domingo, 29 de setembro de 2024

Sermão da Sexagésima. Padre António Vieira. «Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim»

Cortesia de wikipedia

Pregado na Capela Real, no ano de 1655. Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII

«Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci?, disse o mesmo Deus por Isaías.

Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação:

Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por agudos, as pedras por duras». In Sermões, padre António Vieira, 1655, Sermões Escolhidos. v.2, São Paulo, Edameris, 1965, Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, Universidade de São Paulo, Universidade de Santa Catarina, Wikipédia.

Cortesia de USCatarina/Wikipedia/JDACT

 JDACT, Padre António Vieira, Século XVII, Sermões

Sermão da Sexagésima. Padre António Vieira. «Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós»

Cortesia de wikipedia

Pregado na Capela Real, no ano de 1655. Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII

«(…) Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.

III

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa» In Sermões, padre António Vieira, 1655, Sermões Escolhidos. v.2, São Paulo, Edameris, 1965, Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, Universidade de São Paulo, Universidade de Santa Catarina, Wikipédia.

 Cortesia de USCatarina/Wikipedia/JDACT

JDACT, Padre António Vieira, Século XVII, Sermões,

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Apelidados de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para abandonarem os usos judaicos tradicionais, promessa essa que se veio a revelar falsa ao longo das duas décadas de intolerância e perseguições que se seguiram»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) O último Cabalista de Lisboa é, em si, um pouco um enigma. Porque terá sido escondido na cave de Ayaz Lugo? Porque será que não é referido pelos manuscritos judaicos seus contemporâneos? Nunca terá sido publicado? Dado o seu objectivo de alertar os cristãos-novos e os judeus para o permanente perigo que corriam na Europa, Berequias devia ter tentado seguramente dar-lhe a maior divulgação possível. Várias explicações me foram propostas por Ruth Pimentel, da Universidade de Paris, que mais tarde foram seguidas pela maior parte dos demais especialistas no campo da literatura sefardita medieval que consultei. Antes de mais nada, a depreciativa caracterização que Berequias faz dos cristãos-novos e o seu declarado apelo aos judeus e aos cristãos-novos para que abandonem a Europa haveria certamente de enfurecer os reis europeus e as autoridades religiosas, em particular os inquisidores de Portugal e de Espanha. Se ele levasse a sua obra para a Europa cristã, as cópias que fossem descobertas haveriam de ser eliminadas e queimadas. É também provável que a sua ardente defesa da imigração judaica haveria de irritar os dirigentes das enfraquecidas comunidades judaicas da região, tanto os agrupamentos secretos sefarditas em Portugal e em Espanha como as comunidades mais abertas dos asquenazins nos países do Norte da Europa. Estes judeus ou cristãos-novos, que tinham um interesse espiritual, emocional ou monetário para permanecer na Europa, poderiam igualmente suprimir os seus escritos. Para mais, o modo como Berequias trata questões como o sexo e o cisma entre cabalistas e autoridades rabínicas poderia ser considerado demasiado