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O
nascimento da camaleoa
«(…)
À luz de candeeiros, discutiam sobre o tempo: os porcos estão carregando mato:
sinal de chuva. Outro assunto de predilecção, neste caso, na cozinha, eram as
visões e assombrações. Histórias de gente que se envultava. Ficavam enfeitiçados
nas encruzilhadas ou perto dos cemitérios. No silêncio do sono, tinha quem
ouvia vozes de crianças que tinham morrido sem baptismo a pedir o sacramento.
Além do temor dos mortos, alguns vivos também faziam medo: quilombolas fugidos
rio acima, aninhados pelos matos tiravam definitivamente o sono dos que moravam
nos engenhos. Luísa e Domingos iam dormir com o temor de bichos infernais: o
caipora, os homens amarelos que chupavam fígado de menino, o zumbi, o
lobisomem. No oratório, com suas abas pintadas com santos, as mulheres do
engenho, com as crianças pelas mãos, se reuniam para rezar. Faziam ladainhas à
Virgem para pedir chuva, nos tempos de seca. Com as portas abertas para o
terreiro, às suas vozes vinha-se unir o coro de escravos, feitores e homens forros,
de joelhos ao ar livre. Alguns penitentes descalços e descabelados levavam
andores pelas estradas vizinhas. Um mundo de afazeres femininos cercava a mãe
e, por extensão, a filha pequenina. Elas conviviam com modistas encarregadas do
vestuário da sinhá e da sinhazinha. Dividiam com as cozinheiras e as
biscoiteiras receitas variadas. Distribuíam ordens às mucamas que arranjavam
alcovas, serviam banhos em bacias de cobre e, pela manhã, levavam em bandejas
café com leite, gemada ou chocolate, acompanhados de outras gulodices.
Circulavam em meio às mucamas que tomavam conta de tudo e eram encarregadas,
nas horas vagas, de contar histórias às crianças e fazer-lhes cafunés. O ritmo
do trabalho só era alterado pelo calendário religioso e as festas de colheita.
No Natal, por exemplo, recebia-se a visita de parentes vindos da cidade.
Nestas ocasiões, a casa se enchia
de balbúrdia, as escravas aprontando bandejas e compoteiras. Presentes na forma
de galinhas, leitões e perus, amarrados com fitas coloridas, eram entregues aos
vizinhos e amigos. Os bailes pastoris, dançados nesta época, apresentavam um
tom monótono e solene mas eram perfumados com uma chuva de flores jogada sobre
os espectadores. Num deles, Luísa representou o anjo que viera avisar os
pastores do nascimento de Jesus. Contudo, a festa mais importante dos engenhos
era a da moagem. Luísa se lembraria dela por toda a vida. Acontecia em Maio, época
em que os engenhos começavam a funcionar. A casa, os paióis e as senzalas eram
caiados e limpos. Os escravos ganhavam timões de baeta azul e roupa de algodão
para o ano inteiro. Os de estimação, jóias de coral e cortes de chita. No
terreiro, as bandeiras de papel flutuavam nas extremidades de bambus verdes.
Matava-se um boi para o banquete dos senhores e carneiros e galinhas para a
refeição dos escravos. Amigos ajudavam nos preparativos da música e dos fogos.
Dona Maria do Carmo, com seu vestido de musselina, trepa-moleque e lencinho ao
pescoço, entretinha os convidados. Um carro de boi enfeitado com ramagens
trazia os músicos e o vigário. Era a tradição que, em não se benzendo o
engenho, tudo podia correr mal. Neste dia, com excepção das pessoas envolvidas
com a festa, ninguém trabalhava. Os escravos batucavam depois do jantar, os
roceiros cantavam e dançavam. Nessas ocasiões, cantar versos de autoria de Domingos
era obrigatório. Aliás, o senhor de engenho e poeta tinha os versos muito
apreciados em toda a província da Bahia. Em Fevereiro, época da festa de Nossa
Senhora da Purificação, as escravas saíam cedo da casa-grande, levando os
tapetes sobre os quais dona Maria do Carmo e os filhos se sentariam, mais
tarde, na Igreja de Santo Amaro.
Os
sepultamentos dentro do templo deixavam no ar um cheiro esquisito. A menina se
impressionava quando o padre falava nos castigos reservados aos pecadores: misericórdia, gritava o povo, e
as pessoas batiam nas faces. Algumas lembranças devem ter marcado Luísa para
sempre. As que diziam respeito à escravidão, com certeza. Muitas das suas
atitudes no futuro se originaram na primeira infância e no contacto
ininterrupto com a população negra, que crescia, a olhos vistos, na primeira
metade do século XIX. Cerca de 8 mil africanos desembarcavam no porto de
Salvador a cada ano para manter a economia açucareira funcionando. Eles vinham
da área do Benim, sudoeste da actual Nigéria, no antigo reino do Daomé. Eram
escravos nagós, jejes, hauçás ou tapas. Em 1811, os escravos dessa origem
representavam 50% da comunidade africana residente em Salvador, chegando a 60%
em meados da década de 1830. Cerca de 10% eram originários da Costa da Mina e
do sul da África, de Angola na sua maioria. A esse total de nações, nome que se
dava às várias etnias, pertenciam mais de 60% dos escravos que representavam,
por sua vez, 33% dos 65 mil habitantes de Salvador. Negros e pardos nascidos no
Brasil formavam perto de 40% dos escravos. Uma presença tão forte de africanos
preocupava sectores das elites, entre as quais se incluía Domingos, senhor de
engenhos. E com razão». In Mary del Priore, Condessa de Barral, A
Paixão do imperador, Editora Objetiva, 2008, ISBN 978-857-302-923-9.
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de Objetiva/JDACT