sábado, 31 de dezembro de 2011

Bom Ano. 2012. Que não seja 'Adamastor'. «Os economistas tinham sobretudo a obrigação de não nos andarem a calcular inflações e a taxa de juro e essas coisas, mas dizerem de que maneira é que nós podemos fazer avançar a gratuitidade da vida»

Cortesia de wikipedia

«Ser companheiro vale mais do que ser chefe. É preciso que os homens à sua volta nunca tenham nenhuma angústia, não sofram nunca por o sentirem a você superior a eles; a sua superioridade, se existir, deve ser um bálsamo nas feridas, deve consolá-los, aliviar-lhes as dores. A sua grandeza, querido Amigo, deve servir para os tornar grandes, no que lhes é possível, não para os humilhar, para os lançar no desespero, no rancor, na inveja». In Agostinho da Silva, ‘Sete cartas a um jovem filósofo’, página 19.

«Os economistas tinham sobretudo a obrigação de não nos andarem a calcular inflações e a taxa de juro e essas coisas, mas dizerem de que maneira é que nós podemos fazer avançar a gratuitidade da vida». In Agostinho da Silva, ‘Entrevista’, página 25.

«Aqui tem você um conselho que lhe poderá servir para a sua filosofia: não force nunca; seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte. Deixe que tudo suceda como um fruto maduro que se abre e lança no solo as sementes fecundas. Que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida». In Agostinho da Silva, ‘Sete cartas a um jovem filósofo’, páginas 31/32.

Cortesia de dreamtime

JDACT

Bento de Jesus Caraça. Conceitos Fundamentais da Matemática. «Uns, aceitando-o como um dado real, […] fazem dele a base de partida do seu esforço na compreensão do real. Outros, aterrorizados pelo sentimento de instabilidade que ele provoca, instabilidade que nada poupa, do mundo físico ao mundo social, reagem, procurando substituir o mundo real do ‘devir’, por um mundo artificial da “permanência”»

jdact

As duas características fundamentais
«A “Realidade” que a inteligência dos homens se esforça por compreender, o Mundo, no seu sentido mais largo, apresenta-se com duas características essenciais:
1ª – “Interdependência”. Todas as coisas estão relacionadas umas com as outras; o Mundo, toda esta “Realidade” em que estamos mergulhados, é um organismo vivo, uno, cujos compartimentos comunicam e participam, todos, da vida uns dos outros.
Olhemos, por exemplo, coisa tão simples como o crescimento duma pequena erva num campo, e examinemos, com cuidado, as coisas de que depende: temos, em primeiro lugar, a constituição geológica do solo, a quantidade de calor recebida do Sol, etc., coisas que não podem perceber-se desligadas da situação da Terra no sistema solar, e deste no Universo; é por consequência, todo o problema cosmológico. Em segundo lugar, sobre o crescimento da pequena planta influem as condições climatéricas da região, e estas dependem de toda a complexidade de fenómenos atmosféricos o marinhos, actividade das manchas solares, etc.. Temos, ainda, a acção exercida pelos outros organismos vegetais e animais, há, próximo da pequena erva, outras plantas? Quais? E animais? De que natureza? Concorrendo para a sua destruição ou para a sua conservação? É a região habitada pelo homem? Se é, que interesse tom ele pela pequenina planta? Que animais cria ele que a possam prejudicar ou favorecer? Porquê? que condições de fertilidade proporciona ele ao solo? Que regime de cultura exerce? Porquê? Quais são as condições de trabalho da região?
Como se vê, uma vez examinada a questão com um pouco de cuidado, começam a aperecer as dependências, a ligar-se os problemas:
  • problema cosmológico,
  • problema físico,
  • problema económico;
  • problema social,
  • tocam-se e entrelaçam-se no mais íntimo detalhe do organismo universal.
2ª – “Fluência”. O Mundo está em permanente evolução; todas as coisas, a todo o momento, se transformam, tudo ”flue”, tudo “devém”. Isto, que é a afirmação fundamental do filósofo ‘Heraclito’ de Efeso foi, posteriormente, reconhecido por grandes pensadores e pode ser verificado por qualquer de nós, seja qual for aquele objecto em que fixemos a nossa atenção.

jdact

Pois não é verdade que tudo está sujeito a uma mesma lei de nascimento, vida e morte, que, por sua vez, vai originar outros nascimentos? Isto é evidente para os seres do mundo animal; é-o ainda para os do mundo vegetal, mas parece falso para os objectos do mundo mineral.
No entanto, basta observar com atenção, tomando o recuo conveniente; notar como até as coisas mais estáveis se alteram com o tempo: como o ferro envelhece com a ferrugem, como a rocha se desagrega e se torna areia, como as próprias montanhas mudam de forma pela erosão, como os rios mudam do leito, as margens dos continentes ganham e perdem em luta com o mar.

Tudo está numa permanente agitação e, por graus insensíveis, evolucionando de forma que a Terra não é, neste instante, a mesma que era há momentos, e será daqui a uns momentos diferente da que é agora. Do tal modo que nem a própria frase «o que é agora» tem significado real; durante o tempo que ela levou a pronunciar, ou a escrever, o processo de evolução actuou e a Terra transformou-se.
E evolucionando assim, ela participa ainda doutra evolução mais larga; girando em torno do Sol, ela entra na vida de outro organismo, o sistema solar, com a sua evolução própria que condiciona a de cada um dos seus componentes. E assim, do mesmo modo, de grau em grau de complexidade e de extensão; do sistema solar à Via Láctea, desta ao Universo, considerado como conjunto de ilhas galácticas. De modo que, do extremo superior ao inferior da escala, do movimento prodigioso de ‘expansão' do Universo, ao movimento, não menos prodigioso, das partículas constituintes do átomo, tudo flue, tudo devém, tudo é, a todo o momento, “uma coisa nova”.

jdact

Este princípio do permanente rejuvenescimento tem preocupado os pensadores de todos os tempos e provocado as atitudes mais contraditórias.
Uns, aceitando-o como um dado real, uma característica fundamental da Natureza, fazem dele a base de partida do seu esforço na compreensão do real. Outros, aterrorizados pelo sentimento de instabilidade que ele provoca, instabilidade que nada poupa, do mundo físico ao mundo social, reagem, procurando substituir o mundo real do ‘devir’, por um mundo artificial da “permanência”.

A História do Pensamento está cheia desta luta gigantesca, luta de que a ciência só desponta em estado relativamente adiantado da civilização, estado que permita a todos viver e a alguns pensar». In Bento de Jesus Caraça, Conceitos Fundamentais da Matemática, Tipografia Matemática, Lisboa, 1951.