directo para que certos leitores o pudessem apreciar. Os seus escritos seriam certamente considerados tabu por muitos dirigentes judaicos conservadores que procuravam resistir à era do judeu secular que se aproximava. Apesar de me suscitar dúvidas, não posso deixar de referir uma outra teoria: é possível que o próprio Berequias tivesse suprimido os seus escritos; não só por não ter querido expor a perseguições os judeus secretos mencionados no texto, como também porque a excomunhão por alegada heresia não era nada de desconhecido. Apesar da veemente necessidade de avisar os judeus da Europa do destino que seu tio pressagiava, pode ter receado ver-se cortado da sua comunidade, como o foi outro judeu de origem portuguesa um século mais tarde, Baruch Espinosa. Talvez tenha feito circular em segredo cópias do seu livro, pedindo aos seus leitores que não revelassem o conteúdo nem mencionassem sequer a sua existência. Será talvez essa a razão por que não tem título. Outra razão, bem mais desencorajante: quem sabe se não o mataram ao tentar reentrar em Portugal e salvar a sua prima Reza? As cópias das suas obras que tivesse escrito e levado para a Ibéria teriam assim certamente perecido com ele. Apenas as que tinham ficado escondidas em Constantinopla teriam sobrevivido. Quanto ao esconderijo, o mais provável é que os manuscritos tivessem sido ocultados para os proteger durante o período nazi; a cobertura de cimento data desse tempo. Lembremo-nos que os cristãos-novos portugueses emigraram em massa ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, sobretudo para a Turquia, Grécia, Norte de África, Holanda e Itália, regiões que mais tarde se veriam ameaçadas ou ocupadas pelo Reich alemão. Por exemplo, nos finais do século XVI, como resultado da emigração dos cristãos-novos, só Constantinopla contava com uma comunidade judaica de 30 000 pessoas e 54 sinagogas, a maior da Europa. Durante a II Guerra Mundial, a maior parte dos judeus ibéricos que viviam na Grécia, Bulgária e Jugoslávia, 200 000 ou mais, foram presos e morreram nas câmaras de gás. Se considerarmos o apelo de Berequias para que os judeus e cristãos-novos deixassem os países cristãos, é interessante notar que a comunidade judaica na Turquia muçulmana contava com a protecção do Governo e escapou inteiramente à destruição. Apesar disso, o proprietário ou proprietários dos manuscritos de Berequias, talvez os pais de Lugo, teriam justamente receado o alastramento das perseguições à Turquia, tal como Berequias temera o alastramento da Inquisição (maldita) de Castela a Portugal quatro séculos antes. A Inquisição (maldita) foi definitivamente estabelecida em Portugal em 1536, cerca de 50 anos depois de ter sido criada em Espanha e apenas seis anos depois de Berequias ter completado o último dos seus manuscritos. Teria Ayaz Lugo sabido da existência dos manuscritos? No seu testamento não lhes faz referência. Possivelmente tinham sido escondidos pelos seus pais, sem que ele o tivesse sabido. Cabe-me agradecer, antes de mais, a Abraham Vital, que me ofereceu generosamente a sua casa e, posteriormente, me permitiu utilizar os textos de Berequias Zarco. Gostaria igualmente de manifestar o meu apreço à sua mulher, Miriam Rosencrantz Vital, que muitas vezes me valeu durante os meus tardios serões com um copo de vinho do Porto e os seus cuscuz caseiros. Este livro é publicado em memória de Berequias Zarco, família e amigos.

