sábado, 30 de novembro de 2013

Jazz. A Arte da Poesia. Cannonball Adderley. Milt Jackson. «Às vezes sou o Deus que trago em mim e então eu sou o Deus e o crente e a prece e a imagem de marfim em que esse deus se esquece. Às vezes não sou mais do que um ateu desse deus meu que eu sou quando me exalto. Olho em mim todo um céu e é um mero oco céu alto»

Cortesia de wikipedia


«Meus gestos não sou eu.
Como o céu não é nada,
o que em mim não é meu
não passa pela estrada.
O som do vento dorme
no dia sem razão.
O meu tédio é enorme.
Todo eu sou vácuo e vão.
Se ao menos uma vaga
lembrança me viesse
de melhor céu ou plaga
que esta vida! Mas esse
pensamento pensado
como fim de pensar
dorme no meu agrado
como uma alga no mar.
E só no dia estranho
ao que sinto e que sou
passa quanto eu não tenho,
'Stá tudo onde eu não estou.
Não sou eu, não conheço,
não possuo nem passo.
Minha vida adormeço
não sei em que regaço».


«Sou o fantasma de um rei
que sem cessar percorre
as salas de um palácio abandonado...
Minha história não sei...
Longe em mim, fumo de eu pensá-la, morre
a ideia de que tive algum passado...
Eu não sei o que sou.
Não sei se sou o sonho
que alguém do outro mundo esteja tendo…
Creio talvez que estou
sendo um perfil casual de rei tristonho
numa história que um deus está relendo...»


JDACT

Cortes. Tetralogia Lusitana. Almeida Faria. «… carregados de colossais botas cardadas, capacetes com viseiras, cacetes, cassetetes de borracha compacta, bastões que dão choques eléctricos, cães amestrados para matar, cavalos dos que sabem pisar e escoucinhar. […] que o Estado lhes reservava, maioria submetida a ridículos títeres que apesar de poucos pareciam demais…»

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«(…) André dela se serve a dobrar, como serva e como fêmea, gozada, enganada pelo filho-família que queria provar-se capazde seduzir e de surpresa tomar patega fácil, toda tremente quando a informou que desta não escapa, adeus ó cabaço, ele contente por me ter tirado os três, por ter esperado, não dói em havendo saber da parte dele e dela a sorte de encontrar em cima de si um tipo como eu, civilizado, talvez não muito terno, um que nem contigo dorme, te come só e vai-se embora, mas que ao menos tem técnica, não te arranja traumatismo, não te estraga para o resto da vida, pelo contrário, a paixão não a larga, custa-lhe aceitá-lo, tudo tresanda tão a triste, romance de escada de servir, pior ainda por ter pena dele que dona Marina, a senhora, lhe confessou em segredo andar doente, não explicou que doença, provavelmente má vida lá na Lísbia, com marafonas, galdérias, putéfias, mulheres de peste. Piedade não lhe perdoa, a André, o aumentar o reino da escravidão que descobre em toda a parte, a mãe morreu-lhe a ela de parto, talvez por não haver médico perto , talvez apenas azar, de qualquer modo inculpada pelo pai bruto e boçal que a deixou e foi-se embora, aos avós abandonada que lhe deram este nome para dela terem piedade, como se o nome ajudasse, com suas letras minguadas, a vencer, exorcismar a sorte amarga e avara, onde lhe comprassem força de braços e artes de preparar todo o prato. Saída não me sobrava além de vir oferecer-me à deste senhor Francisco, bom lavrador, mau marido, mas isso não é comigo, tem casa posta à amiga, como o menino André pensava fazer comigo, amásia, amancebada, deusmelivre.

Arminda quer subtrair-se à opacidade que ocupa a casa, reflectida no país que o presente torna totalmente cercado de muralha, assaltada por violentos mares dum lado, do outro lava solidificada, gretada entre margens deixadas descarnadas, tudo pedra agressiva, ângulos cortantes, rocha ou marisco putrefacto sob nuvens baixas, inumeráveis bátegas do mês mais cruel do ano, nestas moradas de pé direito alto que o paredão do passado protege, por enquanto, da nortada. Arminda recorda o sonho em que ágil escala até ao cimo do dique, sabe que acaba de entrar em vigor lei laboral, que os proletários consideram, e com eles Samuel, marcial para quem trabalha, sem direito a levantar a cabeça e protestar, quase igual a encostá-los à parede e disparar, o que até seria feito se não fossem necessários para accionar as mil máquinas, para fabricar novas máquinas que produzem outras máquinas para que a grande engrenagem da maquinaria magna não pare enquanto os astros não pararem de girar. Contas de banco a prazo, rodas dentadas, balanço, balancete do razão, desrazão organizada, conta-corrente contra todas as correntes, ratios várias, percentagens, juízos prudenciais, previsões gazivas, cataclismos provocados, golpes, contragolpes controlados pelos depósitos à ordem, basalto rolado desde a falésia vulcânica a prumo sobre o turvo abismo ao fundo em cujas praias estão, cor creme nívea, carros de polícia donde saem molossomens carregados de colossais botas cardadas, capacetes com viseiras, cacetes, cassetetes de borracha compacta, bastões que dão choques eléctricos, cães amestrados para matar, cavalos dos que sabem pisar e escoucinhar. Os caras gesticulavam que Arminda e Samuel descessem ou atiravam, regressassem na brasa à poluída passividade que o Estado lhes reservava, marginais, maioria submetida a ridículos títeres que apesar de poucos pareciam demais, tal o talento para adormecer a massa encefálica das massas, hipnotizadas, amansadas, arrebanhadas à porrada mal quisessem arrebitar, assim Samuel e Arminda se vêm forçados a desistir, cair na matéria morna amniótica em que muitos se afundam, só alguns conseguem manter de fora a tola. É sábado, longe de Samuel sinto a sua falta, em lugar dele, na cama ao lado, está Sónia de polegar na boca e olhos fechados, respiração regular, amiga da minha idade mas mais livre porque os pais em Angola não a podem chatear como os meus fazem por andar com Samuel que não conhecem, basta-lhes saber que é operário na Cuf, ninho de víboras para eles, dragões dispostos a comer-lhes pão e filhas, vou fazer vinte e um, não me podem impedir se ele quer viver comigo, tenho mais sorte que Sónia que gosta de André que não gosta de ninguém nem se calhar de si mesmo». In Almeida Faria, Cortes, Editorial Caminho, o Campo da Palavra, Lisboa, 1986.

Cortesia de Caminho/JDACT

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Como aquele criado do duque, cujo nome é melhor esquecer, que lhe levou a cabeça decepada, de olhos negros de sangue, ao Rei a pedir tributo e acrescentamento. Vae Victis!»

