«Desde há muito que
entre os historiadores da sociedade medieval europeia se consolidou a noção de
que durante o século XIII se verificaram mudanças substanciais nos
comportamentos e valores sociais, culturais e políticos dos vários reinos da Cristandade.
Dentro das diversas alterações que aquele período conheceu uma delas sobressai
em absoluto. A noção de que este é o século onde numa Europa profundamente Católica,
a Igreja perde alguma da sua influência e capacidade de governação. Não no que
concerne ao seu universo específico, aí no plano espiritual e na gestão dos
seus patrimónios, continuam
exímios e o modelo de organização a que chegam é quase perfeito. A viragem, ou
seja o problema, está na maneira como foram administrando e actuando sobre a
sociedade civil. As grandes modificações que os movimentos reformistas e de
transformação cultural ocorridos ao longo do século XII foram introduzindo e
consolidando, e que encontravam cada vez mais eco na sociedade laica, tendiam a
escapar ao controlo da Igreja. A Europa secularizava-se em todos os campos onde
existia actividade humana: na arte, na literatura, na economia,
nas instituições e, claro, na política. Interessa explorar um dos
caminhos visíveis e determinador na forma como a opinião pública daqueles
tempos se alterou. Esse caminho é o que leva à laicização da sociedade medieval
europeia e da forma como ela se expressa na realidade portuguesa, em especial
durante o reinado de Sancho II. A afirmação de novos valores políticos na
Europa, onde o papel do soberano e da sociedade laica ganham cada vez maiores
adeptos e a ideia de Reino, cada vez mais, se consubstancia, numa realidade
tendencialmente homogénea e coerente, garantida pela continuidade física e
política entre o centro de poder e as fronteiras e, claramente desfavorável à
manutenção dos velhos subsistemas feudais e esferas de influência regionais. No
processo de laicização da sociedade percebemos que o poder se transfere da Igreja
para o Estado, em muitas das suas componentes. Desde a alta Idade Média que a Igreja
controlava o sistema político europeu. A ênfase atribuída à ideia de
Cristandade sobrepunha-se (ou devia sobrepor-se no entender da Igreja) a
qualquer outra definição.
O indivíduo devia a sua
obediência a esta noção. Em primeiro lugar era um cristão, era aqui que estava
a base da sua existência, depois vinham as outras ligações, onde as nacionais ocupavam
o último lugar da hierarquia. A Christianitas
era o laço mais forte entre os europeus, criando a expectativa de uma
Europa pan-nacional, com um nacionalismo
específico e traduzido nos exércitos que se armavam para as Cruzadas.
Promovia-se a livre circulação
e estabelecia-se um controlo supranacional sobre todos os aspectos da sociedade
europeia onde o poder residia nas mãos do papa. Era, para o clero, uma situação
satisfatória. Politicamente, controlavam os diferentes reinos europeus, cujas
dificuldades de coexistência pacífica eram conhecidas. As disputas de
fronteiras entre reinos e entre casas senhoriais eram uma constante; a guerra
entre países cristãos uma certeza política, situação que era intolerável para a
Igreja, que pregava os valores da paz e da justiça. E este aspecto leva-nos por
um novo caminho. Parece-nos ser a Igreja a primeira a abrir o ferrolho à
entrada de novas ideias, em especial aquelas que podiam vir a alterar alguns
modelos de comportamento na liderança dos reinos. Se os ideais de paz e de
justiça apregoados pela Igreja desde sempre pudessem ser garantidos pela
fortificação da ideia de soberania do rei, tanto melhor.
De certa forma os eclesiásticos ocidentais abriam o caminho a reformas
profundas, que a breve trecho iriam contribuir para uma inevitável laicização
da cultura política europeia. Neste trilho que os reinos europeus vão
percorrendo para a sua autonomia estão em causa outros aspectos vitais à
sociedade. Não é apenas a questão militar aquela que provoca desagrado ao
clero, também o aumento das transacções comerciais e da capacidade produtiva os
deixa apreensivos. A expansão da economia medieval, em particular a dos centros
urbanos, e a ocupação de novos espaços precipita a necessidade de existência de
governos centrais mais organizados e fortes. Se a Igreja pouco faz pelo desenvolvimento
das actividades comerciais, por outro interessa-lhe (e participa activamente
nisso) que os sistemas monárquicos sejam mais eficientes e capazes na administração
e controlo dos respectivos reinos. Mas, a prazo, a eficiência demonstrada por
algumas monarquias no controlo da sua economia e a dinâmica que as novas legislações
dão aos espaços e cidades em expansão, modificam o tradicional sistema de obediência.
Cada vez mais o Estado, através do mero exercício do seu poder, substitui a Igreja
nas relações com os governados. Assistimos, em muitos países, à introdução de novos
modelos de governação, sustentados pela elaboração de um quadro legal com tendências
mais generalistas e por um corpo de oficiais régios que passam a controlar o normal
exercício do poder central em todas as regiões do reino. Modifica-se a velha ordem.
As esferas de influência regional que muitas vezes asfixiavam e limitavam o poder
dos monarcas em séculos anteriores são substituídas por uma nova noção de espaço governado. O rei governa
um regnum, que estende de
forma contínua até às fronteiras. O Centro assume-se cada vez mais sobre
as periferias através da Lei, que emanada da Cúria e movimentada
por oficiais e tabeliães desses reinos cristãos garante um controlo do espaço e
das actividades nele desenvolvidas cada vez mais apertado». In
José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de
Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras,
Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.
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