 

Nota histórica

Em Dezembro de 1496, quatro anos depois de expulsarem do seu reino todos os judeus, os soberanos de Espanha, Fernando e dona Isabel, convenceram o rei de Portugal, Manuel I, a fazer o mesmo. Em troca, os monarcas espanhóis concediam-lhe em casamento a mão de sua filha. Pouco antes de a ordem de expulsão ser aplicada, Manuel I, que não queria perder tão preciosos súbditos, decidiu converter os judeus portugueses. Em Março de 1497, mandou encerrar todos os portos de embarque e ordenou que se reunissem todos os judeus e os conduzissem à força à pia baptismal. Embora os relatos que chegaram até aos nossos dias refiram judeus que preferiram dar-se à morte e matar os filhos a converterem-se, a maior parte deles acabaram por se ver forçados a aceitar Jesus como o Messias. Apelidados de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para abandonarem os usos judaicos tradicionais, promessa essa que se veio a revelar falsa ao longo das duas décadas de intolerância e perseguições que se seguiram. Mesmo assim, muitos dos novos cristãos persistiram nas suas crenças. Em segredo e ao preço de riscos enormes, continuaram a recitar as suas orações hebraicas e a praticar os seus rituais, sobretudo os do Sabbat e das festas judaicas. Um desses judeus clandestinos era Berequias Zarco, o narrador d’O último Cabalista de Lisboa. As circunstâncias que rodearam a descoberta do manuscrito de Zarco em Istambul, em 1990, constam de uma Nota do Autor. Dessa mesma nota constam igualmente algumas observações quanto ao estilo adoptado na transcrição do texto original. No entanto, os leitores deverão desde já ter presente que, ao preparar o trabalho para publicação, esforcei-me por preservar o tom extremamente natural e directo do autor». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Berequias não é sempre coerente na grafia do português, talvez devido à dificuldade de transcrever a língua da sua terra em caracteres hebraicos»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) Infelizmente, numerosas secções e mesmo simples páginas dos manuscritos de Berequias tinham sido reunidos fora da ordem por alguém manifestamente incapaz de ler o judeu-português. Era de enlouquecer. Levei dois meses para voltar a pôr tudo por ordem. Mas uma vez isso feito, o livro de Berequias Zarco lia-se perfeitamente. Os três manuscritos históricos no seu conjunto formam uma obra única, narrando a odisseia da família de Berequias durante os trágicos acontecimentos de Abril de 1506. Contam, em particular, a perseguição que Berequias moveu ao assassino do seu amado tio Abraão, um famoso cabalista provavelmente responsável por algumas das obras da Escola de Lisboa, até hoje consideradas anónimas, incluindo, por razões que a narrativa torna claras, Batendo às Portas e o Livro do Fruto Divino. São vários os breves relatos da matança que chegaram até nós, incluindo um de Salomão Ben Verga referido por Berequias, e não pode haver dúvidas quanto à veracidade da crónica de Berequias. Todos os principais acontecimentos aí relatados foram confirmados por escritos contemporâneos. Muitas das pessoas mencionadas, como Didi Molcho, João de Mascarenhas e Isaac Ben Farraj são nossos conhecidos através das suas obras assim como através de documentos da Igreja e da Coroa portuguesa. Alguns leitores menos familiarizados com a literatura sefardita e novo-cristã do século XVI poderão estranhar a minha reprodução da história de Berequias sob a forma de um mistério e o uso da linguagem coloquial. Berequias Zarco é, porém, como tantos dos seus contemporâneos, um autor moderno tanto na visão como no estilo. O segundo manuscrito, em especial, manifesta uma técnica directa que se assemelha à da novela picaresca espanhola, que começava a aparecer aproximadamente na mesma época dos manuscritos de Berequias. Curiosamente, muitos dos autores picarescos espanhóis eram também judeus convertidos. Berequias Zarco estava inegavelmente familiarizado com esses contemporâneos castelhanos.

Ao contrário das novelas picarescas, porém, o tom de Berequias quase nunca é irónico e nunca burlesco. Além disso, o seu personagem principal, ele próprio, não é nem um vilão nem um herói. É simplesmente aquilo que Berequias deve ter sido: um jovem inteligente e confuso, que fazia iluminuras, que vendia fruta e era cabalista; um jovem destroçado pela morte de seu tio. A linguagem franca de Berequias recorre a palavrões, afirmações claramente blasfemas e mesmo calão, que tentei manter na íntegra. Parece-me evidente que se a intenção de Berequias tivesse sido a de escrever mais um documento místico ou mesmo um texto histórico mais circunspecto, tê-lo-ia feito. Tinha talento e conhecimentos para tanto. A verdade é que não o fez. Escreveu um mistério em três partes, a última das quais poderia ser considerada pelos críticos contemporâneos como um epílogo. Tendo em atenção o leitor moderno, dividi essas três partes em vinte capítulos. Os capítulos I a VIII correspondem ao primeiro dos manuscritos de Berequias; do IX ao XX, ao segundo manuscrito; e o XXI ao terceiro. Apesar de O último Cabalista de Lisboa ser mais que uma tradução, mantive-me rigorosamente fiel ao conteúdo do escrito de Berequias, a não ser em dois casos: quando ele inclui extensas recitações de orações e de cânticos; e quando faz digressões sobre pontos espirituais associados aos arcanos essenciais relacionados com a Cabala. Apesar de se revestirem de interesse académico, seriam provavelmente dificultosos e aborrecidos para o leitor, e excluí-os por isso da minha transcrição. Do mesmo modo, várias secções foram reordenadas segundo a ordem cronológica, quando antes estavam ligadas segundo a tese espiritual que Berequias procurava demonstrar. Creio que também este facto não altera de modo substancial a obra de Berequias, e a estrutura que adoptei fará certamente mais sentido para o leitor moderno.

