Cortesia de wikipedia jdact
«O Ano da Graça de 1150, quando os hereges sarracenos, a
escória da terra e a guarda avançada tio Anticristo infligiam aos nossos muitas
derrotas na Terra Santa, o Espírito Santo desceu sobre a senhora Sigrid e
deu-lhe a ela uma revelação que mudou a sua vida. Talvez se possa dizer,
também, que essa revelação conduziu a uma situação que encurtou sua vida. Com
certeza sabemos que ela jamais voltou a ser a mesma. Menos certo é aquilo que o
monge Thibaud escreveu muito mais tarde, de que, no momento em que o Espírito
Santo apareceu diante de Sigrid, surgiu na realidade o que seria o início de um
novo reino na Escandinávia, ao norte da Europa, reino que mais tarde viria a se
chamar Suécia. Tudo aconteceu durante a Festa de São Tibúrcio, em meados de Abril,
num dia que passou a ser considerado como o primeiro dia de Verão e em que o
gelo começava a derreter na província de Götaland Ocidental. Nunca antes se
juntou tanta gente num dia como esse em Skara, isso porque a missa não era uma
missa comum, mas a que iria assinalar, finalmente, a inauguração da nova
catedral. As cerimónias já decorriam na sua segunda hora. A procissão já dera
três voltas à igreja, num ritmo infinitamente lento, pelo facto de o bispo Õdgrim
ser muito velho e se arrastar, como se cada passo fosse o seu último. Além
disso, ele parecia um pouco confuso,
pois leu a primeira oração em linguagem popular em vez de em latim:
Meu Deus, Tu que invisivelmente
cuidas de tudo, mas que para salvação das pessoas fazes o Teu poder visível, assume
esta Tua casa e domina neste templo, assim, todos aqueles que se reúnem aqui
para rezar vão poder receber o Teu conforto e ajuda.
E naquele momento, sem dúvida, Deus fez visível Seu poder,
quer tenha sido para gáudio das gentes ou por qualquer outro motivo. Foi um
espectáculo que ninguém jamais vira em toda a Götaland Ocidental, foram as
cores brilhantes da roupagem dos bispos, em seda vermelho-escura, com listas
douradas e azul-claras, foram os aromas estonteantes dos incensórios à volta
dos quais os cachorros giravam, e como eles balançavam, e foi a música tão
celestial que nenhum ser na Götaland Ocidental podia ter ouvido antes coisa
semelhante. E ao olhar para cima era como se a gente visse o céu, se bem que
estávamos sob o tecto da igreja. Era incompreensível que até mesmo os
construtores borgonheses e ingleses pudessem ter erguido claustros tão elevados
sem que tudo não caísse de uma vez, se não por outro motivo, por Deus ter
ficado zangado diante da pretensão de tentar construir qualquer coisa até lá em cima,
até Ele. A senhora Sigrid era uma mulher prática. Alguns, por isso mesmo,
achavam que ela era durona. Ela não teve nem um pouco de vontade de se meter a
caminho e fazer a difícil viagem para Skara, porque a Primavera chegara cedo e
os caminhos ficaram um lamaçal só e ela se preocupou diante da ideia de se
sentar numa carruagem, balançando de um lado para o outro, no abençoado estado
em que estava. Mais do que qualquer outra coisa na vida terrena, ela receava o
nascimento para breve da sua segunda criança. E sabia muito bem que,
tratando-se da inauguração de uma catedral, isso significaria ficar de pé no
chão de pedra e, de vez em quando, ajoelhar-se para rezar, o que para ela, no
seu estado, seria uma tortura. Ela era bem versada, certamente melhor do que a
maioria dos fidalgos e das filhas deles à sua volta nesse momento, no que dizia
respeito às muitas regras da vida religiosa. Essa capacidade, ela não tinha
obtido pela fé ou por vontade própria. Mas, quando tinha dezasseis anos, seu
pai, não sem uma boa razão, chegou à conclusão de que ela nutria um interesse
exagerado por um parente da Noruega, de berço excessivamente menor, um
interesse que só poderia resultar em casamento. Foi assim que, severamente, seu
pai encarou o problema. E assim ela foi mandada durante cinco anos para um
mosteiro na Noruega, e teria ficado por lá para sempre se não tivesse recebido
de uma tia sem filhos uma herança na província de Götaland Oriental e, por essa
razão, ter-se transformado em alguém que podia casar, não importando com
quem, de preferência a ficar enclausurada num convento.
