Da ilha Delfina, ou de S. Lourenço
«(…) Os franceses ali se estabeleceram desde há muito; mudaram mui
amiúde o arraial povoado, até que alfim o principal foi fixado ao pé do promontório
de Ditapere, junto às funduras duma enseada que chamaram de Angra Delfina, e à
fortaleza que lá edificaram também deram o nome de Forte Delfim. Não é ruim
este porto, e poucos são os ventos que ali hão-de estorvar as naus; porém de
boa guarda deve pôr-se quem lá quiser entrar, que não fique debaixo de
ventania, pois tão custoso é voltar a alcançá-lo, que muito amiúde se levam
meses para botar remendo ao descuido duma hora. A nossa nação fizera ainda
colónias em vários outros sítios de S. Lourenço, como em Galamboule, na ilha de
Santa Maria, e na baía de Antongil, que é uma das mais formosas em todo o
Oceano; tendo porém a Companhia das
Índias ajuizado serem as ditas colónias coisa sem préstimo e ademais nocivas
ao seu comércio, desamparou-as desde há muito.
Em vista da Delfina Fortaleza que foi usual morada dos governadores e
depois dos vice-reis, só uma casa de pedra fora levantada. É, toda a ilha de
Madagáscar mui povoada e fértil, abundante em gado e abelhas; são de cor vária
os habitantes, sendo ainda assim a maioria negros; porém há-os quase tão
brancos como os europeus. Não conhecem civilidade alguma nem cerimónias,
tirante os que moram nos litorais da banda norte da ilha, que possuem do maometismo
uns parcos laivos, pois todos os mais de religião nem sombras conhecem. São
gente ufana e fera, cruéis, libertinos, vingativos, tanto que nem exprimir se
pode, ladrões e sem palavra. Vezes sem conta sofreram os nossos franceses quão
arriscado era fitarem-se-lhes nas promessas; e as traições amiudadas alfim os
desenganaram e os resolveram a largar de todo desta ilha, cujos habitantes são
os mais infiéis do mundo. Primeiramente se julgara ser possível dar ali certo
fruto ao espiritual, assim se esperando que as instruções da fé cristã
amansassem o humor feroz e intratável que os faz incapazes de vida em sociedade;
mas o zelo dos nossos missionários em vão se viu esgotado, e jamais se notou
que hajam os naturais aproveitado dos cuidados postos a instruí-los; pois não
só os adultos tornavam aos seus desmanchos, mal saíam da companhia dos franceses,
mas até aqueles que haviam sido criados com a mais especial aplicação dos
seminários, mal deixando os nossos padres, em crescendo, logo tornavam a viver
entre os seus na mesma libertinagem, como se nunca tivessem ouvido falar do
cristianismo.
O comum sustento destes povos é o arroz, e assim também raízes de vária
espécie; colhem também ervilhas e favas, diferentes porém das da Europa; também
têm muita fruta, e são gente de grande apetite; mas em tempo de penúria admiravelmente
suportam a fome. Se bem que haja vinha na ilha Delfina, não a sabem
cultivar seus habitantes, nem da uva conhecem as boas qualidades; a sua comum
bebida é a água, e nas festas públicas bebem hidromel, que muito bem o fabricam,
e tão forte que embriaga como o nosso vinho. A usual ocupação destes ilhéus é a
guerra, que movem uns aos outros a bem dizer continuamente; em tempo de paz
apascentam os rebanhos, ou dedicam-se à pesca; toda a ilha está banhada por uma
infinidade de rios, onde não falta peixe. Singulares são os bois desta ilha,
que têm no lombo uma espécie de lúpia, amiúde tão grande como duas vezes o
tamanho da própria cabeça; alguns vi eu de cujo quisto houve quem tirasse obra
de trinta libras de banha derretida; visto ninguém fazer manteiga nesta ilha, a
dita banha faz-lhe as vezes, e os franceses, semelhando os negros, não mostravam
escrúpulo nenhum ao servirem-se dela para os molhos, e até durante a Quaresma.
Nas partes costeiras de Lambregis, por elas adiante,
os cerdos são gulosos do precioso betume que por lá há, e os naturais, que não
ignoram de todo as boas qualidades, com mil cuidados andam à cata dele, e
fumam-no com o tabaco; não obstante, quando topam estrangeiros que o queiram comprar,
de boa mente o trocam por pulseiras, coralinas ou panos pintados, que são as
coisas que mais estimam; não fazem caso, no geral, de ouro ou prata, e há
sítios até em que se interessam mais por estanho ou cobre do que por aqueles
dois metais, por mor dos quais as nações da Europa tanta avidez e tanto zelo
mostram». In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687,
Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel
Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN
972-608-075-4.
Cortesia de E. Antígona/JDACT