Cortesia da Tipografia Matemática/JDACT

Instituto de Meteorologia. 65 Anos ao Serviço do País e dos Cidadãos: Passa a Instituto Português do Mar e da Atmosfera

Cortesia de IM

O que me interessa sobretudo na História do SNM, INMG, IM IP, seria dar-lhe conteúdo actual, melhor, manter a designação de Meteorologia de Portugal (como acontece em todos os países ligados à ONU). No presente, ao mudarem a sua designação para Instituto Português do Mar e da Atmosfera, IP, que aparece no DR nº 249, o seu conteúdo eterno pode manter-se no seu seio, mas ao fim de 65 anos de vida cheia de sucessos e de salvaguarda de vidas humanas e materiais, para ser simples no pensamento, acaba por parecer como um arqueológico episódio do passado.

A História é sempre simples quando é entendida pela lógica. O IM, IP vai ser sempre humilde para entender a História do Presente. A vontade dos homens nem sempre será entendida como fonte de Criação. Nos grandes momentos, quiçá, na actualidade, todos são heróis dos Descobrimentos, viajam sempre na ideia vaga que desempenham a perfeição.

O descobrir, pode não ter o aplauso do público, mesmo que este tenha estudado muita geometria ou trigonometria.

Cortesia de IM
 
JDACT

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Leonel Borrela. Cartas de Soror Mariana Alcoforado. Das Lettres Portugaises. «Denunciam a sua eminente prostração, mas não a consomem, pois ela irá viver muitos mais anos, não sabemos se para cortar de vez com essa apaixonada obsessão ou se para vivê-la no silêncio»

Cortesia de 100luz

Das Cartas e da sua época
«Lettres Portugaises é a denominação por que são conhecidas mundialmente as célebres cartas de amor portuguesas editadas em Paris, em 1669, pelo livreiro francês Claude Barbin. O Privilégio Real, datado de 28 de Outubro de 1668, permitir-lhe-á o exclusivo editorial, em França, pelo prazo de cinco anos.
Com efeito, a primeira edição ou edição princeps, saiu do prelo no dia 4 de Janeiro de 1669, sob o título de “Lettres Portugaises traduites en François”. Há uma tendência bastante generalizada para negligenciar o teor da totalidade deste título. Normalmente sublinha-se somente “Lettres Portugaises” e, quando é citada a informação completa do título original, ignora-se, também bastantes vezes, o verbo francês ‘traduire’ (traduzir) substituindo-o por ‘écrire’ (escrever), além de se transcrever ‘françois’ como ‘français’ (forma actual). Cartas Portuguesas traduzidas em francês não é, obviamente, o mesmo que Cartas Portuguesas escritas (que poderiam ter sido ou não traduzidas) em francês. São pormenores desta natureza, involuntários ou não, mas ditos comezinhos por quem desconhece as características nefastas da sua diversidade e o peso mediático do seu somatório, que ocultam ou tentam ocultar, a verdade subjacente ao título, isto é, à autoria portuguesa das Cartas.

Barbin, na sua advertência “Av Lectevr” (Ao Leitor), refere o trabalho árduo que teve para obter nas melhores condições as cinco copias das cartas portuguesas que já andavam manuscritas e traduzidas para francês e argumenta que a publicação, além de prestar um bom serviço a quem tanto as procura, contribui para a sua preservação. Afirma também que desconhece quem as escreveu, quem as traduziu e a quem foram dedicadas, conquanto saliente “un Gentil homme de qualité, qui servoit en Portugal” (um gentil homem de qualidade, que serviu em Portugal).

A persistência das capitulares e dos ornamentos à cabeça
Cortesia de 100luz

A edição ‘princeps’ vai originar, ainda no mesmo ano de 1669, reedições, novas edições e contrafacções, sempre em língua francesa, mas em locais diferentes como Amesterdão (Holanda) ou Colónia (Alemanha), além de Grenoble e Lyon, igualmente em França. Seguir-se-ão muitas mais edições em francês, inglês, italiano e alemão, até ao começo do segundo quartel do século XX, período charneira de mudança de atitude, como veremos, face à tradicionalmente reconhecida autoria portuguesa das Cartas.
Numa outra edição, de Isaac van Dyck, do mesmo ano de 1669:
  • “Lettres d'une Religieuse Portugaise, traduites en françois”;
  • e ainda noutra, de Corneille de Graef também contemporânea das anteriores, mas de 1690 “Lettres d'Amour d'une Religieuse Portugaise ecrites au Chevalier de C. officier françois en Portugal”,vemos como os títulos vão esclarecendo quem escreve o quê e a quem.
A insistência da presença portuguesa expressa nos títulos, prefácios e conteúdo de obras seiscentistas portuguesas, publicadas por Barbin, como a que refere a crónica de Francisco Alcoforado (1427?), companheiro de Zarco, sobre a descoberta da ilha da Madeira, não parece ser coincidência, como que a tentar provar aos incrédulos a relação familiar, genuína, entre Mariana, cujo nome familiar só alguns conheceriam, e aquele membro mais antigo dos Alcoforados.

NOTA: De igual modo se poderia, provavelmente, relacionar a família de Mariana Alcoforado com um dos primeiros impressores de Braga, em 1521, Pedro Gonçalves Alcoforado, de que A. Forjaz de Sampaio dá notícia na sua obra ‘A Tipografia Portuguesa no século XVI’. Os Alcoforados foram também uma família ligada à tragédia, e não só através de Mariana, pois um seu antepassado, António Alcoforado, foi morto por ordem do 4º duque de Bragança, D. Jaime, em 1512, devido a uma intriga palaciana que o denunciara como amante da jovem duquesa D. Leonor, de 23 anos de idade. De um lado a escrita, a cultur e, do outro, a paixão e a desgraça...no tempo de Vasco da Gama, cujo descendente, D. Francisco da Gama, conde da Vidigueira, seria, em 1640, o padrinho de baptismo de Marianna.