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A Morte do Cisne no Campo do Leão
«(…) Recordava-se do ar extasiado de Pedro, quando meteram pela estreita garganta do Cédron e subiram o vale de Josafat ladeado de sepulcros excisados na rocha... E depois, Senhor, Jerusalém toda de oiro (é assim que os miseráveis judeus a cantam, eles que foram expulsos pelos seus pecados e que nem a seiscentos chegam, e vivem como desgraçados pedintes da cidade que pertenceu a Salomão). Que diferentes dos ricos judeus dos Reinos cristãos, com as bolsas repletas de oiro do comércio! Ali, em Jerusalém, perdidos como ovelhas tresmalhadas, entre Turcos, Árabes, Arménios, Caldeus, e Deus sabe lá mais quem, até metiam dó! Aproximavam-se da Ribeira de Alfarrobeira debruada de ulmeiros e choupos. Aí fez-se o arraial da hoste do Infante que, em breve, era cercado pelo exército real, como se se tratasse de um exército inimigo. Depois, como um bando de músicos bem orientado, os arautos do Rei acompanhados pelo fragor tonitruante dos trombeteiros, começaram a gritar avisos aos servidores do duque de Coimbra: - Abandonem o Infante! Abandonem os traidores! Abandonai o rebelde em nome d'El Rei, D. Afonso! Mas havia deserções em ambos os lados. Depois, mais para o fim do recontro, foi pior.
Os besteiros do exército real meteram-se na água, encobertos pelos arbustos, canaviais e árvores, e começaram a disparar sobre o campo inimigo. O Regente Pedro ouvia os gritos dos homens, quer dos que ripostavam, quer dos feridos. Já havia mortos e os urros de aviso e ódio entre os companheiros d'armas. Pedro ordenou aos homens que cuidavam das bocas de fogo que se aprestassem. Foram as bombardas postas em posição de tiro sobre o cabeço de onde tinham descido os besteiros! O seu alcance é pequeno, mais curto que as peças dos tempos dos Romanos, segundo os técnicos alemães e ingleses, mas servem e fazem estrago. Os homens que tinham encarretado as bombardas moveram-nas para o tiro. As balas de pedra partiram e uma delas, dada a falta de perícia do soldado, caiu junto da tenda do Rei. Foi um acidente, mas o último que faltava. Todas as forças do lado do Rei reagiram num assalto geral, em massa. Ao ver o efeito, os peões do Infante debandaram. O Regente Pedro, que então se achava quase desarmado, apeou-se. Apenas envergava uma leve cota, sobre ela colocara a jórnea de veludo de cor carmim e na cabeça a cervilheira. Teria esperado que o irmão Henrique ainda interviesse? Desalentado, meditava, mirando em redor... Olhou os filhos, dois garotos, tão espantados e pálidos como só o medo o pode conseguir e começou a combater com valentia. E, perante o ar atónito dos dois desgraçados jovens, de repente o pai entesou-se, atirou a cabeça para trás, ergueu um braço e tombou lentamente, a boca aberta, de onde corria um fio de sangue. Uma seta varara-lhe o coração. Certeira, implacável, definitiva, tão definitiva como só o pode ser a morte. O bispo de Coimbra mal teve tempo de lhe dar a absolvição, e fê-lo porque estava perto. Quem teria enviado aquela seta? O acaso? Alguém? Há crimes que são actos de benevolência para quem os pratica e para quem os possa sofrer. Foi fruto do ódio, da raiva, ou convinha que o Infante nunca mais estivesse frente a frente com o Rei?
O amigo Álvaro batalhava quando um dos homens, um seu pajem, a chorar, o avisou, exclamando: - Senhor conde, o Infante é morto. Senhor! Senhor! O duque é morto! Que fazeis, se já tudo acabou? Fugi, senhor, ou procurai o Rei. O conde Álvaro olhou-o: - Não digas a ninguém. Fica calado e já! Não digas a ninguém! Esporeou o cavalo e desmontou à pressa, à porta da tenda, com as cores da sua casa. Entrou. Vestiu as melhores roupas, as armas e ordenou que lhe dessem pão e vinho. Comeu o pão, orou e bebeu o vinho vermelho escuro como sangue. Cumprido o ritual de Irmão em Cruz, saiu a pé pelo arraial. O seu rosto sério, imperturbável foi-se tornando grave, carrancudo. Olhou em volta. Todos o reconheceram. Lutou até cair, trespassado de golpes. Ficou retalhado, os bocados espetados na terra embebida de seu sangue. Era a vingança da vilanagem que se cevava assim, sem mesmo saber porquê, como acontece sempre, porque muitas vezes se mata um bravo homem no campo da honra apostrofando-o de rebelde e cobarde. Como aquele criado do duque, cujo nome é melhor esquecer, que lhe levou a cabeça decepada, de olhos negros de sangue, ao Rei a pedir tributo e acrescentamento. Vae Victis! Ai dos vencidos, Senhor, e dos outros que esquecem que tudo se paga e a dor e a vingança se abatem sempre sobre os homens, como dantes até sobre os deuses!
O sonho do Regente Pedro terminara mesmo antes do corpo ser levado, com os dos outros, para uma pobre choupana, continuando a apodrecer, depois de três dias insepulto no campo. Assim se saciava o ódio dos seus inimigos em nome da Nação e de El Rei Afonso de Portugal que, por estranho que parecesse, era o único inocente desse crime. A pedido do irmão do conde de Avranches, foi-lhe dada sepultura, como a todos os outros seus companheiros de infortúnio, no próprio campo de batalha onde centenas de homens feridos e agonizantes se extinguiram durante três dias de tortura e horror como o exigia a cruel praxe da guerra e dos homens». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Poesia. Álvaro de Campos. «Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade, dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote da casa do campo da minha velha infância... Eu bebia e ele chiava, eu era fresco e ele era fresco, e como eu não tinha nada que me ralasse, era livre»

Cortesia de wikipedia

A Verdadeira Liberdade
A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!

A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
a liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
a grande liberdade cristã da minha infância que rezava
estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
a noção jurídica da alma dos outros como humana,
a alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
e beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!

Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo [sério?]...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!

Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
eu era fresco e ele era fresco,
e como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?

Poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa in ‘Poemas’

JDACT

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «Raça de mais fibra, energia trabalhadora, e devido parte às condições geológicas do terreno montanhoso, cortado de poucos rios, por vezes árido, e ao contacto de povos guerreiros como os maharatas, o povo de Bardez…»

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Estão pelos telhados e janelas velhos e moços, donas e donzelas. In Camões

Goa
«(…) A cidade da Velha Goa é o que aí se vê: desertos, ruínas e caveiras. Compassadamente o sino de ouro da Sé chama os cónegos a coro. Do vasto templo reboa, pelo espaço o angustioso grito do profeta, ad te, Domine, clamavi, como o único recurso de uma geração descrente e prostrada; uma aragem húmida e fria silva por entre a ramagem, e uma chuva de folhas secas junca o trânsito tapetado pela relva; o viajante evita cuidadosamente a cobra que rasteja por entre a folhagem; os gritos enchem o espaço de um zumbido triste e agonizante; um ou outro rendeiro de sura, sentado sobre o ramo da palmeira, solta estrídulos gritos (uh-uh!) como o piar do mocho agourento; algumas tonas quebram o silêncio das águas ao fanhoso e puxado cantar do marinheiro que desce o Mandovi... Para o coração português a sensação causada por aquela hecatombe é esmagadora. Os poucos templos que aí existem perecem antes umas lápides funéreas; a Natureza é uma elegia; o viajante sente-se vaguear em meio de sombras. Aquele sítio despovoado, plangente na voz desse sino, que tanto encantou o poeta, e que é como um grito do passado; as cúpulas e as torres desbotadas pelo tempo, que se alteiam quais ciprestes em meio daquele cemitério; o respeitoso silêncio do ermo, a pompa rude e homérica de ruínas seculares, tudo, enfim, fala e se agita com a placidez, dos séculos e a poesia dos destroços: um mundo parece acordar de entre aquele sepulcro imponente das nossas glórias:

A flor do Mandovi cai murcha e desfolhada!
Afilha de um jardim tapiza um cemitério!...

