quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Condessa de Barral (1816-1891). A Paixão do imperador. Mary del Priore. «Presentes na forma de galinhas, leitões e perus, amarrados com fitas coloridas, eram entregues aos vizinhos e amigos. Os bailes pastoris…»

jdact

O nascimento da camaleoa
«(…) À luz de candeeiros, discutiam sobre o tempo: os porcos estão carregando mato: sinal de chuva. Outro assunto de predilecção, neste caso, na cozinha, eram as visões e assombrações. Histórias de gente que se envultava. Ficavam enfeitiçados nas encruzilhadas ou perto dos cemitérios. No silêncio do sono, tinha quem ouvia vozes de crianças que tinham morrido sem baptismo a pedir o sacramento. Além do temor dos mortos, alguns vivos também faziam medo: quilombolas fugidos rio acima, aninhados pelos matos tiravam definitivamente o sono dos que moravam nos engenhos. Luísa e Domingos iam dormir com o temor de bichos infernais: o caipora, os homens amarelos que chupavam fígado de menino, o zumbi, o lobisomem. No oratório, com suas abas pintadas com santos, as mulheres do engenho, com as crianças pelas mãos, se reuniam para rezar. Faziam ladainhas à Virgem para pedir chuva, nos tempos de seca. Com as portas abertas para o terreiro, às suas vozes vinha-se unir o coro de escravos, feitores e homens forros, de joelhos ao ar livre. Alguns penitentes descalços e descabelados levavam andores pelas estradas vizinhas. Um mundo de afazeres femininos cercava a mãe e, por extensão, a filha pequenina. Elas conviviam com modistas encarregadas do vestuário da sinhá e da sinhazinha. Dividiam com as cozinheiras e as biscoiteiras receitas variadas. Distribuíam ordens às mucamas que arranjavam alcovas, serviam banhos em bacias de cobre e, pela manhã, levavam em bandejas café com leite, gemada ou chocolate, acompanhados de outras gulodices. Circulavam em meio às mucamas que tomavam conta de tudo e eram encarregadas, nas horas vagas, de contar histórias às crianças e fazer-lhes cafunés. O ritmo do trabalho só era alterado pelo calendário religioso e as festas de colheita. No Natal, por exemplo, recebia-se a visita de parentes vindos da cidade.
Nestas ocasiões, a casa se enchia de balbúrdia, as escravas aprontando bandejas e compoteiras. Presentes na forma de galinhas, leitões e perus, amarrados com fitas coloridas, eram entregues aos vizinhos e amigos. Os bailes pastoris, dançados nesta época, apresentavam um tom monótono e solene mas eram perfumados com uma chuva de flores jogada sobre os espectadores. Num deles, Luísa representou o anjo que viera avisar os pastores do nascimento de Jesus. Contudo, a festa mais importante dos engenhos era a da moagem. Luísa se lembraria dela por toda a vida. Acontecia em Maio, época em que os engenhos começavam a funcionar. A casa, os paióis e as senzalas eram caiados e limpos. Os escravos ganhavam timões de baeta azul e roupa de algodão para o ano inteiro. Os de estimação, jóias de coral e cortes de chita. No terreiro, as bandeiras de papel flutuavam nas extremidades de bambus verdes. Matava-se um boi para o banquete dos senhores e carneiros e galinhas para a refeição dos escravos. Amigos ajudavam nos preparativos da música e dos fogos. Dona Maria do Carmo, com seu vestido de musselina, trepa-moleque e lencinho ao pescoço, entretinha os convidados. Um carro de boi enfeitado com ramagens trazia os músicos e o vigário. Era a tradição que, em não se benzendo o engenho, tudo podia correr mal. Neste dia, com excepção das pessoas envolvidas com a festa, ninguém trabalhava. Os escravos batucavam depois do jantar, os roceiros cantavam e dançavam. Nessas ocasiões, cantar versos de autoria de Domingos era obrigatório. Aliás, o senhor de engenho e poeta tinha os versos muito apreciados em toda a província da Bahia. Em Fevereiro, época da festa de Nossa Senhora da Purificação, as escravas saíam cedo da casa-grande, levando os tapetes sobre os quais dona Maria do Carmo e os filhos se sentariam, mais tarde, na Igreja de Santo Amaro.
Os sepultamentos dentro do templo deixavam no ar um cheiro esquisito. A menina se impressionava quando o padre falava nos castigos reservados aos pecadores: misericórdia, gritava o povo, e as pessoas batiam nas faces. Algumas lembranças devem ter marcado Luísa para sempre. As que diziam respeito à escravidão, com certeza. Muitas das suas atitudes no futuro se originaram na primeira infância e no contacto ininterrupto com a população negra, que crescia, a olhos vistos, na primeira metade do século XIX. Cerca de 8 mil africanos desembarcavam no porto de Salvador a cada ano para manter a economia açucareira funcionando. Eles vinham da área do Benim, sudoeste da actual Nigéria, no antigo reino do Daomé. Eram escravos nagós, jejes, hauçás ou tapas. Em 1811, os escravos dessa origem representavam 50% da comunidade africana residente em Salvador, chegando a 60% em meados da década de 1830. Cerca de 10% eram originários da Costa da Mina e do sul da África, de Angola na sua maioria. A esse total de nações, nome que se dava às várias etnias, pertenciam mais de 60% dos escravos que representavam, por sua vez, 33% dos 65 mil habitantes de Salvador. Negros e pardos nascidos no Brasil formavam perto de 40% dos escravos. Uma presença tão forte de africanos preocupava sectores das elites, entre as quais se incluía Domingos, senhor de engenhos. E com razão». In Mary del Priore, Condessa de Barral, A Paixão do imperador, Editora Objetiva, 2008, ISBN 978-857-302-923-9.

Cortesia de Objetiva/JDACT