Assento de baptismo de Mariano Alcoforado
Cortesia de 100luz

O sucesso das Cartas foi de tal natureza que bem depressa se lhe associaram mais sete (tal e o caso da edição do 2º tomo de Isaac van Dyck, de 1669), além das ficcionadas respostas de Chamilly (exemplo da edição de Corneille le Graef, de 1690). Assim, os livreiros, engrossavam a obra e aumentavam os lucros, fazendo até contrafacções para fugir ao fisco.
Mas, afinal, o que têm as Cartas de tão especial para a época, o que as distingue de tantas obras criadas, recriadas, imaginadas, por tantos eruditos de salão, desejosos de fama, de escândalos freiráticos, realengos e aristocratas, levando-os a competir uns com os outros por um lugar ao sol nos salões das não menos célebres madames de Maintenont, de La Fayette, de Scudéry, de Sabliere e de Sablé, entre muitas outras? Descomprimir um pouco dos códigos da corte de Luís XIV, proporcionava aos intervenientes, homens e mulheres, momentos de "honesta liberdade" e de rara felicidade, pois nesse tempo a possibilidade de um encontro privado era tão rara que um homem e uma mulher, quando o tinham, não podiam perder tempo com conversas de janela. Neste contexto, algo hedonista, surgem as primeiras edições das “Lettres Portugaises”, cuja menção é notória, em 1671, nalgumas das cartas escritas por Madame de Sévigné (1626-1696) a sua filha Madame de Grignan ao referir-se ao conteúdo tão afectuoso da carta que recebera de Madame Brancas. Porém, apesar de revelarem uma grande admiração pela exacerbada fogosidade das Cartas portuguesas e demonstrarem o quanto já eram conhecidas, a generalidade dos leitores só tomaria contacto com a intimidade e os assuntos tratados nas cartas de Sévigné depois da sua primeira edição clandestina e das seguintes, a partir de 1726. Acreditava-se que de facto aquelas cinco epístolas tinham sido escritas por uma mulher portuguesa, religiosa, enclausurada num convento em Portugal, a qual, de tão amorosa que foi, desditosamente, se perdeu apaixonadamente por um oficial francês, regressado a França, depois de ter combatido os espanhóis pela independência do nosso país. As Cartas são um grito de dor, de desencanto total, de repúdio pela constante indiferença que Mariana percebe através das parcas cartas do seu amado. Denunciam a sua eminente prostração, mas não a consomem, pois ela irá viver muitos mais anos, não sabemos se para cortar de vez com essa apaixonada obsessão ou se para vivê-la no silêncio». In Leonel Borrela, Cartas de Soror Mariana Alcoforado, Edição 100Luz, 2007, ISBN 978-972-99886-7-7.

Cortesia de 100Luz/JDACT

Carlos Montalto de Jesus. Macau Histórico. Edição de 1926. «O entreposto comercial ficava, então, não muito longe de Macau, no Porto de Tamou (Porto Namo), na ilha de Hau Chuen, contígua a Chang Chuen, ou Sanchuan, vulgarmente conhecida como Ilha de S. João»

Afonso de Albuquerque, século XVIII
Cortesia de foriente

Macau Histórico
«Os portugueses vão assim e finalmente ter a oportunidade de ler na sua própria língua e de julgar uma «edição maldita» cujos exemplares, quando foi posta à venda em Macau, foram apreendidos e confiscados aos que já os possuíam para serem destruídos pelo fogo em auto-de-fé. O seu autor caiu em desgraça. Isto aconteceu em Macau nos idos de 1926, ano em que em Portugal, foi posto fim à I República, substituída pela Ditadura Militar. Era o ‘28 de Maio’. Os sucessivos fracassos na fundação de uma colónia na China. As mal sucedidas embaixadas ao Filho do Céu. Os primeiros preconceitos xenófobos. Assustadora série de desastres. A misteriosa destruição de Liampó. Sofrimento e morte de S. Francisco Xavier. Finalmente tréguas».

«Sabe-se que as narrativas da viagem de Marco Polo à China exerceram uma considerável influência nos feitos náuticos que culminaram na façanha, iniciadora de uma época, de Vasco da Gama, influência que, como seria de esperar, cedo deve ter levado os portugueses à maravilhosa Catai, tão brilhantemente descrita pelo viajante veneziano. Contudo só vinte anos depois da descoberta do caminho marítimo para a Índia os portugueses enviaram a sua primeira expedição à China, tal deve ter sido o esforço nos seus inadequados recursos nessa época de exploração e conquista. A primeira expedição a Malaca, todavia, trouxe ordens reais para que se averiguasse acerca de certos assuntos respeitantes à China, especialmente sobre se lá havia estrangeiros radicados. Sob os auspícios de Albuquerque, pouco depois, na véspera do assalto a Malaca, começaram, aí, as relações entre os portugueses e os chineses, com uma “entente cordiale” que contrastava singularmente com a traiçoeira hostilidade dos malaios. Os patrões de alguns juncos chineses nesse porto, que sofriam sob a tirania e a rapacidade do sultão, encontraram bondade e protecção em Albuquerque a quem ofereceram ajuda. Este ao recusá-la cortesmente, tinha em vista não só o prestígio orgulhoso das armas portuguesas mas também a salvaguarda da comunidade chinesa, que poderia, de outra forma, ter sido vitimada em represália. O grande estadista e militar pediu aos seus ajudantes que testemunhassem a valentia posta na conquista daquela quase inexpugnável cidade e que, no regresso à China, convencessem os seus conterrâneos da conveniência de terem os portugueses como amigos. Que Albuquerque tinha a melhor opinião da civilização chinesa, depreende-se do facto de, nos seus ‘Comentários’, ter frisado que encontrara mais educação e humanidade nos patrões dos juncos chineses do que na nata da aristocracia europeia, uma opinião que, por muito duvidosa que hoje em dia seja, era então justificada pela grosseria e brutalidade que caracterizavam a Idade Média.

