Sucinta descrição de Cabo Verde, do cabo da Boa Esperança e da ilha Bourbon
«(…) Dobrámos o cabo da Boa Esperança com bonançoso tempo; este lugar,
que é o mais meridional da África, está situado sob o grau 37 º de latitude a
sul da linha; os holandeses estão ali estabelecidos desde há muito, e ali
edificaram mui formosa fortaleza e uma cidade. O porto é assaz bom, e todas as
naus que da Holanda rumam às Índias, ou que das Índias tornam à Holanda, sempre
lá param, e em abundância topam com quanto precisam para restaurar a marinhagem
e para consertar os estragos que as naus no mar sofreram. As demais nações da Europa
vão também amiúde restaurar-se ao cabo da Boa Esperança, que é assim como a
metade do caminho da Europa às Índias. Os habitantes deste cabo não são tão
negros como os de Cabo Verde, mas nem por isso são mais amáveis nem benignos;
religião, não na têm quase nenhuma, e vivem como vagabundos, passam a vida na
caça e na pesca, nutrem-se de milho miúdo e não se dão ao trabalho de erguer cidades;
aqui se topa toda a sorte de animais ferozes, como na África sobrante, e
particularmente grande cópia de rinocerontes.
Como passámos muito ao largo, não pudemos enxergar o dito Cabo, mas
continuámos o nosso caminho e fomos aportar à ilha de Madagáscar, que os nossos
franceses, desde que nela estão, chamaram ilha Bourbon, situada sob o grau 21º.
Bourbon e a ilha Maurícia, que desta só dista 25 léguas e é posse dos holandeses,
são as mais sãs e mais agradáveis do mundo, lá se encontra caça de todo o
género em abundância, sendo os rios e os pegos mui piscosos, tanto como as costas
do mar. Na ilha Bourbon há grande profusão de tartarugas de terra e de mar. São
estas últimas de grande valimento nas longas viagens, pois se podem conservar
vivas durante obra de dois meses, viradas do avesso e regadas uma vez por dia. As
terras são ali tão boas que tudo quanto se lhe deita a semear, nelas cresce em
perfeição, e mui leve é o trabalho que elas dão no cultivo; tão sadio é lá o
ar, que desde há quarenta anos não há notícia de nenhum francês enfermo, e
todos quantos ali aportam com maleitas, em pouco tempo reavêm perfeita saúde,
por mais aflitivo que seja o estado em que venham. O porto não é mau, da banda
de oriente; chamam os nossos a este retiro país formoso; há ainda uma baía para
as bandas do arraial povoado de S. Paulo, porém sem segurança para as naus
quando surdem furacões, que de usança despejam ventos em Fevereiro e Março; não
se vê por isso quem aborde estas ilhas durante tal estação; no resto do ano, a
calmaria reina quase sempre nestes mares, podendo pois a gente abordar e lançar
âncora nas suas baías sem receio.
Mal se fincaram as âncoras, levámos a terra os nossos enfermos, e o
clima benigno e salutar deste agradável país, a que tantos viajeiros já
chamaram Paraíso Terreno, junto aos cuidados que lhes demos para seu
refrigério, tão pronto e tão bem os restaurou, que ao cabo de quinze dias nem
ar tinham de haver sido enfermos. Sobejamente restaurada toda a marinhagem, após
havermos ficado com tantas provisões quantas queríamos, levantámos âncora e
demos à vela rumo à ilha Delfina, aonde ditosamente aportámos depois de oito
dias de navegação.
Da ilha Delfina, ou de S. Lourenço
Esta ilha, que os nossos franceses nomearam Delfina,
e que os portugueses primeiramente chamaram de S. Lourenço (actual ilha da
Reunião, descoberta no século XVI por Pedro Mascarenhas, também era conhecida
pelo nome desse navegador português), é uma das maiores do mundo, tendo de
circunferência 750 léguas. Está situada, em longitude, desde o grau 8.º, e vai
até ao 27.º de latitude meridional; de África se diz ser, pois mais vizinha é
deste que doutro qualquer continente; em todo o seu redor há diversas ilhas pequenas,
como as de Santa Maria, para as bandas da baia de Antongil, e as Mayotte, da
banda de Moçambique. Os ingleses por ali passavam amiúde noutros tempos, e
haviam até edificado um pequeno povoado na baia de Santo Agostinho, que fica
para a banda do grau 25.º sul, e a oeste da ilha. Os holandeses também se
demoraram pela baía de Antongil, e desde que deixaram de ali manter oficiais
portageiros, não deixaram por isso de lá ir de vez em quando carregar arroz,
despachando-o para Batávia, cidade que fica junto de Bantam, na grande ilha de
Java, e que é a capital de todas quantas possui a Companhia Holandesa nas
Índias». In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687,
Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel
Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN
972-608-075-4.
Cortesia de E. Antígona/JDACT