Ela sabia, portanto, quando devia ficar em pé e quando
devia ajoelhar-se, quando devia balbuciar com os outros o padre-nosso e a
ave-maria, sempre que algum dos bispos, lá na frente, indicava e quando as
pessoas deviam fazer suas próprias orações. Todas as vezes que ela fazia as suas
orações silenciosamente, pedia por sua vida. Deus lhe dera um filho três anos
antes. E ela demorara dois dias para dar à luz esse filho. Por duas vezes o sol
nasceu e se pôs, enquanto ela ficava banhada em suor, em angústia e em dores.
Foi então que soube que iria morrer, e todas as boas mulheres que a ajudaram,
no final, também sabiam que isso iria acontecer. Foram elas que mandaram chamar
o padre lá em Forshem, e foi ele que lhe deu a absolvição por todos os pecados
e a extrema-unção. Nunca mais, esperava ela. Nunca mais aquela dor, nunca mais
aquele pânico da morte, pediu ela em sua oração. Mas essa era uma maneira
egoísta de pensar, isso ela sabia muito bem. Era bem comum as mulheres morrerem
na cama ao dar à luz. E ela sabia que os seres humanos teriam que nascer na
dor. Mas cometeu o erro de rezar para a Virgem Maria para que a poupasse, justo
ela, e ela tentaria cumprir seus deveres matrimoniais de forma que isso não
conduzisse a uma nova gravidez. O filho deles, Eskil, sobrevivera e era uma
criancinha bem constituída e esperta, com
todas as qualidades que qualquer criança deve ter.
A Virgem Maria, certamente, a havia punido. O dever das
pessoas era encher o planeta, portanto, como é que se poderia esperar que a sua
prece fosse atendida quando ela pretendia escapar dessa responsabilidade? E,
assim, ela esperava novas dores, isso era certo. E ainda, mais uma vez, muitas
vezes, ela pediu para que mais uma vez sobrevivesse sem graves consequências.
Para escapar, pelo menos, à tortura muito menor, mas incómoda, de, por muitas
horas, ficar em pé e se ajoelhar, levantar-se e logo se ajoelhar novamente, ela
deixou que Sot, a sua criada, fosse baptizada para que pudesse ir com ela e
entrar na casa de Deus, ficar com ela a seu lado para lhe dar apoio na hora de
abaixar-se e levantar-se. Os olhos grandes e negros de Sot ficaram paralisados,
como se fossem os olhos amedrontados de um cavalo, por tudo o que ela pôde ver,
e se ela antes não era cristã de verdade, então, agora, devia passar a ser.
Três metros à frente de Sigrid, estavam o rei Sverker e a rainha Ulvhild. Ambos
eram muito pesados pela idade e, assim, tinham muito mais dificuldades para,
sem excessivos gemidos ou ruídos impróprios saídos pelo traseiro, levantar-se e
cair de joelhos. No entanto, foi por eles e não por Deus que Sigrid se
encontrava na catedral. O rei Sverker não considerava muito bem os ancestrais
noruegueses ou da Götaland Ocidental dela, nem os do seu marido. E, agora, já bastante
idoso, o rei ficou tão desconfiado quanto preocupado com sua vida depois da morte». In Jan
Guillou, A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Bertrand Brasil, 2002, ISBN
978-852-860-896-0.
Cortesia de BertrandB/JDACT