Mapa de Macau, em 1889
Cortesia de wikipedia

A política de Albuquerque por outro lado, conseguia o desejado efeito de criar uma impressão favorável entre os chineses: quando o sultão, um vassalo da China, pediu socorro a Pequim, este foi-lhe negado, evidentemente porque, ao contrário dele os portugueses haviam tratado bem os chineses. Mas a conquista de um estado tributário da China antecipou as desavenças. Se ainda esperassem tributo de Malaca, este poderia apenas ser o que certa vez Albuquerque simbolicamente deu em Ormuz, uma bala de canhão. Albuquerque mandou enviados ao Sião e a outros estados vizinhos, mas nenhum à China; reservava, possivelmente para si a missão de forjar os destinos dos portugueses nesse império. Infelizmente, pouco depois, o seu regresso a casa, seguido da sua morte, privou os portugueses de um chefe ímpar, honrado e temido por onde quer que fosse, visse e conquistasse. Foi sob as ordens de um dos mais distintos oficiais de Albuquerque que se fez ao mar a primeira expedição à China, precedida ainda de duas notáveis viagens em junco u partir de Malaca:
  • Jorge Álvares, em 1515, levantou um “padrão”, um pilar de pedra com as armas de Portugal, em Tamou;
  • e, no ano seguinte, partiu Rafael Perestrello, cujas aventuras pela China maravilharam os portugueses em Malaca.
O entreposto comercial ficava, então, não muito longe de Macau, no Porto de Tamou (Porto Namo), na ilha de Hau Chuen, contígua a Chang Chuen, ou Sanchuan, vulgarmente conhecida como Ilha de S. João. Em 1517 apareceu por lá uma frota portuguesa, cinco naus e quatro juncos, sob o comando de Fernão Peres de Andrade, que se destacara no bravo assalto a Malaca. Os imponentes barcos europeus, os primeiros a sulcar o Mar da China, eram olhados com a característica desconfiança chinesa. Um esquadrão imperial, aí instalado em consequência de uma pirataria florescente, atacou os estranhos recém-chegados, disparando alguns tiros. Os barcos de Andrade, contudo, alegremente decorados e a toque de trombeta, dirigiram-se pacificamente para o porto; e o ‘hai-tao’ foi tranquilizado quanto à natureza amistosa da missão. Na frota vinha uma embaixada com uma carta e presentes do rei de Portugal para o imperador da China. Segundo Barros, o enviado Tomé Pires, um simples boticário empregado na selecção das drogas enviadas da Índia, fora considerado adequado para a missão por ser simpático e culto, liberal e de trato agradável e, ainda, curioso e bom observador, qualidades às quais, segundo se diz, devia a nomeação pelo governador de Goa, a quem o rei dera instruções para mandar uma embaixada à China. Propôs-se desembarcar o enviado e estabelecer relações comerciais em Cantão mas como os mandarins ignorassem os repetidos pedidos nesse sentido, Andrade forçou o caminho com duas naus e todos os barcos disponíveis. Isto levantou dificuldades à chegada, agravadas pelo facto, sem precedentes, de ter sido arvorada uma bandeira estrangeira e disparada uma salva, o que foi, evidentemente, tomado por hostil. No entanto, depois das devidas explicações, foi dada uma recepção cordial à embaixada, ainda que as transacções comerciais, iniciadas sob os mais favoráveis auspícios, tivessem sido frustradas pela morte do feitor. A doença grassava entre os portugueses, que ao conhecerem as notícias de um ataque pirata ao resto da frota, regressaram a Tamou. Antes de partir Andrade proclamou que qualquer ofensa dos seus homens seria por ele retaliada, procedimento que os chineses admiraram e exaltaram. À vista das grandes quantidades de ouro trazido para Tamou pelos comerciantes japoneses, Andrade enviou, num barco, um grupo exploratório, comandado por Jorge Mascarenhas, que, quando foi mandado regressar em consequência de a frota ser urgentemente necessária para socorrer Malaca, já tinha chegado até Chincheu, na província de Foquien. Que as relações diplomáticas e comerciais não eram o único objectivo em vista, pode-se deduzir da ordem que a expedição trazia de procurar livros chineses famosos e de os mandar traduzir, assim como de regressar com alguns homens e mulheres chineses. Vários cronistas dessa época, em especial Castanheda e Couto, afirmam que Fernão Peres de Andrade foi, ele próprio, como embaixador à China. Há, na verdade razões plausíveis para se supor ter sido este o caso; e em vista das exigências derrogatórias da corte chinesa Andrade deve ter renunciado ao seu direito de precedência e desdenhosamente designado o boticário como enviado. De qualquer modo, a prolongada estada de Pires em Cantão aponta para algumas sérias dificuldades». In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926, Macau Histórico, 1ª edição em Português, 1990, Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT

O Neutrino. O evento científico de maior impacto social em 2011. «Os neutrinos apenas têm massa e não têm carga, de modo que o seu sinal é tão fraco que poderia atravessar a Terra sem sofrer variações no número ou na direcção. E essa é uma parte fundamental na metodologia da experiência realizada no CERN»

Acelerador de partículas do cern
Cortesia de reuters

No início deste ano, o comum dos mortais não tinha ideia do que significava a palavra “neutrino”. Mas hoje, não é necessário ser doutorado em Física para conhecer o nome da partícula, classificada como estrela mediática da ciência em 2011, ao superar a velocidade da luz, e questionar a Teoria da Relatividade de Alberto Einstein ao alimentar a fantasia utópica dos “Viajantes no Tempo”. Os neutrinos apenas têm massa e não têm carga, de modo que o seu sinal é tão fraco que poderia atravessar a Terra sem sofrer variações no número ou na direcção. E essa é uma parte fundamental na metodologia da experiência realizada no CERN. Ao não ter carga, os neutrinos não podem acelerar-se num acelerador de partículas como o LHC de Genebra.

Rolf Heuer, director do CERN
Cortesia de efe

Há uma semana a revista ‘Science’ apresentou a sua tradicional lista de “descobertas” do ano, e a famosa experiência dos neutrinos realizada no CERN e no LN de Gran Sasso na Itália não surge nos acontecimentos mais votados. Isto é fácil de compreender, já que boa parte da comunidade científica pôs em causa a validade dos resultados, e a imensa polémica que rodeia todo este assunto.
Todavia, ainda que para muitos cientistas a ideia de que os neutrinos viajam mais rápido que a luz não seja de momento mais do que uma hipótese duvidosa, é indiscutível que a experiência apresentada e apregoada pelo CERN foi o evento científico de maior impacto social em 2011». Pablo Jáuregui, Mono Pensante.
Manuscrito de Alberto Einstein 

Cortesia de cern

Houve outras ditas descobertas, mas nenhuma foi capaz de competir com o extraordinário impacto dos “neutrinos” que foram os protagonistas indiscutíveis de um ano que voltou a demonstrar, mais uma vez, a fascinação cada vez maior da ciência na nossa sociedade. Fenómeno que alguém definiu (Punset), e com razão, como "a emergência do conhecimento científico na cultura popular".

JDACT

Umberto Eco. Leituras. Parte XLI: «Explicou-me pacientemente que queria saber quais são os nossos adversários históricos, aqueles que nos matam e que nós matamos. Repeti-lhe que não os temos, que a última guerra fizemo-la há mais de meio século e, para além disso, começando-a com um inimigo e acabando-a com um outro»


Cortesia de soundradio e eujafui

Construir o Inimigo
«Há uns anos, em Nova Iorque, calhou-me um taxista com um nome de difícil decifração, e esclareceu-me que era paquistanês. Perguntou-me de onde vinha e eu disse-lhe que de Itália. Perguntou-me quantos somos e ficou impressionado por sermos tão poucos e por a nossa língua não ser o inglês.
Por fim, perguntou-me quem são os nossos inimigos. Ao meu «desculpe?», esclareceu pacientemente que queria saber com que povos estaríamos há séculos em guerra por reivindicações territoriais, ódios étnicos, contínuas violações de fronteiras, e por aí fora. Disse-lhe que não estamos em guerra com ninguém. Explicou-me pacientemente que queria saber quais são os nossos adversários históricos, aqueles que nos matam e que nós matamos. Repeti-lhe que não os temos, que a última guerra fizemo-la há mais de meio século e, para além disso, começando-a com um inimigo e acabando-a com um outro.
Não ficou satisfeito. Como é possível que haja um povo que não tem inimigos? Saí, deixando-lhe dois dólares de gorjeta para o compensar pelo nosso indolente pacifismo, depois veio-me à cabeça o que lhe devia ter respondido, isto é, que não é verdade que os italianos não tenham inimigos. Não têm inimigos externos, e, em todo o caso, nunca são capazes de se pôr de acordo para estabelecer quais são, porque estão continuamente em guerra entre eles: Pisa contra Lucca, Guelfos contra Gibelinos, Nortistas contra Sulistas, Fascistas contra Partigianos, Máfia contra Estado, Governo contra Magistratura, e é uma pena que, na época, não se tivesse dado ainda a queda dos dois governos Prodi, senão eu teria podido explicar-lhe melhor o que significa perder uma guerra por culpa do fogo amigo.

