sábado, 23 de novembro de 2013

Inês de Portugal. Pequenos Prazeres. João Aguiar. «El-rei Afonso de Portugal há-de morrer, como todos os outros reis. Por fim tudo dependerá da vontade do Infante e da vossa. Vou falar-vos sem rodeios: pela minha voz, é a vossa linhagem que vos diz…»

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De profundis clamo ad te, domine
«(…) João Afonso não responde imediatamente. Por muito que a ideia o incomode, sabe que o chanceler tem razão. Eu o diria, Álvaro Pais, murmura. Eu o diria, se D. Inês de Castro não houvesse parentes tão poderosos e com tanta ambição. Porque sem tais irmãos, ela me parece inocente. Talvez replica Álvaro Pais sorrindo com tristeza. E nada mais adianta. Pareceria inocente, sim, é sempre esse o efeito que a beleza produz na juventude e até aos mais velhos, que deveriam ter mais siso. E D. Inês era bela. Mais que isso, resplandecia como o sol das manhãs de Verão, trazia consigo a doçura, a graça a nobreza das terras de Galiza. Mas que importa, se atrás dela pairavam os irmãos, como espíritos do mal. Álvaro Pais sabe-o bem. Não esquecerá em toda a sua vida a visita de Álvaro e Fernando de Castro fizeram a D. Inês, quando já a corte fervilhava de rumores porque era certo que Pedro, então infante e herdeiro, a amava, e a sua mulher, D. Constança, morrera de parto. Álvaro Pais sabe o que se passou durante essa visita como se houvesse estado presente, pois pagou bem caro a Martim, o bobo do infante, hoje do rei. Martim, que sabe deslizar como sombra, confundir-se com reposteiros e colunas que tudo ver e tudo ouvir. E chamam-lhe louco!
D. Inês estava linda, nesse dia. Muito alegre, respondia aos gracejos de Fernando, o mais novo dos dois irmãos. Colo de garça, eu!, exclamava a rir. Pois viestes de Castela só para me dizer sandices? Andai, guardai esses galanteios para outras donzelas a quem quiserdes partir o coração. E Fernando, sorrindo, replicava: - Não são meus os galanteios, nós os ouvimos desde que entrámos em Portugal. E assim, sois vós que partis o coração dos moços, na corte de el-rei Afonso. Mas já Álvaro, maciço e sombrio, intervinha, impaciente por falar de coisas mais sérias: - Dizem mesmo que é vosso o coração do mais principal de todos esses moços. - … O Infante, completou Fernando, baixando a voz. D. Inês tornou-se repentinamente grave. – Ah, agora vos entendo. Assim me faláveis falso. – Falso? Pois o infante não vos quer? Falso, repetiu D. Inês, porque decerto vos falaram mal de mim, e não bem. Decerto vos disseram que enfeiticei o infante Pedro. Sois meus irmãos, devíeis conhecer-me melhor, nunca eu alevantaria os olhos para o Infante. De mais, sou madrinha do seu primeiro filho. E Fernando, com o seu sorriso de moço ardiloso: - Que já morreu, pobre pobrezinho.
D. Inês continuava a defender-se enquanto cedia: - Mas que posso eu? Vós não o conheceis… Sim. Eu amo Pedro, não me julgueis mal. Então, contou Martim, o mais velho, Álvaro, teceu outra malha na intriga afivelando a máscara da falsa virtude, que era também a máscara do verdadeiro orgulho: - Julgar-vos mal? Não falamos nós aqui de amores de pastoras co bufarinheiros. Julgar-vos mal? Vós sois uma Castro! Pedro é infante e será rei! Não cabe aí julgar e vós sois bem acima de todo esse maldizer. Logo a secundá-lo, Fernando sussurrava: - Atentai, D. Inês, que esse amor que o infante vos tem é a vontade de Deus ordenando as vontades dos homens. Haveis de saber o que o destino entregou nas vossas mãos… E mais insinuante ainda, rematava: - … Uma coroa, D. Inês. Rainha de Portugal. – Não cuido eu disso! Mas o rido dela, disse Martim, não era descuidado, nem a ideia lhe era de todo estranha. O irmão, Fernando, há-de tê-lo entendido, pois prosseguiu: - O infante é moço, e ama-vos. E no reino, só ele me ama, retorquiu D. Inês, cautelosa. De mais, bem sabeis que um novo casamento haveria de ser decidido por el-Rei. Então, Álvaro decidiu-se a falar de modo ainda mais claro, o que fez Martim recuar, recolher-se para não ser descoberto, pois disso, compreendeu bem, dependia a sua vida: - El-rei Afonso de Portugal há-de morrer, como todos os outros reis. Por fim tudo dependerá da vontade do Infante e da vossa. Vou falar-vos sem rodeios: pela minha voz, é a vossa linhagem que vos diz: haveis de ser rainha. E direis vós, sem mentir, que tal não vos apraz?» In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.

Cortesia de ASA/JDACT