Do Tissuady, teatro dos nossos primeiros feitos nestas partes da Índia, convida-nos a montanhosa Bardez, terra de mulheres varonis e homens fortes. Transpomos o outeiro de Betim e logo descemos para o imenso vazio, que em alguma época geológica parece ter sido uma bacia para onde entrava o mar, que hoje banha as praias de Calangute. Do cimo desse outeiro o panorama é delicioso. Os montes correm caprichosamente dos Ghattes levantados aqui, deprimidos aí; descem para os vales, arredondam a superfície, levantam-se rudemente mais além, cobrindo a vista de um ponto, alargando os horizontes de outro, correndo em rolos entumecidos até se confundirem com as nuvens. Orlando o vale, espreitam as ermidas rurais, e os campanários erguem-se majestosos por sobre as palmeiras, espalhando por aquele âmbito a música alegre dos seus sinos. O vasto arrozal estende-se como uma alfombra matizada a capricho pela mão da Natureza. Quase ao meio está o Monte de Guirim, ilha de verdura, encristada pelo colégio do seu nome. Foi ali que, na doce contemplação do místico, uma alma pura e simples sonhou um dia criar um centro de luz e amor.
Mal pensava eu, educado nesse colégio, que teria de misturar com lágrimas o saudoso nome do meu santo mestre e amigo, padre Francisco Luís Gonzaga Ataíde, ao recordar-me hoje desse bando de crianças, para ele tinha todos os carinhos e desvelos de uma mãe. Meu bom mestre, fostes vós que, ao lado da minha viúva mãe, me infiltrastes na alma os bons sentimentos, que porventura possuo. Aqui vos agradeço, consagrando à vossa saudosa memória estas singelas palavras de um culto filial... De um lado do monte, vêem-se os canaviais de Saligão, jangadas de verdura balouçadas pelo vento; pequenos morros semeados de palmeiras, de bananeiras, e humildes casebres pululam pelo vale como recifes de coral; pelas encostas lobrigam os povoados, de que dá sinal o gomatte em festas domésticas, ou o estourar das recamaras ao som do bombo e caixa, nas festas religiosas da freguesia.
Raça de mais fibra, energia trabalhadora, e devido parte às condições geológicas do terreno montanhoso, cortado de poucos rios, por vezes árido, e ao contacto de povos guerreiros como os maharatas, o povo de Bardez tem desempenhado na história o papel característico da sua superioridade de raça e de génio. A emigração em grande escala para Bombaim, pondo-os em relação com um mundo mais activo, com classes trabalhadoras e enérgicas, tem-lhes modificado os hábitos, mais ou menos sedentários em outros dos seus conterrâneos. Aberta, pela sua posição geográfica, à incursão dos maharatas, pouca ou nenhuma influência tiveram em Bardez as imigrações do Canará, que, em tempos anteriores à nossa conquista, vieram invadindo as regiões meridionais das Ilhas e Salcete. Tudo faz crer na pureza, de raça dos seus habitantes: o seu génio altivo e empreendedor, o sentimento de família mais vivo e as suas aspirações pela liberdade. Foi Bardez a comarca revolucionária por excelência». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!
Cortesia de Ésquilo/JDACT

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «… o Regente Pedro começara a imaginar para ela um destino brilhante. A futura mãe da futura Isabel, ‘a Católica’ que de virtudes da alma e perfeiçooes do corpo foy en todo compryda…. Rui de Pina, passaria naquela altura a viver em Lisboa com a mãe e a ‘irmã Beatriz, futura duquesa de Viseu’»

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A Rainha Triste
«(…) Um cronista português defende que a mãe de Joana aproveitou o novo poder dos infantes de Aragão para invocar a sua causa. Assim, en esta sombra de prosperydade, em que a Raynha via seus irmaos em Castella, tomou tanta confyança pera seu recurso, que nom quis aver por bom nenhum meo, que de Portugal sem o regimento, e criaçam d'el Rey lhe fosse cometido. Mas a luz que projectavam os seus irmãos não iluminava as suas irmãs do mesmo modo. Devido a isso, é muito provável que a relação entre a rainha Leonor e a irmã se tivesse deteriorado, uma vez que a segunda viu cumprido o seu objectivo de afastar o valido da corte, e a primeira foi-se apercebendo que o cunhado castelhano não cumpria a promessa de a ajudar a resolver os seus problemas portugueses. Na realidade, quando em finais de 1441, a mãe de Joana voltou a encontrar-se com o rei em Valladolid, a situación permanecia num impasse, apenas alguma actividade diplomatica e troca de embaixadas entre Castela e Portugal, com o objectivo claro de dilatar qualquer intervençao militar. No final de Fevereiro de 1442, os procuradores das Cortes, reunidas em Évora, decidiram o destino da mãe de Joana, ordenando a confiscação dos seus bens e proibindo a sua entrada em Portugal. Na mesma altura, o Regente atribuiu ao conde de Barcelos o título de duque de Bragança, o primeiro dos quatro prestigiosos títulos ducais ibéricos que devem a sua concessão a acontecimentos directamente relacionados com a rainha Leonor, a sua filha Joana e a sua neta, a Excelente Senhora. A partir de então o novo duque não mais voltaria a sair em defesa da exilada.
O canto do cisne da consorte portuguesa aconteceu durante as Cortes castelhanas reunidas, entre Maio e Julho daquele ano, em Valladolid. O rei de Castela permitiu que a rainha se deslocasse a essa cidade para expôr o seu caso perante os procuradores, apesar de nas suas costas boicotar as embaixadas enviadas a Portugal pelos infantes de Aragão, que elles fingiam ser já derradeira, ameaçando que se as tareias da rainha não se resolvessem segundo a sua exigência, o último passo seria a guerra entre os reinos. Após este efémero consolo, a esperança de prosperidade da mãe de Joana foi-se tornando cada vez mais pequena, na mesma medida em que o rei de Castela, habilíssimo dissimulador, adquiria a garantia de que o valido Álvaro de Luna, com quem permanecia em comunicação secreta, regressaria à corte. É impossível seguir o rasto de Leonor e Joana durante alguns meses, a partir do encerramento das Cortes de Valladolid, em Julho de 1442. Certamente que não se encontravam na corte, perto do rei, nem no mosteiro de las Dueñas de Medina del Campo. Talvez tivessem regressado a Arévalo, juntamente com a rainha María, pois seria aí que, já a meio do Outono, os infantes de Aragão assinariam um novo pacto com a rainha María e o príncipe Enrique para acabar definitivamente com Álvaro de Luna. Um acordo que, segundo um biógrafo do príncipe, incluía ambiciosos projectos em Portugal, que também fracassariam, graças ao jogo duplo do rei de Castela. Nessa mesma altura, em Alcácer do Sal, feudo alentejano do infante João, irmão do rei Duarte I, morria, vítima de febre dos pântanos (malária crónica), o duque de Beja, cunhado mais novo de Leonor, cuja filha mais velha, uma jovem de treze anos chamada Isabel que a partir de então ficara sob a guarda da sua mãe, Isabel de Barcelos, primogénita do novo duque de Bragança, desempenhara um papel alheio à sua vontade nas desgraças da exilada rainha de Portugal. No entanto, esta jovem não se afastaria do olhar do Regente.
Conta-se que o Regente Pedro começara a imaginar para ela um destino brilhante. A futura mãe da futura Isabel, a Católica que de virtudes da alma e perfeiçooes do corpo foy en todo compryda, segundo Rui de Pina, passaria naquela altura a viver em Lisboa com a mãe e a irmã Beatriz, futura duquesa de Viseu. Em finais de 1442, os infantes de Aragão reuniram-se com Alvaro de Luna na imponente fortaleza de Escalona, domínio toledano do condestável. Essa reunião foi um novo golpe para as aspirações de D. Leonor de regressar triunfadora a Portugal com a filha. Como também o seria o triunfo diplomático seguinte do seu cunhado Pedro na Santa Sé, que reforçaria o seu papel como regente enquanto responsável em realizar, a partir de Ceuta, única cidade que confessa o nome de Cristo em Africa, a terceira parte do mundo, uma política de conquista de territórios infiéis, postos imediatamente sob a
tutela espiritual da Igreja romana». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

Cortesia da Esfera dos Livros/JDACT

A Velha Casa. Vidas são Vidas. José Régio. «Se os próprios culpados não houvessem testemunhado a sua inocência, talvez não tivesse escapado. ‘Andaste com sorte!’ disseram-lhe. Não estranhavam muito que fosse condenado mesmo inocente. Nesta decadência progressiva…»