Porém, reflectindo melhor sobre este episódio, convenci-me de que uma das desgraças do nosso país, nos últimos sessenta anos, foi precisamente não ter tido verdadeiros inimigos. A unidade de Itália fez-se graças à presença do austríaco ou, como pretendia Berchet, do «hirto e enfadonho alemão»; Mussolini (maldito) pôde gozar do consenso popular incitando-nos a vingar-nos da «vitória mutilada», das humilhações sofridas em Dogali e em Adua e das demo-plutocracias judaicas que nos infligiam as iníquas sanções. Veja-se o que aconteceu aos Estados Unidos quando desapareceu o Império do Mal e o grande inimigo soviético se dissolveu. Arriscavam o ruir da sua identidade, até que Bin Laden, grato pelos benefícios recebidos quando era ajudado contra a União Soviética, estendeu aos Estados Unidos a sua mão misericordiosa e forneceu a Bush a oportunidade de criar novos inimigos, reforçando o sentimento de identidade nacional, e o seu poder.

Ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, no afrontá-lo, o nosso valor. Portanto, quando o inimigo não existe, há que construí-lo. Veja-se a generosa flexibilidade com que os ‘naziskins’ de Verona elegiam como inimigo quem quer que não pertencesse ao seu grupo, para se reconhecerem como grupo. Eis que, nesta ocasião, não nos interessa tanto o fenómeno quase natural de identificar um inimigo que nos ameaça, quanto o processo de produção e demonização do inimigo.
Nas ‘Catilinárias’ (II, 1-10), Cícero não tivera necessidade de desenhar uma imagem do inimigo, porque tinha as provas da conspiração de Catilina. Mas constrói-o quando, no segundo discurso, pinta aos senadores a imagem dos amigos de Catilina, reverberando sobre o principal acusado a sua auréola de perversidade moral:
  • Indivíduos que acampam nos banquetes, que estão agarrados a mulheres desavergonhadas, que amolecem pelo vinho, empanturrados de comida, coroados de grinaldas, besuntados de unguentos, debilitados pela copulação, vomitam nas palavras que é preciso massacrar os cidadãos honestos e incendiar a cidade. [...] Vós os tendes diante dos olhos: sem um cabelo fora do sítio, imberbes ou com a barba bem aparada, vestidos com túnicas até aos tornozelos e com as mangas compridas, envolvidos em véus e não em togas... Estes "meninos" tão graciosos e delicados aprenderam não apenas a amar e a ser amados, a dançar e a cantar, mas também a brandir punhais e a administrar venenos.

Cortesia de discoverybrasiluol

O moralismo de Cícero será, depois, o mesmo de Agostinho, que quererá ferver os pagãos, porquanto, ao contrário dos cristãos, frequentam circos, teatros, anfiteatros e celebram festas orgiásticas. Os inimigos são ‘diferentes’ de nós e comportam-se segundo costumes que não são os nossos.
Alguém diferente, por excelência, é o estrangeiro. Já nos baixos-relevos romanos os bárbaros aparecem como barbudos e achatados, e a própria denominação de bárbaros, como é sabido, alude a um defeito de linguagem e, portanto, de pensamento.
Todavia, desde o princípio que são construídos como inimigos não tanto os diferentes que nos ameaçam directamente (como seria o caso dos bárbaros), mas aqueles que alguém tem interesse em representar como ameaçadores, ainda que não nos ameacem directamente, de modo que não é tanto o seu carácter ameaçador que faz ressaltar neles a diferença, mas é a sua diferença que se torna sinal de carácter ameaçador.

Veja-se o que diz Tácito acerca dos hebreus:
  • "Profano é, para eles, tudo aquilo que é sagrado para nós, e o que é para nós impuro é para eles lícito" (e vem à mente o repúdio anglo-saxão pelos comedores de rãs franceses, ou o alemão pelos italianos que abusam de alho). Os hebreus são "estranhos”, porque se abstêm da carne de porco, não põem fermento no pão, descansam ao sétimo dia, casam-se apenas entre eles, circuncidam-se (atenção), não porque seja uma norma higiénica ou religiosa, mas «para marcar a sua diferença», sepultam os mortos e não veneram os nossos Césares. Uma vez demonstrado quão diferentes são alguns costumes reais (circuncisão, repouso no sábado), pode sublinhar-se posteriormente a diferença, inserindo no retrato costumes lendários (consagram a efígie de um burro, desprezam os pais, filhos, irmãos, a pátria e os deuses)".
Plínio não encontra pontos de acusação significativos para os cristãos, visto que tem de admitir que estes não se dedicam a cometer crimes, mas apenas a fazer acções virtuosas. Todavia, manda-os matar, porque não sacrificam ao imperador, e esta obstinação em recusar uma coisa tão óbvia e natural estabelece a sua diferença. Nova forma de inimigo será, depois, com o desenvolvimento dos contactos entre os povos, não apenas aquele que está fora e que exibe a sua estranheza de longe, mas aquele que está dentro, entre nós - diríamos hoje o imigrante extra-comunitário, que, de algum modo, se comporta de maneira diferente ou fala mal a nossa língua, e que, na sátira de Juvenal, é o gregozinho esperto e trapaceiro, descarado, libidinoso, capaz de levar para a cama a avó de um amigo.
Estrangeiro entre todos, e pela cor diferente, é o negro. Na entrada «Negro», da “Encyclopaedia Britannica”, primeira edição americana, 1798, lia-se:
  • Na carnação dos negros encontramos diversas matizes; mas todos se diferenciam, da mesma maneira, dos outros homens em todas as feições dos seus rostos. Faces redondas, maçãs-do-rosto altas, uma testa ligeiramente elevada, nariz curto, largo e achatado, lábios grossos, orelhas pequenas, fealdade e irregularidade de forma caracterizam o seu aspecto exterior. As mulheres negras têm costas muito descaídas e nádegas muito grandes, que lhes conferem a forma de uma sela. Os vícios mais conhecidos parecem ser o destino desta raça infeliz diz-se que o ócio, a traição, a vingança, a crueldade, a impudência, o furto, a mentira, o turpilóquio, a devassidão, a mesquinhez e a intemperança terão extinguido os princípios da lei natural e terão silenciado as censuras da consciência. São estranhos a qualquer sentimento de compaixão e constituem um terrível exemplo da corrupção do homem quando abandonado a si mesmo.
O negro é feio. O inimigo deve ser feio, porque se identifica o belo com o bom (‘kalokagathia’), e um dos caracteres fundamentais da beleza foi sempre aquele a que a Idade Média chamará depois ‘integritas’ (isto é, o ter tudo quanto é requerido para ser um representante médio daquela espécie, pelo que, entre os humanos, serão feios aqueles a quem faltar um membro, um olho, os que tenham uma estatura inferior à média ou uma cor «desumana»). Eis, então, que, desde o gigante zarolho Polifemo ao anão Mime, temos imediatamente o modelo de identificação do inimigo. Prisco de Pânio, no século V d. C., descreve Átila como baixo de estatura, com um tórax largo e uma cabeça grande, os olhos pequenos, a barba fina e grisalha, o nariz achatado e (traço fundamental) a carnação escura. Mas é curioso como o rosto de Átila se assemelha à fisionomia do diabo, tal como o vê, mais de cinco séculos depois, Rodolfo, o ‘Glabro’, de estatura modesta, pescoço delgado, rosto macilento, olhos muito negros, testa bastante enrugada, nariz achatado, boca saliente, lábios intumescidos, queixo estreito e afilado, barba caprina, orelhas hirsutas e pontiagudas, cabelos em pé e desgrenhados, dentadura canina, crânio alongado, peito saliente, costas corcovadas (‘Crónicas’, V, 2)». In Umberto Eco, Construir o Inimigo e outros escritos ocasionais, Gradiva, 2011, ISBN 978-989-616-435-5.

