Ciência e Religião. Natureza
e Símbolo
«A ideia segundo a qual a natureza se opõe à religião, como o progresso
ao obscurantismo, foi uma das mais expressivas consequências do positivismo
oitocentista, de algum modo reforçada por uma filosofia da história unilinear e
universalizante, que nos propunha uma imagem dos grandes períodos de progresso,
cultural e social como momentos de irreligiosidade ou, pelo menos, de crítica destrutiva
da tradicionalidade do pensamento religioso e dos seus dogmas. Cabe, no
entanto, referir que a formulação do problema nestes termos não deixa de comportar
alguns equívocos, dado que o triunfo
da natureza, não implicou, por si só, e necessariamente, a
irreligiosidade ou qualquer cisão com a ideia fundamental de sobrenatural, a qual depende, afinal, da
constituição expressa de uma ideia de natureza.
Importa, assim, acentuar que contra a ideologia positivista, uma das mais
interessantes contribuições das ciências sociais do nosso século consistiu na
superação dos limites do pensamento conceptualista, no âmbito de uma
compreensão global e mais ampla do humano. Passa por aí a reintrodução, no
nosso universo mental, do simbólico, ocultado por três séculos de racionalismo,
que privilegiaram os modos de
expressão conceptual.
Temos vindo a assistir à chamada de atenção para o papel fundamental do
símbolo, nomeadamente para sua peculiar e insubstituível função de transfiguração
da realidade concreta, em ordem a fornecer, ao conjunto de indivíduos que o
reconhecem, uma linguagem particular,
religando cada ser a uma comunidade
de significado mais vasto, seja ele sociopolítico ou essencialmente espiritual.
Reconhece-se, assim, que a função simbólica, de que os grandes sistemas
religiosos foram, em boa medida, os principais depositários, nos fornece uma
linguagem própria, funcionando não apenas horizontalmente, na relação de cada
indivíduo com a comunidade em que se sente integrado, mas também verticalmente,
na definição das suas relações com o divino, descortinando-se, em qualquer dos
casos, a presença inelutável do sentido. Como recentemente reconheceu, em obra
já clássica, Gilbert Durand, a galáxia
do imaginário, transformou-se naquilo que se poderia designar como o céu epistemológico que se
levanta na aurora deste final de século, mediante uma revisão profunda da noção
newtoniana de causalidade e do seu suporte espaço temporal.
Assim, o imaginário é-nos ai apresentado como uma função geral do equilíbrio antropológico, determinando a
remoção da tese positivista que à luz da lei
dos três estádios, nele apenas via um modo primitivo de conhecimento
que importaria, então, superar, por justos motivos. Esta tese cristalizará,
como é sabido, num contexto histórico de primazia do cientismo, que afuma como
valores supremos a ciência físico-química, imperante até ao início do século XIX.
À luz desta perspectiva antropológica contemporânea,teremos pois de recusar a
secundarização do símbolo, por isso que nem a psicologia da criança, nem a
psicologia do homem primitivo, nem a análise do processo de formação da imagem
no adulto civilizado permitem afirmar que o símbolo seja secundário em relação
à linguagem conceptual. O símbolo continua a desempenhar uma função essencial
em todas as sociedades, desde as consideradas primitivas, às mais evoluídas.
A sua função permanece 1nvariável: a de transformar um objecto ou um acto em
algo diferente daquilo em que estes são tidos na experiência quotidiana. Nada
permite, pois, concluir que o sentido
próprio, tem primazia, tanto cronológica como ontologicamente, sobre o sentido figurado. Neste sentido,
o culto da objectividade,
mediante a secundarização do simbólico, aparece ligado a uma Weltanschauung que confere a primazia ao
em si objectivo, em detrimento
do para si, subjectivo. Ora, o
ideal de uma inteligibilidade radical, estabelecendo a transparência do mundo ao
pensamento, encontra um inelutável limite na própria estrutura do espírito
humano. É isto que determina que, como diz Durand, todo o sistema de razões
transporte sempre consigo os seus próprios fantasmas, sem se desembaraçar, por
isso, de um constante halo imaginário».
In
Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-27-0700-0.
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