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Vidas são Vidas
«(…) Das profissões decentes passara à caixa da graxa, à guarda de automóveis ricos, à mudança de móveis, à revenda de bilhetes de futebol ou cinema, ao transporte de malas, colagem de cartazes, à distribuição de reclames, ao maço de lotarias. Entretanto serviu de modelo numa aula de desenho, e esse ainda foi dos seus melhores períodos. Habituou-se a andar com o boné sebento na mão, e a solicitar os fatos que antigos condiscípulos punham de parte. Habituou-se, mas não se habituava de todo. Os antigos condiscípulos que o favoreciam já lhe não estendiam a mão. Estendiam-na a indivíduos indignos, que lhes não pediam esmola. Ele agradecia-lhes os favores, procurava disfarçar a humilhação com algum dos seus ditos excêntricos, e, às vezes, tinha vontade de lhes cuspir na cara. Aprendeu a ingratidão pela obrigação, que lhe impunham, de se mostrar grato. O espírito dos seus ditos excêntricos descambava para o amargo. Já, por vezes, esses ditos deixavam pouco divertidos os seus benfeitores. Cada vez poderia contar menos com eles. Ainda se julga o Pedro do colégio! Pela força das circunstâncias, as obras do acaso, ou a necessidade de confraternização, ia tendo relações com gentes muito diversas. A par dos falhados superiores, utopistas vencidos, miseráveis pitorescos e artistas indigentes (dos que expõem quadros nos passeios ou os rifam, exibem palhaçadas nas feiras, fazem, nos cafés, caricaturas de desconhecidos, andam pelas festas com a tenda do D. Bibi) conhecera e conhecia não só aqueles que vivem à margem da lei sendo, no fundo, homens como os outros, mas também tarados perigosos, indivíduos simplesmente sem qualquer moral, malandrins e malandrões do mais baixo estofo. A alguns destes ouviu gabarem-se de boas relações com gentes de nível social muito acima. Por experiência ou observação ficou sabendo como há de tudo, tudo que há nas outras capitais europeias ou nos romances policiais, nessa pacata Lisboa em que nada parece acontecer senão revoluçõezinhas familiares. E quem pensa que só pelas valetas de Alfama, do Bairro Alto, da Mouraria, escorre essa escória humana? Os que olham de baixo, entram pelas escadas de serviço, e espiam os seus semelhantes por a vadiagem lhes dar ocasião, é que vêm como pode essa escória aconchegar-se, lavando-se, perfumando-se, vestindo bem, nas casas e ruas da mais vulgar boa aparência.
Tais relações comprometeram Pedro Sarapintado a ponto de se ver envolvido em negócios escuros. Uma vez fora suspeito de carteirista. Custara-lhe a justificar-se. Afinal o carteirista era um seu conhecido recente, com quem passara a acompanhar por lhe parecer homem de verdadeiro interesse, e em quem nem sonhava tais habilidades. Outra vez fora acusado de cumplicidade num assalto a uma ourivesaria. Se os próprios culpados não houvessem testemunhado a sua inocência, talvez não tivesse escapado. Andaste com sorte! disseram-lhe. Não estranhavam muito que fosse condenado mesmo inocente. Nesta decadência progressiva, gozou períodos de relativa prosperidade. Muito relativa: pouco a pouco viera renunciando a todas as suas antigas exigências de conforto, higiene, cultura. Satisfazendo-se cada vez com menos, já lhe era muito mais fácil aceitar situações que dantes acharia inaceitáveis. Para quem dormiu debaixo dum portal, qualquer tecto é um luxo. As suas prosperidades testemunhavam a sua degradação. Nos momentos em que ainda vinha à tona o antigo Pedro, pensava que toda a sua triste odisseia não podia passar de qualquer coisa como um sonho sinistro, um pesadelo efémero. Ter-se-ia dado o que se dera? Continuaria a dar-se? Porquê, se a vida tinha tantas coisas belas, e tantos as desfrutavam? Como quem atravessa a pé um túnel após um comboio que foge (com luzes dentro, gente que parte para viagens, ou regressa a lares confortáveis e queridos), um momento agitara os braços no ar lôbrego, sufocando sob os rolos de fumo, e atirara um berro cujo eco debalde repercutira nas abóbadas viscosas». In José Régio, A Velha Casa, Vidas são Vidas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003, ISBN 972-27-1258-6.

Cortesia de INCM/JDACT

A Montanha Russa de Deus. Alexandre Honrado. «… no seu suporte. E que assim, de pernas para o ar julgar-se-ia haver, erradamente, duas camas número 96 nesta enfermaria. Falando e escrevendo com sinceridade, não era fundamental que se contasse nada disto»

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O Dodelat-sis
«(…) Pouco depois de Teodoro ter saído do hospital, uma empregada irá lavar a mancha de sangue e esfregar um resto de miolos que ficou por cima da cama do moribundo assassinado. Será essa mesma empregada que irá repor a placa com o número 69 no seu suporte. E que assim, de pernas para o ar julgar-se-ia haver, erradamente, duas camas número 96 nesta enfermaria. Falando e escrevendo com sinceridade, não era fundamental que se contasse nada disto.

Ora viva! Conhece lá o Autor
Oxalá daqui a uns meses esteja a chover a cântaros, não haja mesmo nada para fazer e esta ideia que tiveste, a de ler este livro, compense o estado de ânimo em que tens andado. Para já, só para te incomodar, convém dizer que está um radioso dia de sol eles estão ao ar livre e parecem despreocupados. Morde-te de inveja! Bom, talvez não estejas a perceber... Quem são eles? Mortos, feridos, perseguições, tiros, intrigas, sexo, corrupção, amor, sentimentos! De tudo isto existe, em abundância, nesta história. Mas exige-se desde o início um pouco de decoro. Por isso... O Autor apresenta-se agora, justifica-se já, desculpa-se pelos Narradores que não escolheu, antes se lhe impuseram como pequenas pulgas em cão velho e vadio. Os Narradores que, inevitavelmente, o substituirão por vários EU, equívocos e suspeitos, irritantes, daqui a algumas páginas, idealmente seria no segundo capítulo, não sabemos se o Autor ficará impune se subverter os sistemas, estão acolá, muito calmos.
O Autor aproveita a pausa e define-se, por questões de princípio e comedida elegância. E foge, desde já, com a mesma elegância e sobretudo com muita modéstia, às responsabilidades, e tantas são possíveis de lhe imputarem mais tarde (a começar por ti, Leitor). Assim mesmo, a responsabilidade é, segundo safa atempada do Autor, inteira, dos Narradores. São eles que, ditatorialmente, narram. O Autor, modernista, mais não faz do que melhorar-lhes sintagmas verbais e nominais, apimentando aqui e floreando acolá, dando-lhes estilo, exactamente estilo, aquilo que Georges Buffon definiu como a ordem e o movimento que conferimos aos seus/nossos pensamentos. Isso, obviamente, não te interessa para nada, Leitor. Mas faz falta aos Narradores e sobretudo aos Homens e Mulheres da Lupa (comunidade sinistra que se esconde pelos cantos e lê os livros como tu, Leitor, nunca o farias). Os Narradores não nascem nem ensinados nem dotados de agilidade vocabular à altura das exigências narrativas. Já imaginaste um Narrador que se te dirigisse num estilo... Fostes, viestes? Hoje vi um grupo que estavam?. Pois é, Leitor. Literatura não é jornalismo, fica sabendo.
Para que os Narradores se saiam airosamente, mesmo que mais tarde, por esturpo e narcisismo, editem a sua própria versão da História em formato livro de bolso e assinem, (tudo é possível!), um êxito editorial (qualquer edição que venda três mil e um exemplares é já um best-seller), eles aqui dependem do Autor. Os Autores, injustamente ignorados, são entidades mais omniscientes e mais omnipotentes do que quaisquer Narradores. Pelo menos, antes de conhecerem o Editor. Numa perspectiva de assumida democraticidade textual, o Autor respeita os Narradores. A bem da justiça e da optimização da narrativa, todavia, acha-se o Autor no direito de puni-los sempre que lhe aprouver. Sente-se mesmo no dever de calá-los. De cortar-lhes o pio, mesmo que, os Autores são assumidamente emotivos, isso doa».
In Alexandre Honrado, A Montanha Russa de Deus, Editorial Bizâncio, 2001, ISBN 972-53-0114-5.