Cortesia de Gradiva/JDACT

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O Infante D. Pedro das “Sete Partidas”. Parte 3. Imagem Física, moral e social: «D. Pedro... foi desde a infância muito dedicado ao estudo das sangradas letras e das outras boas artes, e tanto ainda em moço se distinguiu por seu espírito de justiça, por sua liberalidade, comedimento e valor, que atraía sobre si as vistas de todos, dando esperança de vir a ser um grande príncipe»

Cortesia de wikipedia

«Dispomos contudo da sua assinatura em diversos documentos; reproduzimos a que consta da Colecção Especial, Caixa 34, Arquivo Nacional da Torre do Tombo:

Cortesia do arquivodatorredotombo

Como pessoa, saber e carácter, temos os seguintes testemunhos contemporâneos directos ou indirectos (grafia e pontuação actualizadas):
  • «É um homem sóbrio, muito esmoler para os necessitados, magnânimo e generoso com as pessoas de todas as condições, afável para todos, humano, rico em bondades desta transitória vida». (Códice VIII 2048/49, páginas 859/65, 1428, da Biblioteca Marciana de Veneza).
  • «O infante d. Pedro... era um dos príncipes do mundo que mais sabia das cerimónias que a tais casos pertenciam, porque, além do seu grande e natural saber, estudara nas artes liberais e andara fora destes reinos pela principal parte da cristandade...» (Zurara, “Crónica de D. Duarte de Menezes”).
  • «D. Pedro... foi desde a infância muito dedicado ao estudo das sangradas letras e das outras boas artes, e tanto ainda em moço se distinguiu por seu espírito de justiça, por sua liberalidade, comedimento e valor, que atraía sobre si as vistas de todos, dando esperança de vir a ser um grande príncipe. E que não foram vãs suas promessas, bem o comprovou com a sua vida e costumes». (Mateus Pisano, “De bello septensi/A conquista de Ceuta”)

Cortesia de wikipedia

  • «... (de) andar vagaroso e repousado. Suas palavras eram graciosas e suas sentenças mui graves e substanciais; e quando alguma sanha lhe tocasse era sua cara mui temerosa, porém não lhe durava muito, pois por siso se lembrava de mansidão e temperança. Teve para todas as coisas horas certas e limitadas que nunca trespassou. Foi liberal com medida... E mandava ler proveitosos livros e ter práticas e disputas de que se tomava ensino e doutrina. (Rui de Pina, “Crónica de D. Afonso V”).
Aspectos do seu Pensamento
«Sobre aspectos do seu pensamento político, os demonstrativos de uma consciência crítica dos problemas do país e das necessárias medidas a tomar, transcrevem-se alguns trechos (grafia e pontuação actualizadas). Da Carta de Bruges (1426) endereçada a D. Duarte, futuro rei, mas já incumbido de responsabilidades governativas por D. João I:
  • Aconselhando a presença de representantes dos três estados sociais (clero, nobreza e povo) no Conselho e Tribunal reais;
  • «Senhor, bem sabeis quanto presta o bom conselho que é tido e ouvido em boa ordenança; por isso me parece, Senhor, que todos vossos feitos assim... deviam ser determinados; e assim, Senhor, neste Conselho como na vossa Relação, me parece que deveis ter homens de todos os estados (sociais) da vossa terra, assim cleresia, como de fidalgos e do povo, para vos aconselharem que não ordenásseis coisa contra seus proveitos nem em quebranto de seus bons privilégios»
In José Ermitão Wikipédia.

Continua
Cortesia de Wikipedia/JDACT

Guitarra Portuguesa. Música. «Descende da cítara da Europa ocidental. Um instrumento muito popular, com numerosos modelos durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Alguns modelos sobreviveram até ao século XIX»

Cortesia de fadonl








Cortesia de wikipedia

JDACT

Música. Shania Twain. «Uma cantora, produtora, escritora e compositora canadense de música “country” e música “pop”»

Cortesia de people






 

JDACT

Alves Redol. Barranco de Cegos. «Um romancista de tese, é um homem envolvido numa cadeia ou num bordado de eventos, um homem incluído, quer queira quer não, numa tonalidade psicológica que dá o movimento e ritmo a um bailado de campinos, proprietários, maiorais, toiros, cavalos, mulheres fortes e dramáticas, raparigas românticas e perturbadas por estranhas contradições»

(1911-1969)
Vila Franca de Xira
No seu centenário de nascimento
Cortesia de portugáliacontemporanea

 Cortesia de dn

«Sabe crescer quem pode evoluir. E pode evoluir quem é capaz de renovar métodos os, processos e temas, de modo a superar-se em amplidão de perspectivas e enriquecimento de caminhos. É o caso de Alves Redol, o vigoroso romancista de livros muito discutidos que fizeram época, como «Gaibéus», «Avieiros», «Fanga» ou «Porto Manso». (...) Porventura a melhor qualidade de Barranco de Cegos, (...) é um livro vago, abstracto, irrepreensível em termos de rigor, mas presente em cada situação, em cada acontecimento, em cada diálogo deste fresco que nos mostra a lezíria e o seus fantasmas, a lezíria de há um século, rediviva na memória mística, emocional e colectiva do romancista. (...) Redol, antes de ser um romancista, e um romancista de tese, é um homem (...) envolvido numa cadeia ou num bordado de eventos, um homem incluído, quer queira quer não, numa tonalidade psicológica que dá o movimento e ritmo a um bailado de campinos, proprietários, maiorais, toiros, cavalos, mulheres fortes e dramáticas, raparigas românticas e perturbadas por estranhas contradições. O que impressionada, neste romance, não é o antagonismo ou a dialéctica de personagens, de tipos ou de classes, mas ao contrário, uma identificação, que a terra mais propicia e estimula. (...) Se o Cavalo Espantado nos revela um romancista voltado à análise psicológica de uma situação dada, Barranco de Cegos apresenta-nos o amadurecimento de quem já poder para manejar os mais diversos tipos humanos, na sua evolução no tempo, no seu diálogo e na sua dialéctica. (...) Queremos dizer que Alves Redol acaba por superar Alves Redol». In António Quadros, Neo-Realismo em evolução, «o Cavalo Espantado» e «Barranco de Cegos», de Alves Redol em Crítica e Verdade (1964).




