Ramalho Ortigão ou o Republicanismo pequeno-burguês
«(…) Há um outro, talvez
afinal ainda mais importante, que é o da consciência de degradação da vida
política portuguesa por volta de 1870.
Prova-o, entre outros, este texto de 1874,
extraído de As Farpas, texto
em que Ramalho se refere sobretudo à falta de representatividade do Parlamento:
A representação nacional há muito que está sendo em Portugal uma farsa
ridícula para a ciência e uma vergonha pública para o patriotismo. A câmara é
de uma ignorância enciclopédica. Erra e insulta, e não se esclarece nem se
desafronta, o que prova que não tem ciência e que parece não ter carácter.
(...) Faltam à câmara as ideias políticas e faltam-lhe os princípios morais.
Daqui resulta uma perturbação insanável, um mal sem cura. É a corrupção, é a
gangrena, é a paralisação senil afectando o jogo de todo o maquinismo
constitucional. Temos o sossego interior e temos a paz no estrangeiro; gozamos
da liberdade política e da liberdade individual; e, não obstante, no país todo
há um surdo descontentamento geral. (...) Em Portugal, os partidos acabaram há
muitos anos. Não existem divergências de opinião sobre qualquer princípio
capital que interesse o país inteiro. Como o interesse do país desapareceu, a
urna fica entregue ao arbítrio da autoridade, e os círculos eleitorais convertem-se
em burgos podres. Os regeneradores com os cabos de polícia elegem a maioria, os
grandes proprietários com os seus caseiros e os seus amigos votam nas
oposições. A vontade popular é muda e passiva, o que quer dizer que as fontes
íntimas da vida nacional estão obstruídas ou secas. (...) O país inteiro vive
numa miséria baixa, numa pobreza degradante, sem a altivez, sem o brio dos
pobres valentes, que nunca dobram a espinha nem estendem a mão.
Na altura em que
escreveu este texto, já Ramalho deixara o Porto e, em Lisboa, entrara
para o grupo do Cenáculo, ao
qual pertenciam também Eça de Queirós, Oliveira Martins, Antero
de Quental, Guilherme Azevedo, Guerra Junqueiro, Jaime
Batalha Reis. Este grupo, de que o principal mentor era Antero de Quental, não discute só
literatura, mas propõe-se também organizar um plano de acção ideológica, plano de
que resultaram as Conferências do Casino, em que se atacam as instituições da
época.
A colaboração entre Ramalho
Ortigão e Eça de Queirós, que data do período do Cenáculo, e que se concretiza com
a publicação no Diário de Notícias (24 de Julho a 27 de Setembro
de 1870)
de um escrito singular, O mistério da estrada de Sintra,
e do primeiro número de As Farpas
(Maio de 1871), interrompe-se com a partida de Eça (9 de Novembro
de 1872)
para Cuba, onde vai exercer o cargo de cônsul.
É mais precisamente na
segunda fase de As Farpas que
se revela o republicanismo pequeno-burguês de Ramalho, tornado um
discípulo do futuro presidente da Primeira
República portuguesa, Teófilo Braga, e do seu positivismo
comtiano extremamente limitado. Ramalho
é então, mais do que nunca, um propagandista da ideologia republicana e
permaneceu como tal, ainda que na última fase da sua vida se volte para a
monarquia mais tradicionalista. Este republicanismo pequeno-burguês
manifesta-se, sobretudo, através do seu anti-clericalismo, de que nos dá
exemplos abundantes nas Farpas:
A raça portuguesa foi lentamente e surdamente corrompida pelo antigo
despotismo monárquico, pela soberba intrépida e bulhenta dos fidalgos, pelo
ouro das conquistas e principalmente pelo monasticismo. Fizemo-nos ociosos,
vaidosos, pusilânimes, supersticiosos e fanáticos. A religião, mais clerical
que divina, penetrando-nos completamente, dando-nos uma lei infalível para
a consciência, proibindo-nos de pensar (...) lançou-nos na inércia passiva a respeito
do problema dos nossos destinos mais elevados. Ensinaram-nos a explicar a culpa
pela tentação do demónio e a considerarmo-nos inocentes pela absolvição dos
confessores. Com semelhante teoria, o dever e a responsabilidade desaparecem. A
consciência cai na imobilidade.
Por vezes, a este
anti-clericalismo vem juntar-se um outro tema característico dos ataques da
propaganda republicanista ao regime monárquico decadente. Esse tema é o do
sistema colonial português. Ramalho põe em relevo, sobretudo, a sua
pouca eficácia como sistema de civilização. Veja-se, por exemplo, este texto
das Farpas que data de
Maio de 1879 e que aborda a questão africana:
Desde o século XVI até hoje os padres têm sido o único instrumento da
civilização empregado pelo governo português no regime colonial. No século XV
as nossas relações comerciais com a África achavam-se organizadas. (...) Depois
de João II a decadência da África principia pelo desvio das atenções para a
Ásia e para o Brasil e pelas guerras dos holandeses, e continua até aos tempos
modernos mantida progressivamente pelo tráfico ruinoso e dissolvente da
escravatura. (...) Na trajectória do nosso destino houve uma solução de continuidade
entre o século XVI e a idade moderna. O despotismo monárquico e o despotismo
teológico despedaçaram a cadeia das nossas tradições. O regime liberal, por
falta de critério científico, não soube ainda ligar o fio da nossa actividade
presente ao forte impulso da antiga civilização, violentamente truncada durante
mais de três séculos pelos agentes mais perturbadores do movimento progressivo
de uma sociedade.
A este anti-clericalismo
e a este ataque, de uma maneira geral, ao regime monárquico, acrescentam-se um
moralismo e um didactismo de origem sociológica (sem, no entanto, terem nada
a ver com o socialismo utópico de Antero) que reforçam, em várias passagens
das Farpas, a ideia de
republicanismo pequeno-burguês». In Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70 -
Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,
Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Livraria Bertrand, 1986.
Cortesia do Instituto Camões/JDACT