Cortesia de E. Bizâncio/JDACT

Camões e a Infanta D. Maria: Parte XXII. Ceuta. José Maria Rodrigues. «… era tempo e mais que tempo que João III interviesse para impedir "el descanso de la Infanta su hermana". O dinheiro que ele tinha a dar valia muito mais que a satisfação das legítimas aspirações da ilustre senhora, vítima de odiosos interesses materiais, … conveniências politicas!»

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[…]
E depois de se referir aos vícios carnais e aos meios de os debelar, Camões termina, falando nestes termos da pátria celeste:

Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visibil,
Quanto ao homem for possibil,
Passar logo o intendimento
Para o mundo intelligibil,

Alli achará alegria,
Em tudo perfeita, e cheia
De tão suave harmonia,
Que nem por pouca recreia,
Nem por sobeja enfastia.

Alli verá tão profundo
Mysterio na summa Alteza,
Que, vencida a natureza,
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.

Ó tu, divino aposento,
Minha pátria singular,
Se, só com te imaginar,
Tanto sobe o entendimento,
Que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir
Para ti, terra excellente,
Tão justo e tão penitente,
Que, depois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!

Como fica dito, muito deviam ter contribuído para a solução da crise, por que em Ceuta passou a atribulada alma do poeta, as notícias que de Lisboa não deixariam de lhe ser transmitidas a respeito do projectado casamento da infanta com o príncipe herdeiro da coroa de Espanha. Não era, com efeito, uma rematada loucura da parte de Camões continuar a mostrar-se apaixonado por quem não só se achava em tão elevada plana, mas dela pretendia ainda ascender a um dos primeiros, se não ao primeiro trono do mundo? Não foi o próprio poeta que no começo da sua paixão escreveu estes versos?

Senhora, quando imagino
O divino
Vosso gesto, claro e bello,
De alguma hora merecê-lo
Me conheço por indino;

Que, se sento
Ser altivo o pensamento
Que me inclina,
Vejo que Amor vos destina
Para mór merecimento.

Porque é vosso lindo aspeito
Tão perfeito,
Que na mais pequena parte
Não pode, por nenhuma arte,
Comprender o humano peito.

Nem me espanta
Porque, se tivestes tanta
Formosura,
Vossa suprema ventura
Mais alta vos levanta.

É verdade que então o poeta prosseguia, pouco abaixo:

E se cuidais, por ventura.
Que a natura
Contém outro regimento,
Sabei que meu pensamento
Em vosso gesto se apura.

Nem me engano,
Que mudei o ser humano,
Como pude,
Em divino, por virtude
De gesto tão soberano.

Assim que, feito immortal
De mortal,
Outro nome tomarei
De ser vosso, pois mudei
O costume natural.

Também vós,
Pelo bem que em vós se pôs,
Sereis dina
De serdes por vós divina,
Mas eu divino por vós.

NOTA: Sobre o estado em que se achavam as negociações para este enlace, informa-nos a carta, já anteriormente citada, que o rei João III dirigiu a Lourenço Pires de Távora, em 27 de Junho de 1550. São dela estas palavras: … agora por parte de la Infanta Dona Maria fue apuntado, com todas las buenas palabras que ella en tal caso deuia dezir, que tenia entendido de buena parte que este negocio de su casamiento con el Príncipe se hablaua con buenos términos y estauan las voluntades de allà tan dispuestas para esso, que sabiendose que la tenia yo de hazerse, se concluiria de todo el descanso de la Infanta mi hermana. Quer dizer: era tempo e mais que tempo que João III interviesse para impedir el descanso de la Infanta su hermana. O dinheiro que ele tinha a dar valia muito mais que a satisfação das legítimas aspirações da ilustre senhora, vítima de odiosos interesses materiais, mascarados por vezes com o nome não menos odioso de … conveniências politicas!

Mas as decepções e os trabalhos por que tinha passado o pobre poeta haviam-no suficientemente elucidado a respeito desta transformação. Agora já não tinha dúvidas acerca da resposta a dar à pergunta formulada no último verso do soneto 137:

Eu que espero de um ser que é mais que humano?

Que tempo durou o exilio do poeta em Ceuta? Não me parece fácil averiguá-lo, sobretudo se for posta de lado a opinião de que ele foi ali cumprir dois anos de serviço militar». In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sancho I. O Filho do Fundador. Maria J. Violante Branco. «… é a seguir e esse difícil momento que Sancho I é realmente chamado a assumir um papel de destaque no governo do reino, que, esse sim, deve ter alterado em muito a sua condição e estatuto tal como até aí o vivera»

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A Longa Espera pelo Trono
Infância
«(…) Se nos activéssemos às informações da cronística portuguesa mais antiga, concluiríamos que deveria ter sido realmente apenas nesta lide de Sevilha que Sancho se iniciara na guerra a sério, pelo menos de forma bem-sucedida. É verdade que a trégua de cinco anos que em 1173, no rescaldo de Badajoz, tinha sido acertada entre Afonso Henriques e os mouros lhe vedara a possibilidade de os combater até esse ano de 1178, factor que a própria Crónica de 1419 refere como uma das razões pelas quais apenas nessa altura, e não antes, fora decidido atacar Sevilha. No entanto, como veremos adiante com mais detalhe, esta não foi a primeira incursão bélica de Sancho I. A documentação já menciona e comprova a participação do filho de Afonso Henriques em expedições guerreiras em datas muito anteriores ao saque de Triana. O facto de terem sido iniciativas não só mal sucedidas mas ainda, e sobretudo, contra o seu cunhado Fernando II de Leão, deve justificar a omissão destes confrontos pela cronística da época, que certamente preferia exaltar reis vitoriosos que combatiam infiéis a reis cristãos que se digladiavam entre si. Para além disso, quase a completar os seus 24 anos, e por isso já muito pouco jovem, sabemos que quando se deslocou ao Sul para a incursão que temos estado a analisar, para essa alegada iniciação às armas, já assumira, de facto, uma parte considerável da governação do reino há quase oito anos, já se casara há quatro anos e já, era pai de, pelo menos, uma filha.
O assalto ao bairro de Triana parece, pois, ter sido, isso sim e antes de qualquer outra coisa, a primeira incursão militar vitoriosa do jovem infante, e deve ter sido essa a principal razão pela qual foi tão celebrada pela cronística coeva e posterior, quase como o momento inaugural do seu reinado. Mas a nosso ver, o momento que perece marcar a entrada de Sancho I em cena no palco do jogo político de forma determinante não deverá ser considerado o assalto a Triana, em 1178, mas antes os meses que se seguiram ao famoso desastre de Badajoz, em 1169, quando, na sequência do acidente que lhe partira a perna, o estrénuo rei Afonso Henriques e muitos dos seus nobres tinham sido presos pelo seu genro e rival leonês, Fernando II. Na verdade, é a seguir e esse difícil momento que Sancho I é realmente chamado a assumir um papel de destaque no governo do reino, que, esse sim, deve ter alterado em muito a sua condição e estatuto tal como até aí o vivera. Mas não são as crónicas que nos permitem ter consciência disto, são antes os documentos régios e todo um conjunto de constatações que nos permitem detectar semelhante viragem. O sucesso da jornada de Badajoz deve ter agradado sobremaneira ao rei de Leão, que devia estar muito apreensivo face ao crescendo de intervenções bem-sucedidas de Geraldo Geraldes Sem-Pavor, que entre Abril de 1165 e Maio de 1166 conseguira tomar sucessivamente Trujillo, Évora, Cáceres, Montanchez, Serpa e Juromenha, e que se aliara tão estreitamente a Afonso Henriques que em Março de 1169 estavam ambos lado a lado no assédio a Badajoz e a pouca distância de efectivamente conquistarem tão cobiçada cidade para o reino de Portugal. Fernando II marchara até Badajoz para defrontar o português, não só obrigado pelo pacto de auxílio mútuo que em 1168 celebrara com os almóadas, mas ainda porque alegava que o território ocupado pelos Portugueses entrava pelos territórios que de direito lhe pertenciam, numa provável menção ao estipulado pelo Tratado de Sahagún de 1159 onde o rei castelhano e o leonês tinham combinado a repartição de toda a restante Península Ibérica pelos seus dois reinos.
O acidente do rei e a sua subsequente prisão, junto com a difícil situação em que essa o colocou face ao reino de Leão, não só deram a Fernando II uma inesperada vitória que ultrapassou em muito as expectativas que poderia ter acalentado quando se deslocara até essa cidade, mas ainda dariam a Sancho I uma forte razão para assumir uma regência talvez prematura, mas necessária. As crónicas portuguesas e as castelhanas divergem sobre o sentido e amplitude das consequências daquilo a que as fontes mais próximas dos acontecimentos, ou seja, os analistas do Livro da Noa de Santa Cruz e dos Anais de D. Afonso Henriques, compostos nos finais do século XII, classificam, lacónica mas expressivamente, como o infortúnio de Badajoz». In Maria João Violante Branco, Sancho I, O Filho do Fundador, Temas e Debates, Livraria Bertrand, 2009, ISBN 978-972-759-978-3.