De um modo geral, procurei estabelecer um equilíbrio entre a linguagem contemporânea e o uso ocasional de uma ou outra palavra ou frase mais antiga. No seu conjunto, a obra permanece, assim o espero, fiel ao espírito do autor. Berequias não é sempre coerente na grafia do português, talvez devido à dificuldade de transcrever a língua da sua terra em caracteres hebraicos. Por isso mesmo, as transcrições do português são feitas de acordo com as convenções actuais. Sempre que se transcrevem palavras hebraicas, recorre-se aos caracteres latinos, de modo a poderem ser pronunciados pelos leitores americanos e europeus. Os manuscritos de Berequias levantam algumas questões importantes sobre a história dos livros hebraicos na Ibéria. Será a Tora ilustrada que ele descobre na geniza de seu tio a chamada Bíblia de Kennicott, que hoje pertence à Biblioteca Bodleian da Universidade de Oxford? A referência às letras em forma de animal e a Isaac Bracarense (indubitavelmente Isaac de Braga, por quem o manuscrito foi ilustrado) parece indicar nessa direcção. Nada se sabe da história da Bíblia desde a data do seu acabamento em 1476 até à sua aquisição em 1771 por Oxford, a conselho do bibliotecário, Kennicott. Talvez tenha de facto sido salva por Abraão e Berequias Zarco. Quanto à versão hebraica e árabe da Fonte da Vida detida por frei Carlos: teria sido realmente passada para Salónica? Que lhe terá, então, acontecido? Nunca foi encontrado nenhum original árabe, apenas traduções latinas». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos,

sábado, 28 de setembro de 2024

Milan Kundera. A Brincadeira. «Saídos do recinto do hospital, logo fomos dar a um grupo de edifícios novos que, uns a seguir aos outros, se elevavam desarmoniosamente de um solo poeirento desnivelado (sem relva, sem passeios, sem asfalto) e formavam um triste cenário nos confins dos campos, vastos e planos, estendidos a perder de vista»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Era um ser estranho, simultaneamente de uma moralidade rígida e cu-riosamente inquieto e instável, de quem, pelo que eu sabia, a mulher se tinha divorciado ao fim de vários anos pelo simples facto de ele viver indiscriminadamente em qualquer lado, desde que fosse longe da mulher e dos filhos. Assustava-me a ideia de que ele se pudesse ter voltado a casar, circunstância propícia a complicar a satisfação do meu pedido, e apressei o passo em direcção ao hospital.

O hospital é um conjunto de edifícios e pavilhões semeados aqui e ali sobre um vasto espaço de jardins; entrei na pequena guarita junto ao portão e pedi ao porteiro sentado atrás de uma mesa para me pôr em contacto com a secção de virologia; ele empurrou o telefone para o canto da mesa do meu lado e disse: Zero dois!  Marquei o zero dois e fiquei a saber que o doutor Kostka saíra há alguns segundos e que estaria prestes a chegar à saída. Sentei-me num banco perto da porta principal para me assegurar de que o não perderia, e olhava distraidamente os homens passeando-se em roupão de hospital, de riscas azuis e brancas, quando o vi: vinha pensativo, alto, magro, simpático na sua falta de presença, sim, era mesmo ele. Levantei-me do meu banco e fui direito a ele como se fosse empurrá-lo; deitou-me um olhar de desagrado, mas depressa me reconheceu e me abriu os braços. Senti que a sua surpresa foi de quase felicidade, e a espontaneidade do seu acolhimento deu-me prazer.