Barranco de Cegos, romance de 1961, é considerada a "obra-prima de Alves Redol", expoente do neo-realismo em Portugal. A obra acaba por ser a biografia de uma personagem real, mas fundamentalmente simbólica de um potentado ribatejano, cuja história Redol relata a partir de 1891, ano da revolta republicana no Porto. Barranco de Cegos faz parte de uma fase que começou com “A Barca dos Sete Lemes” e em que a intervenção política e social é posta em segundo plano, dando lugar a uma centralização nas personagens e na sua evolução psicológica.
Diogo Relvas, protagonista que desencadeia a narrativa, é um latifundiário de pensamento bucólico, que não concorda com os avanços industriais, que impõe suas leis para todos a sua volta.

A narrativa é caracterizada por uma ordem cronológica, e também por um tempo histórico, pois é passada em um momento de crise em 1891, “O Banco Lusitano já rachara pelo meio (...)”. É composta por um espaço social, isto fica evidente na descrição do espaço político e económico da época, “A corrida ao dinheiro prosseguia, alucinada. Lutava-se, a murro, por moedas de ouro à porta dos banqueiros ou por um lugar nas bichas das tesourarias(...)”. Retrata as diferenças que existem entre as classes sociais, as condições de trabalho, e do espaço da grande cidade em relação ao espaço e rural, tudo isto com um forte tom de denúncia.

Cortesia de mariamoraisinterdinamica


Redol coloca-nos em situações adversas em sua obra. Traz um Portugal que está inserido em um contexto político de mudança brusca e instabilidade econômica e que vai culminar na crise de 1891. Apresenta a divisão existente dentro da burguesia entre os liberais e absolutistas, republicanos e monárquicos, rurais e urbanos. Há, portanto, uma preocupação em mostrar que não existe uma única visão sobre os fatos mesmo sendo participante de um mesmo grupo social ou passando por uma questão em comum. Acima de todos os aspectos sociais que a obra possa ter, Redol coloca como um dos pontos em evidência as desventuras de uma família que com os passar das gerações vai se tornando mais distante.
Deste modo, Barranco de Cegos conta a trajectória dos Relvas, abastados lavradores com propriedades em Ribatejo e Alentejo. A história tem seu início com o funeral de Rui Araújo, genro de Diogo Relvas e está inserido na crise financeira de1891, o colapso de economia portuguesa, onde logo após o enterro Diogo se reúne com os poderosos de Aldebarã para achar um meio de fazer pressão sobre o Governo, obrigá-lo a escolher a lavoura que sempre foi um meio seguro aos investimentos duvidosos da indústria. Depois Somos situados a Torre dos Quatro Ventos, lugar no qual Diogo conversa com seus antepassados. Sente-se o crescimento do ideal republicano e a queda do poder de Diogo Relvas é inevitável. Desamparado e sem prestigio na vila vai morrer na Torre, sozinho, sem que ninguém saiba será embalsamado. Só depois de um acidente é que se descobre a verdade sobre o mito de 110 anos de vida de Diogo Relvas.almanaquesilvawordpress

“Foi então que certo gato lírico resolveu oferecer à gata amarela um pássaro vivo. Tinha a certeza de que ela gostaria de apanhar um entre as patas. Cheia de ardis, fingiu-se morto no telhado sobre o qual se erguia a torre, lugar predilecto de toda a passarada da floresta. Os beirados estavam cheio de ninhos e de trinados. Já amarinhara ao coruto, estendera a pata vezes sem conta e nada conseguira. Mas o gato lírico não desistia do projecto. E numa manhã de Janeiro, ainda por cima cheia de sol ameno, já medidos e estudados todos os movimentos da passarada vadia, o gato estendeu-se no telhado, serrando os olhos. Pouco a pouco, uns pardais afoitos quase lhe tocaram nas asas brincalhonas. Vinham em grupos, primeiro; depois chegaram-se outros; e um deles, sózinho, gordo, podia dizer-se correu sobre o beirado, debicou umas ervas nascidas por ali, e voltou-se para os lados da mata, querem cantar também. O gato descerrou mais os olhos, mediu bem a distancia e lançou-se num salto. Espavorido, o pardal abalou rente às telhas, batendo as asas com frenesi, e foi tocar num dos vidros da torre, julgando que tinha o espaço livre à sua frente. Cego também, o gato deduziu mesmo. E como não dispunha de meios para voar e o corpo lhe pesava de mais, enfiou a cabeça por um vidro grande e achou-se dentro do mirante. Ainda o coração não se refizera do susto, deparou-se-lhe a figura imponente do lavrador, sentado na cadeira onde o caruncho roía, roía… Pareceu-lhe vê-lo erguer-se e com três saltos saiu por outra janela, estilhaçando mais um vidro. Devagar, aproximou-se do sítio onde jazia o pó deixado por Diogo Relvas e pegou cuidadosamente nos farrapos da jaqueta e da calça sevilhana. Abriu uma das janelas, olhou à volta e resolveu-se a sacudir o avô, deixando que a brisa da tarde pegasse naquela poeira fina e branca. Tão branca e tão fina que uma espécie de nevoeiro começou a serrar-se à volta dos limites de Aldebarã, envolvendo-a com o manto espesso de uma noite estranha e alva na qual voavam abutres, pronto a acometer quem viesse perturbar a doce paz dos lagartos de loiça”.

Cortesia de gloria

Trata-se de um romance do neo-realismo português escrito e publicado em 1962, Barranco de Cegos é contado em três livros: “Horas Plenas”, “Horas Amargas” e “Horas Absurdas”. Tem uma estrutura com pequenos capítulos. Usa a crise de 1891 como cenário para a narração, percebendo-se que há uma preocupação com a descrição deste espaço político. Expõe as condições de vida e de trabalho da classe rural de Ribatejo. O titulo é retirado da epígrafe de S. Mateus ("Deixai-os; cegos são e condutores de cegos; e se um cego guia a outro cego, ambos vêm a cair no barranco"). O próprio autor afirma que o papel de sua obra, não se limita à literatura, ou à arte pela arte mas que tem a intenção de fornecer uma utilidade para a sociedade. Podemos perceber isto quando ele afirma que: “A arte deve contribuir para o desenvolvimento da consciência e para melhorar a ordem social.”». In Wikipédia

Cortesia de madresilva

Cortesia de António Quadros e Wikipédia/JDACT

Páginas Desconhecidas: O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870. «… decretava, punha e dispunha; e como o primeiro dizia à Europa que Portugal descera às condições do Haiti, o segundo nos confirmava que a empresa de 19 de Maio era perfeitamente uma farsa. Quem alguma vez esperou que a soberania ajudasse e fosse aliada nas dificuldades, deve estar desenganado já».

jdact

«Porque o vulcão ainda não abriu as crateras, nem expeliu a lava, julgam-no inofensivo. Baltasar ceava quando os Medos e os Persas invadiam Babilónia. Carlos X espreguiçava-se no trono na véspera do exílio. Para os governichos constitucionais a questão financeira é o Sphinx mitológico que precipitava quem o afrontasse, sem o vencer. Para o povo o fisco é um vampiro, o avantesma, o lobo cerval, o ogre faminto. Nos serões do lar, por essas terras além de gente rude, que nunca pôs olhos nos sorvedoiros do orçamento, conta-se, como se fora lenda tradicional, que aquele vampiro suga a substância do pobre, e rasga o seio como o pelicano para acrescentar as riquezas do rico. Para lhe iludir a voracidade, até o furto astucioso é tido por arma honrada e cortês.