Cortesia de Bertrand/JDACT

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «… depois de render homenagem à majestade real e dar testemunho de humilde obediência, manifestaram o seu propósito, e os temores acalmaram-se. Conseguido o objectivo, D. Leonor e a filha permanecem instaladas no palácio do rei de Castela»

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A Rainha Triste
«(…) No início da Primavera de 1441, D. Leonor e a pequena Joana encontravam-se em Madrigal, feudo da rainha castelhana junto a Arévalo, quando chegou de Portugal um novo enviado do conde de Barcelos encarregado de lhe explicar o compromisso que o conde assinara com o regente, certamente nada favorável à causa de Leonor. A nova contrariedade para a rainha desterrada viu-se agravada pelo facto de o portador da notícia ter sido um dos nobres outrora mais próximos do seu marido, de linhagem dos Távora, pai e tio de duas donzelas da rainha D. Joana em Castela. Não seria esse o único episódio em que o presente da então infanta de Portugal se transformava na causa distante de um acontecimento que lhe caberia enfrentar como rainha em Castela. Quando se encontrava em Madrigal com a mãe, soube-se a notícia do falecimento da rainha proprietária de Navarra, D. Blanca, esposa do infante Juan de Aragão. Este luto condicionaria a vida de Joana e também a da sua irmã, a infanta Catarina de Portugal, uma menina de sete anos que nessa mesma altura, e por ordem de um documento assinado pelo irmão, Afonso V, começara a ser educada por uma prima do capitão de Lisboa, um dos grandes adversários da rainha Leonor.
Preocupada com uma decisão que marcaria o destino dessa criança, D. Leonor conseguiu, depois de muito suplicar, que o rei de Castela aceitasse conceder-lhe uma nova entrevista. O encontro, a sós com a rainha e que durou três horas, teve lugar ao terminar a primeira semana de Maio de 1441, numa aldeia próxima de Madrigal. Pouco depois, as Cortes portuguesas, reunidas em Torres Vedras, tornavam oficial o enlace entre a filha do regente e o rei Afonso V. A humilhação da rainha, exilada na sua própria terra de origem, não podia ser maior. D. Leonor decidiu mudar-se com a filha para Medina del Campo, para se instalar no convento de Santa María de las Dueñas, onde repousavam os restos mortais da sua mãe, Leonor de Albuquerque. A rainha encontrou-se aí com a irmã e os irmãos Juan e Enrique, decididos a redigir uma série de exigências para apresentar ao rei castelhano, que uma vez mais estava acompanhado pelo valido. Reunidos os quatro irmãos, concretizam os seus pedidos. Uma delas pede textualmente a mediação [do rei de Castela] perante o infante Pedro de Portugal para que D. Leonor recupere a posição que tinha quando o seu marido era vivo, com garantias de futuro... Sobre esta demanda deliberou o Conselho e enviou as suas respostas, mas os infantes não responderam, estavam maduros os seus planos para se apoderar de Medina.
A 28 de Junho, as gentes dos infantes entram em Medina, que lhes abre as suas portas. O valido Álvaro mal tem tempo para abandonar a galope a cidade, a pedido do rei, aproveitando a confusão. Dentro das normas e mentalidade da época, os infantes prestam acatamento ao rei, a serviço de quem dizem ter vindo; imediatamente chegam as rainhas de Castela e de Portugal e o príncipe, falam com o rei e instalam-se no próprio palácio. A aparente normalidade não deve induzir-nos em erro. O rei transforma-se num verdadeiro prisioneiro, da corte são despedidos todos os oficiais da sua casa e todos os partidários de Álvaro. A pequena infanta Joana assiste assim ao primeiro dos golpes palacianos que serão uma constante na sua vida. Como escreveria mais tarde o cronista palentino, a rainha e seus irmãos decidiram moderar a sua vitória, porque não lhes interessava a opressão do rei, mas apenas a ruína do privado (...). Portanto, depois de render homenagem à majestade real e dar testemunho de humilde obediência, manifestaram o seu propósito, e os temores acalmaram-se. Conseguido o objectivo, D. Leonor e a filha permanecem algum tempo instaladas no palácio do rei de Castela, onde os infantes de Aragão se transformam nos árbitros da situação. A exilada pensa já no seu iminente regresso a Portugal como regente e tutora dos filhos. A infanta Joana, uma criança de dois anos e três meses, que já fala o castelhano com os nativos e igualmente bem o português com os servidores da mãe, sobretudo com a ama e o colaço, converte-se durante dias no centro das atenções desse grupo de reis, rainhas e infantes cultos, atraentes e apaixonados, que serão imortalizados pelos melhores poetas castelhanos de finais da Idade Média.
De entre eles não se destaca propriamente o príncipe Enrique, um adolescente tímido, cujo nariz esmagado após um misterioso acidente (há quem fale da queda de uma torre durante um terramoto) lhe confere, segundo um cronista, um aspecto vagamente simiesco. Catorze anos antes do seu casamento com Joana, Enrique convive sob o mesmo tecto com a futura esposa, até que a pequena infanta regressa com a mãe ao convento fundado pela sua riquíssima avó castelhana, filha de uma infanta portuguesa, por sua vez filha de Inês de Castro. O príncipe mostra-se por esses dias muito agradecido à sua tia Leonor. É a ela que as crónicas de Castela, ao contrário das portuguesas, atribuem um papel conciliador relativamente à irmã, a rainha de Castela, reconhecida pela falta de sanidade e repleta de desejos violentos, porque além da doença, inata por natureza, das mulheres, que as faz precipitar-se do seu grau de impulso do capricho e ansiar por que tudo se perca de modo a que se cumpra a sua cobiça, os mais avisados consideravam que esta mulher ultrapassava todas as outras, segundo escreverá Palencia anos mais tarde, fazendo uso da mesma misoginia militante que acabará por aplicar em D. Joana». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