Expliquei-lhe que tinha chegado havia uma hora para tratar de um assunto sem importância que me reteria ali perto de dois dias, e ele logo me manifestou a surpresa feliz por a minha primeira visita lhe ter sido dedicada. Foi-me subitamente desagradável não o ter vindo procurar com um espírito desinteressado, por ele só, e a pergunta que lhe fiz (perguntei-lhe jovialmente se voltara a casar) pareceu reflectir uma atenção sincera, quando, no fundo, provinha de um calculismo baixo. Disse-me (para minha satisfação) que continuava só. Declarei que tínhamos muito que contar um ao outro. Ele concordou e lamentou não dispor, infelizmente, de pouco mais de uma hora, visto ter ainda que voltar ao hospital e, no fim da tarde, ter de apanhar um autocarro para fora da cidade. Não mora aqui?, digo, assustado. Assegurou-me que sim, um estúdio num edifício novo, mas que é penoso viver solitário. Soube que Kostka tinha, numa outra cidade a vinte quilómetros, uma noiva professora, possuindo, também ela, um pequeno apartamento de duas assoalhadas. Vai viver com ela futuramente?, perguntei-lhe.

Disse-me que dificilmente encontraria trabalho noutro sítio tão interessante como aquele que lhe arranjara e que, pelo contrário, a sua noiva teria dificuldade em arranjar um lugar aqui. Pus-me a vituperar (de bom coração) as demoras da burocracia, incapaz de facilitar as coisas de maneira a que um homem e uma mulher possam viver juntos. Sossegue, Ludvik, disse-me com uma doce indulgência, que não é assim tão insuportável. A viagem custa-me, é certo, dinheiro e tempo, mas a minha solidão permanece intacta e sou livre. Porque tem um tal desejo de liberdade?, perguntei-lhe. Evocê?, disse ele. Eu ando atrás das raparigas, respondi-lhe. Não é pelas mulheres, é por mim que me faz falta a minha liberdade, disse, e acrescentou: Oiça, venha um momento a minha casa antes de eu me ir embora. Eu não pedia mais que isso.

Saídos do recinto do hospital, logo fomos dar a um grupo de edifícios novos que, uns a seguir aos outros, se elevavam desarmoniosamente de um solo poeirento desnivelado (sem relva, sem passeios, sem asfalto) e formavam um triste cenário nos confins dos campos, vastos e planos, estendidos a perder de vista. Atravessámos uma porta, subimos uma escada demasiado estreita (o elevador estava avariado) e detivemo-nos no terceiro andar, onde reconheci o nome de Kostka no cartão-de-visita. Quando, tendo atravessado a entrada, nos encontrámos na sala, senti-me mais que satisfeito: um grande e confortável divã ocupava um canto; além do divã, havia uma pequena mesa, uma poltrona, uma grande biblioteca, um gira-discos e um aparelho de rádio». In Milan Kundera, A Brincadeira, Publicações Dom Quixote, 1967, 4ª edição 1994, ISBN 972-200-014-4.

 Cortesia de PDQuixote/JDACT

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A Brincadeira. Milan Kundera. «… percorri cinicamente com os olhos a praça desengraçada antes de lhe voltar costas e tomar a rua do hotel onde tinha um quarto alugado para essa noite. O porteiro estendeu-me uma chave pendurada numa pêra de madeira…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Asssim, depois de tantos anos, voltava de novo a casa. De pé, na praça principal (que, criança, depois rapaz, depois jovem, atravessara mil vezes), não sentia qualquer emoção; pelo contrário, pensava que aquele es-paço onde a torre do sino (parecida com um antigo cavaleiro sob o seu elmo) se vê acima dos telhados, lembrava a vasta parada de um quartel, e que o passado militar daquela cidade da Morávia, outrora muralha contra as incursões dos Magiares e dos Turcos, imprimira nela a marca de uma irrevogável fealdade.

