, disse-me que ali tinha vivido o grande dramaturgo João da Câmara, autor da comédia OS VELHOS, cuja génese tinha, como terreiro, a freguesia de Santo António das Areias e cuja acção se essenciava na reacção da população daquele povo à chegado do comboio». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT

 Castelo de Vide, Mário Rainho, Aníbal Belo, JDACT,