Cortesia da Esfera dos Livros/JDACT

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «A companhia de Leonor foi mui o grata à sua irmã, a rainha María de Castilla, atormentada naquela ocasião pelas suas próprias angústias. Funesta foi, no entanto, a vinda de Leonor, funesto também o seu acolhimento…»

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«(…) No dia 29 de Dezembro de 1440, a rainha abandonou a fortaleza do Crato com a filha, ainda criança de peito, seguida pela sua pequena corte de fidelíssimos servidores. D. Leonor dirigiu-se para Arronches, localidade próxima da fronteira com Castela, e dali entrou no seu reino de origem, em direcção a Albuquerque, outrora feudo da sua mãe e naquele momento em poder do irmão, o infante Enrique de Aragão. A infanta Joana de Portugal entrou assim como exilada no reino ao qual regressaria quinze anos mais tarde como rainha consorte. O cronista Alonso de Palencia, coerente com os fins difamatórios da crónica que começaria a escrever no final da vida de D. Joana, não deixaria de se referir à grande influência que as rivalidades da rainha D. Leonor com o cunhado Pedro, e a sua fuga de Portugal, tiveram na formação da personalidade da sua filha mais nova. Na primeira parte daquela obra, chegaria a escrever que o duque de Coimbra detestava D. Leonor e que por inveja procurara uma maneira de a expulsar, ou porque ansiasse pela honra para si próprio, ou por receio da debilidade feminina, que comummente adopta ou sugere maus conselhos, ou porque se ofendera com o rumor popular de uma relação desonesta entre a sua cunhada e o arcebispo de Lisboa. Esta última acusação não só não tinha bases documentais como foi inclusivamente desmentida por um testemunho do próprio regente.

A Rainha Triste
D. Leonor de Portugal não permaneceu muito tempo em Albuquerque. Tinha pressa em falar com o seu cunhado, o rei de Castela, para lhe pedir que a ajudasse a resolver os seus problemas em Portugal. No entanto, o momento não era o mais propício. Embora Alvaro de Luna continuasse fora da corte, as relações entre o monarca e a mulher, a rainha D. María (principal instigadora contra o valido), continuavam muito más, como o tinham sido praticamente desde o dia do casamento. Algo que não favorecia certamente a causa da rainha exilada, que pensara fazer-se valer da irmã como mediadora. Apesar disso, Leonor, com a sua filha pequena, abandonou Albuquerque rumo a Arévalo, feudo de María, para aí falar com a irmã e o irmão, o infante Juan de Aragão, rei consorte de Navarra, principal aliado da rainha castelhana na recente campanha contra o valido Álvaro. Pouco depois da chegada de Leonor, o consorte navarro denunciou num manifesto de agravos o que ele e a liga de nobres opositores do rei castelhano consideravam ser a principal causa das desavenças conjugais entre esse monarca e a sua esposa, e que não era outra que não a intromissão do condestável na vida íntima dos reis. Um documento que convertia as relações sexuais do casal real castelhano em argumento de discussão política e pública.
D. Leonor não se deixou arrastar pelo rancor que dominava a irmã e, poucos dias depois, foi com a filha para Ledesma, onde se encontrava o seu cunhado. Ao não obter do monarca sequer uma promessa de ajuda, decidiu mudar-se para Zamora, ali próximo, onde se viu obrigada a empenhar parte das valiosas jóias que herdara da mãe. Não seria essa a única frustração que a progenitora de Joana teria de enfrentar naquela altura. Estava há muito pouco tempo na vila de Zamora quando recebeu uma mensagem do conde de Barcelos, a quem reclamara a ajuda prometida antes de fugir para o Crato. O conde respondeu que nesse momento lhe era impossível prestá-la, impedido pela presença das tropas do regente nas proximidades dos seus feudos. Leonor não teve outra alternativa que não a de adiar a sua entrada em armas em Portugal e recorrer de novo à hospitalidade da irmã. De acordo com o que contaria trinta anos mais tarde o cronista Palencia, referindo-se à vida da rainha D. Leonor neste período, veio aquela com tristeza e acompanhada da sua tenra filha Joana ao reino de Castela, procurando ao lado da sua querida irmã e dos caros irmãos um lenitivo para a amargura do seu desterro. A companhia de Leonor foi mui o grata à sua irmã, a rainha María de Castilla, atormentada naquela ocasião pelas suas próprias angústias. Funesta foi, no entanto, a vinda de Leonor, funesto também o seu acolhimento e funesta por fim a criação da infanta Joana no reino de Castela». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

Cortesia da Esfera dos Livros/JDACT

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Joana. A Louca. Rainha Joana I de Espanha. Linda Carlino. «… personalidade desta mulher de inteligência arguta e sentimentos nobres, que a fez resistir à traição por parte dos que lhe eram mais próximos e lhe valeu, injustamente, o epíteto de ‘Louca’»

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«(…) Não se lembrava de como ali chegara, mas encontrava-se sozinha no seu quarto. Assim que ouviu a porta fechar-se, abandonou-se ao desespero absoluto. Deixou-se cair no chão, chorando e soluçando, até gastar todas as lágrimas e toda a sua energia, deixando-se ali ficar, extenuada. Maria fora instalada no quarto contíguo, de onde escutava com tristeza. Sabia como a sua senhora ficara ferida com os cruéis acontecimentos do dia e lamentava-o profundamente. - Por tudo o que há de mais sagrado, que se passa aqui? Compreendi que algo não estava bem logo no início e foi por isso que mandei os soldados atrasarem a sua formação, na esperança de que, passado algum tempo, a chegada de mais nobres fizesse crescer aquele miserável grupo de secretários da cidade. Mas não, não arranjaram melhor que uns quantos padres, uma mão-cheia de cavalheiros e damas e a princesa Margarida, vociferou, furioso. - Pelos céus, sei de gente mais inferior que foi mais bem recebida. - Não foi certamente a recepção que esperávamos, concordou Maria. - E onde é que, em nome dos céus, está Filipe? Que jogo está ele a jogar? A sua obrigação é estar aqui, aqui mesmo, neste preciso momento! Como se atreve a mostrar um desrespeito tão flagrante depois de lhe ter alimentado as esperanças? Sei muito bem o que me apetecia fazer ao canalha.

Mas na manhã seguinte chegaram cartas de longe. Lá dentro, as palavras haviam sido escritas a tinta, mas por fora firmavam-se em sangue. Diziam que o seu Rolando morrera numa caçada em Roncesvalles.