Durante anos, nada me atraíra à minha cidade natal. Dizia-me que ela se me tinha tornado indiferente, e isso parecia-me natural: ao fim de quinze anos vividos fora, só me restam alguns conhecidos, ou mesmo os amigos (que prefiro, de resto, evitar); a minha mãe está enterrada num túmulo estrangeiro, que não visito. No entanto iludia-me: aquilo que eu chamava indiferença era na realidade rancor; escapavam-me as razões, pois tinham-me acontecido coisas boas ou coisas más nesta cidade como em todas as outras, em todo o caso esse rancor existia; percebera-o durante a minha viagem: a missão que aqui me trazia poderia, bem vistas as coisas, cumpri-Ia igualmente bem em Praga, mas tinha sido, num repente, irresistivelmente atraído pela ocasião oferecida de executá-la na minha cidade natal, precisamente por se tratar de uma missão cínica e terra-a-terra que, por ironia, me absolvia da suspeita de aqui voltar sob o efeito de um enternecimento piegas pelo tempo perdido.

Uma vez mais, percorri cinicamente com os olhos a praça desengraçada antes de lhe voltar costas e tomar a rua do hotel onde tinha um quarto alugado para essa noite. O porteiro estendeu-me uma chave pendurada numa pêra de madeira dizendo segundo andar. O quarto não era muito convidativo: uma cama contra a parede. no meio uma mesinha com uma única cadeira, ao lado da cama um pretensioso toucador de mogno com espelho, junto da porta um lavatório lascado absolutamente minúsculo. Pousei a toalha na mesa e abri a janela: a vista dava sobre um pátio e sobre casas com as traseiras nuas e sujas viradas para o hotel. Fechei a janela, corri os cortinados e aproximei-me do lavatório, que tinha duas torneiras, uma com sinal encarnado, outra azul; experimentei-as, a água correu igualmente fria em ambas. Examinei a mesa, que, em rigor, chegava, visto que nela cabiam perfeitamente uma garrafa e dois copos; infelizmente, à falta de uma segunda cadeira no quarto, só uma pessoa se poderia lá instalar. Tendo puxado a mesa para perto da cama, tentei sentar-me nesta, mas era demasiado baixa e a mesa alta de mais; mais ainda, encovava de tal maneira que logo foi evidente que não só constituía um mau assento, corno desempenharia de maneira duvidosa a sua função de cama. Apoiei-me nos punhos; depois estendi-me levantando cuidadosamente os pés calçados para evitar sujar a coberta e o lençol. Com o colchão cavado sob o meu peso, encontrava-me estendido como numa rede ou numa campa estreita: não me era possível imaginar partilhar aquela cama com alguém.

Sentei-me na cadeira, o olhar perdido nas cortinas iluminadas em transparencia, e reflecti. Nesse momento, fizeram-se ouvir passos e vozes no corredor; duas pessoas, um homem e uma mulher, e cada palavra era inteligível: falavam de um certo Petr, que tinha fugido de casa, e de uma tal Mara, que era idiota e estragava o pequeno; depois ouviu-se uma chave a rodar na fechadura, uma porta que se abria e as vozes que continuavam no quarto ao lado; ouvi os suspiros da mulher (sim, até os suspiros me chegavam!) e a decisão do homem de dizer de vez duas palavras à Mara.

Levantei-me, a minha resolução estava tomada; lavei ainda as mãos no lavatório, limpei-as com a toalha, e deixei o hotel sem saber ao certo para onde ia. Sabia simplesmente que, se não quisesse comprometer o bom sucesso de toda a minha viagem (viagem consideralvelmente longa e fatigante) por causa da única imperfeição do meu quarto de hotel, devia, por muito que não me apetecesse, fazer um discreto apelo a qualquer amigo local. Passei rapidamente em revista todas as caras do tempo da minha juventude, para logo as afastar, pois o carácter confidencial do favor solicitado me iria obrigar a construir uma ponte laboriosa sobre os muitos anos em que nos perdêramos de vista, e isto desagradava-me. Depois lembrei-me de que aqui vivia sem dúvida um homem a quem outrora tinha, aqui mesmo, arranjado um emprego e que ficaria, pelo que conheço dele, muito contente por me fazer por sua vez um favor». In Milan Kundera, A Brincadeira, Publicações Dom Quixote, 1967, 4ª edição 1994, ISBN 972-200-014-4.

Cortesia de PDQuixote/JDACT

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