Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) O horário de visitas se
aproximava. Logo a torrente de somalis sobre a qual Sahra me alertara começaria
a chegar para ver meu pai, e eu não poderia suportar a ideia de um confronto.
Assim, dolorosamente, despedi-me de abeh.
Quando os homens da Scotland Yard me escoltaram para fora do hospital, eu me vi
na Whitechapel Road, centro da maior população muçulmana do Reino Unido. Um
ruidoso mercado coberto com uma lona ficava do outro lado da rua, repleto de
barracas vendendo sáris de todos os tamanhos, cartões telefónicos
internacionais e sanduíches de cordeiro picantes. Ao meu lado, na calçada, no
ponto de autocarro perto da escadaria do hospital, havia um grupo de muçulmanas
usando cada variedade imaginável de coberta islâmica, desde um lenço pastel
sobre a cabeça até o espesso niqab
preto que cobre o corpo completamente, com um véu de tecido também preto
que esconde o rosto e os olhos. Eram mulheres jovens e fortes, e não velhas
senis; algumas estavam grávidas, a maioria tinha muitas crianças pequenas, e estavam
sob o sol na rua fazendo compras para a família. Muitas usavam uma variação que
eu não conhecia: além de um longo roupão e de um lenço sobre a cabeça, elas
tinham um véu extra para o rosto afixado com velcro, com duas tiras espessas de
tecido preto presas de modo a deixar visível apenas cerca de dois centímetros,
o suficiente para revelar os cílios.
As cabines telefónicas e as
placas do metro londrino eram britânicas, mas seria difícil acreditar que
estávamos na Inglaterra. Senti o cheiro das lancheiras das minhas colegas na Escola
Feminina de Ensino Fundamental Muçulmano em Nairóbi, um embate de temperos e alimentos,
e óleos perfumados para o cabelo. Aqui havia novamente a ruidosa agitação da
rua e a mistura de pessoas, somalis e, imagino, paquistaneses e bengalis, que se
amontoavam no mercado. Os simples odores me causaram uma pontada de saudades da
inocência da juventude. Não sei se em outras culturas o sentimento de pertencer
a uma comunidade é tão forte, mas para alguém que cresceu dentro de um clã, a
sensação, o cheiro, da família é muito poderosa. E se alguém em meio a essa
multidão me reconhecesse e decidisse comprar uma briga? Aos olhos de muitos
deles, sou uma infiel e uma traidora, que anda por aí sem receber o devido castigo.
Eu e meus guarda-costas voltamos
para o carro e dirigimos pela Whitechapel Road, lentamente, em meio ao tráfego
pesado. Sentada do lado de fora de um fast-food halal, vi uma mulher pequena usando um longo roupão preto
com um coque de tecido bordado sobre o nariz e a boca, ao estilo das argelinas.
Duas crianças pequenas choravam no carrinho de bebé ao lado dela, que procurava
animá-las e confortá-las enquanto erguia o tecido para tentar comer o quitute
discretamente sob o véu. A criança mais velha também usava um véu. Não era um
véu que cobria o rosto, e sim o cabelo e os ombros; era branco e folgado e
possuía um elástico, fazendo com que se instalasse confortavelmente sobre a
cabeça da criança. A menina não deveria ter mais do que três anos.
Um pouco mais adiante havia uma
mesquita, a maior de Londres, de acordo com minha escolta. Uma pequena multidão
de homens estava do lado de fora, todos usando roupas folgadas, barbas longas e
chapéus brancos típicos. Todas aquelas pessoas tinham abandonado seus países de
origem, indispostas a ou incapazes de deixar o passado para trás, apenas para se
reunirem aqui, onde defendem a sua cultura com mais força do que em Nairóbi.
Ali estava a mesquita, como um norte magnético simbólico, a força que levava as
mulheres deles a se cobrir com tamanha ferocidade, para melhor separá-las da
terrível influência da cultura e dos valores do país onde escolheram morar. Foi
apenas um vislumbre, e ainda assim fui acometida por uma sensação instantânea
de pânico e sufocamento. Eu estava de volta ao coração de tudo: dentro do mundo
de véus e antolhos, do mundo em que as mulheres precisam esconder o cabelo e o
corpo, precisam se encolher para comer em público, e precisam manter a
distância de alguns passos quando acompanham o marido na rua. Uma teia de
valores, de horror, de vergonha e de religião, ainda me enredava a todas
aquelas mulheres no ponto de autocarro e a quase todas as mulheres que passavam
pela Whitechapel Road naquela manhã. Estávamos todas muito longe de onde nasci,
mas eu era a única que tinha deixado para trás aquela cultura. Elas trouxeram
consigo a sua teia de valores, atravessando metade do mundo. Tive a sensação
de ser a única verdadeira nómada.
A
Minha meia-irmã
No
caminho de volta até ao aeroporto de Heathrow, lembrei-me da primeira vez que encontrei
a minha meia-irmã, Sahra, em 1992, na Etiópia. Ela tinha oito anos, e eu, com
22, tinha acabado de me casar e estava a caminho da Europa. Apelamos para a
linguagem de sinais, sorrimos, ficamos de mãos dadas e falhando nas tentativas
de compreender uma à outra. Sahra era uma criança adorável, com uma curiosidade
luminosa e um jeito de demonstrar afeição fisicamente que herdara do meu pai.
Ela corria pela casa com a mesma energia, entusiasmo e espírito brincalhão da
minha irmã Haweya. Naquele dia, Sahra vestia um vestido sem mangas, rasgado e
remendado em tantos pontos que não pude evitar de me sentir constrangida por não
lhe ter trazido um novo». In Ayaan Hirsi Ali, Nomad, From Islam to America,
Nómade, tradução de Augusto Calil, Companhia das Letras, 2010, ISBN
978-858-086-374-1 e / ou In Ayaan Hirsi Ali, Nómada, Galaxia Gutenberg, 2011,
ISBN 978-848-109-928-7.
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