Maria contemplou a ama, que descansava, pálida, sobre as almofadas do seu leito de doente. - Foi por causa do poema, inquiriu num tom mais brusco do que tencionara, ou o quarto arrefeceu mais rapidamente do que é habitual? Seja por que for, vou guardar o livro e chamar alguém para acender o lume. Chega de histórias melancólicas; precisamos é de mais calor. A sério, Senhora, não sei porque insistis em vos pordes triste com estes contos deprimentes. Já estais suficientemente triste. Se eu fosse vossa mãe, nunca teria permitido que tais livros chegassem às vossas mãos. Maria deixara de se dirigir à ama e resmungava agora contra o mundo. Moveu-se pelo quarto, escondendo o livro ofensivo e indo à porta chamar alguém que viesse acender o lume. Depois, voltou para junto do leito a fim de apaparicar a doente. Deu laços nas largas fitas vermelhas que apertavam o pescoço e os punhos da camisa de noite de Joana e endireitou-lhe a touca branca e o xaile vermelho. Em seguida, afofou as almofadas e alisou a coberta de pele, sentando-se depois junto ao leito. Um criado chegou, pressuroso, para tratar da lareira, pondo mais toros no lume, que ajeitou e arrastou, causando súbitos estalidos e uma chuva de ruidosas faúlhas vermelhas e amarelas. Depois de ele sair, o quarto ficou em silêncio, com a excepção do crepitar da lareira, do tiquetaque do relógio e do som da chuva, que um caprichoso vento outonal atirava contra as janelas.
A corte real dos príncipes era tão magnífica como o seu nome sugeria. Os aposentos de Joana eram magníficos, deixando todos boquiabertos e o quarto de dormir não constituía excepção. Para além de quente e confortável, era luxuoso e ela nunca vira nada assim. Das paredes pendiam sumptuosas tapeçarias que mostravam cavaleiros lendários que regressavam, triunfantes, de diversos feitos de valor. Todas as peças de mobiliário eram profusamente trabalhadas; as mesas ostentavam jarras, taças e estatuetas da mais fina porcelana. O elemento decorativo mais espectacular era o relógio de ouro sobre a cornija da lareira. Tinha a forma de um castelo. Estandartes dourados esvoaçavam dos cimos das torres e do telhado. Alguns cavaleiros descansavam indolentemente, apoiados nos escudos e outros guardavam a entrada. Das janelas debruçavam-se belas damas, cujos detalhes minúsculos eram requintadíssimos. Quando Joana entrara pela primeira vez naquele quarto, alguns dias antes, ficara espantada com o seu esplendor, admirando todos os pormenores com gritinhos deliciados. Todavia, o frio intenso apagara-lhe essa alegria. - Sinto-me tão infeliz! Quero ir para casa. Maria, nunca vivi tantos dias cinzentos e chuvosos; não admira que esteja doente. Creio que ainda tenho febre. Oh, aqui é tudo tão diferente e tão confuso. Sinto-me tão perdida e sozinha. - Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas que ela deixou correr pelas faces». In Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de E. Presença/JDACT

Joana. A Louca. Rainha Joana I de Espanha. Linda Carlino. «Seriam apenas mentiras? Porque não estava ele presente? Porque se encontrava na companhia do pai? Onde estavam os nobres que deviam representá-lo? Ficou ali, lutando corajosamente para controlar as lágrimas»

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«(…) Todos bradavam pela liberdade, impacientes pela busca de aventura. O capitão e a tripulação alinhavam-se ao longo do convés, esperando, de joelho curvado, o momento de se despedirem da sua preciosa passageira. Os seus brados de ‘Deus vos abençoe’ acalentaram-na e' com um sorriso, Joana virou-se para lhes agradecer. Eles deram vivas, atirando os bonés ao ar. O navio fora ancorado no cais de Bergen-op-Zoom, tendo sido aprontado um longo passadiço através do qual Fradique conduziu Joana até ao passeio empedrado. Como era agradável pisar a solidez e a firmeza reconfortante daquelas pedras, apesar de parecerem subir e descer, quais ondas suaves. Os seus acompanhantes atarefavam-se a seu lado, enquanto o tio a admirava. - Aqui estamos por fim, sãos e salvos, com solo firme debaixo dos pés e vós tão bela. Infelizmente, eles não estão prontos para a recepção. Saberemos o momento de avançar quando os nossos arautos, seguidos dos deles, tiverem anunciado formalmente a vossa chegada. - Em Inglaterra for muito rápido. - Aqui é muito diferente. Tem de ser feito com toda a formalidade, segundo as regras do protocolo. - Não acrescentou que não compreendia o atraso e que estava preocupado. - Gostastes da nossa estada lá?
[…]

 - Vou contar-vos um segredo. Quando ele se despediu para regressar a Londres, declarou: se Catarina, a irmã mais nova desta querida senhora, tiver metade da sua beleza, do seu encanto, da sua graça e da sua inteligência, então terei escolhido a melhor noiva para o meu filho Artur. Joana abriu os olhos de espanto. - Não! Não me estais a dizer que, afinal, ele não era o representante, mas o próprio rei Henrique! E ninguém sabia? - Ninguém sabia. - Fradique riu-se baixinho, deliciado com a admiração dela e levando um dedo aos lábios. - Ah, vejo alguma acção - Já não era sem tempo.
Transportando as trompetas e os estandartes com o brasão, que ostentava os castelos e os leões de Castela, os arautos haviam avançado para a frente do grupo. Os soldados formavam duas magníficas fileiras vermelhas e prateadas e os padres e cortesãos juntavam-se, prontos a colocarem-se segundo o respectivo estatuto e posição.
Uma fanfarra, seguida de outra ao longe, assinalou o início da procissão. Num passo lento e imponente, avançaram em direcção às portas da cidade. Enquanto caminhavam, Joana agarrou a mão de Fradique, sussurrando-lhe: - Vedes Filipe entre os que nos aguardam? - Não, Senhora, ainda não. - Oh, Fradique. - E apertou-lhe a mão com mais força, - Esperai, esperai, tende um pouco mais de paciência – insistiu ele, controlando também a sua crescente inquietação.

Um pouco mais à frente, o coração de Joana começou a bater descompassadamente. Tentara tanto ser corajosa, indo buscar as forças necessárias para aguentar a recepção até ao fim, mas as coisas não estavam a correr conforme o planeado. Havia algo de errado. Tinha a certeza. Porque os haviam feito esperar tanto antes de se dar início ao cortejo? E por que motivo havia tão pouca gente reunida para a receber? A sua diminuta coragem desaparecia rapidamente. Do seio de um comité de recepção bastante escasso, destacou-se um grupo mais pequeno. Joana observou as quatro figuras, consternada. Quatro pessoas: dois bispos, um padre qualquer e uma dama jovem. Não havia mais ninguém! Ninguém mais se lhes juntou. Apenas aqueles quatro. Nada de Filipe. Não se encontrava ali. Filipe não se encontrava ali! Joana cravou os dedos no braço de Fradique. - Ma chère Jeanne, nôtre soeur, sois bienvenue! - a jovem dama sorriu e estendeu ambas as mãos para dispensar a Joana umas boas-vindas o mais calorosas possíveis. Joana largou o braço do tio a fim de corresponder à saudação e devolver o sorriso, num esforço débil e triste. As princesas beijaram as mãos uma da outra. - Querida Joana, é tão bom ver-vos por fim, sã e salva após uma viagem tão longa. Sede bem-vinda ao vosso novo lar. - Após um silêncio constrangido, prosseguiu': - Sou Margarida e estou aqui para vos saudar em nome do meu irmão Filipe, que se encontra ainda em Innsbruck com o meu pai. Creio que as negociações não estão ainda terminadas, mas falaremos disso mais tarde, tendes necessidade de descansar. Vamos levar-vos para uma casa belíssima não muito longe daqui, que pertenceu ao meu avô. Gosto muito dela e tenho a certeza de que também vos agradará e que achareis tudo a vosso contento.
Podereis descansar confortavelmente, enquanto os vossos pertences são descarregados, e tereis tempo de recuperar da viagem. Estou ansiosa por saber tudo de vós e da vossa família, em especial de João, o meu prometido. Quero saber absolutamente tudo... Joana sabia que Margarida falava sem cessar numa tentativa de esconder o seu profundo embaraço. Quanto a si própria, necessitou de todas as suas forças para manter a dignidade e ocultar o quanto sofria. A insultuosa falta de honrarias e, como se isso não fosse suficientemente humilhante, a desconsideração pública por parte do seu futuro marido, que não mostrara qualquer respeito pela sua chegada, era insuportável. Filipe sabia da sua chegada! Devia estar presente para a receber! Pensou na sua carta, em todas as suas palavras impacientes. Seriam apenas mentiras? Porque não estava ele presente? Porque se encontrava na companhia do pai? Onde estavam os nobres que deviam representá-lo? Ficou ali, lutando corajosamente para controlar as lágrimas, de cabeça erguida, sorrindo e cumprimentando, enquanto lhe apresentavam diversas pessoas. No seu âmago existia apenas uma solidão avassaladora». In Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de E. Presença/JDACT