Produziram estes milagres de civismo as probas e espertas administrações do regime constitucional. Houve já quem calculasse que teriam bastado os dinheiros emparedados no convento de Mafra pelos Césares de sacristia para cobrir Portugal com uma bem urdida teia de estradas. Também o povo somou os capitais devorados improdutivamente pelos constitucionais em trinta e tantos anos de orgia, começamos já a ver o resultado da operação; vê-lo-emos ainda mais terrível, terrível sobretudo para o curador pródigo, que deixou que se apegassem, às mãos suas e dos seus, os capitais que se constituíam o património do tutelado, terrível para a monarquia constitucional que barafusta, entalada nas tenazes dum dilema fatal: a guerra civil ou a bancarrota.
Foi ao encontro destas duas calamidades sociais o actual ministério. Aproximou-as. Não sei se espera, com a confiança insensata dos revolucionários, extirpar o “deficit” às baionetas, ou se, gangrenado pelo separatismo, tenciona espreguiçar-se nas cadeiras do poder, esperando que sobre os outros se desmorone o edifício social a que eles vão arrancando o cimento. Violência e incúria são dois meios, ambos ajustados ao intento de precipitar as catástrofes iminentes. Reformas políticas só uma há que pudesse aproveitar à questão da fazenda. Era a abdicação da monarquia constitucional nas mãos do povo, ou a reivindicação dos direitos do povo, alheados em favor da monarquia constitucional.

Modificações no organismo dos corpos legislativos, reformas eleitorais, regulamentações dos direitos de associação, de petição, de todos por natureza “irregulamentáveis”, são punhados de terra com que um governo usurpador quer cegar os olhos da nação. Todo este alardo de projectos revolucionários há-de descambar em impotência e desconcerto em presença do orçamento. Só um governo verdadeiramente popular, como o governo republicano:
  • pode pedir ao povo e obter dele os sacrifícios indispensáveis para restabelecer o equilíbrio financeiro;
  • só uma ampla descentralização, incompatível com a monarquia, pode diminuir eficazmente os encargos do tesouro;
  • só a iniciativa particular, impossível debaixo da tutória do Constitucionalismo, pode fomentar, com a riqueza pública, o desenvolvimento do capital tributável.
O país precisará sacrificar as instituições políticas vigentes para se poder salvar a si. Se, em vez disso, se abraçar com a monarquia, se se escudar com a Constituição, cairá com a monarquia constitucional. e será subvertido no vórtice dos acontecimentos políticos, que se preparam na Europa.


jdact

Vai um mês que se consumou a revolta; é tempo de perguntarmos o que tem dado. Até agora, um só facto a caracteriza, a chuva de mercês e nomeações. São estadistas todos os parentes do marechal. Que admira? Em Roma não houve cônsul um cavalo?
São ministros, embaixadores, os sobrinhos, os primos, os netos. E os amigos, os compadres, os consócios são marqueses, condes e viscondes. O marechal derrubou o ministério porque o entendia “nefasto”. Mas para o substituir por quê? Não sabia bem. Os ministros eram perniciosos à nação. E quais seriam os escolhidos? O marechal não sabia ainda.
Oh! Os tiros da Ajuda, se não tivessem desgraçadamente vitimado uns infelizes que não sabiam o que faziam, deviam ser respondidos com uma enorme gargalhada! Que revolta é esta que vence, e, vencendo, morre? Que ideia teve? O que quer? Quem são os homens? O marechal, o marechal, o marechal!
O marechal é uma ideia, é um partido, é um sistema… em verdade poderia sê-lo? Um só, o da Força. Mas nem esse! Nunca se viu coisa mais torpe nem mais miserável. Fez-se uma revolta militar, alterou-se a ordem ppor coisa alguma. O marechal está pronto a abdicar, seja em quem for.
Pobre país!

Nós, republicanos, aplaudiríamos, desejaríamos, se, além de republicanos, não fossemos homens e portugueses, que outra revolta rebentasse amanhã, outra e depois outra, porque à terceira, com o ministério, baquearia o trono. Mas não.
  • Porque tais coisas custam sempre a vida aos inocentes, não aos culpados;
  • Porque a liberdade tem de ser ganha com a razão, não com a escopeta;
  • Porque a República assenta sobre a paz, não sobre a guerra;
  • É direito, não a exploração;
  • Convence, não conquista;
  • Abraça, não fuzila;
  • E mentiria a si, se um dia mentisse àquilo que é a fonte donde vem a Justiça, onde os órgãos soberanos não são abrangidos pelas dificuldades.
Vai num mês, e ainda não se formou ministério. O que se tem dado agora, já três ou quatro vezes se deu depois de Janeiro de 1868. Quem quer pastas? Quem quer ser ministro? E há uma dificuldade imensa em fazer ministérios. Dir-se-ia que a abnegação é a primeira qualidade dos nossos homens públicos…
Não se formou ministério.
Mas, não obstante a circular de el-rei, Soulouque lá foi dizer à Europa até que ponto a monarquia descera entre nós; e enquanto o marechal escrevia o “papel”, o ministro “fac-totum”, o Dias Ferreira, decretava, punha e dispunha; e como o primeiro dizia à Europa que Portugal descera às condições do Haiti, o segundo nos confirmava que a empresa de 19 de Maio era perfeitamente uma farsa. Quem alguma vez esperou que a soberania ajudasse para as dificuldades, deve estar desenganado já (230De “A República”, 1870, nº 5.

In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870 e a Ditadura de Saldanha, Seara Nova 1948, Lisboa.

Continua
Cortesia de Seara Nova/JDACT

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Crónicas de Fernão Lopes. O critério histórico: «Competia ao primeiro cronista-mor do reino a narração dos "grandes feitos e altos" de D. João I, mas como acentuavam as duas cartas régias, na sequência das crónicas dos reis da primeira dinastia, ou, nos termos da carta de 1449, da "crónica dos feitos dos reis de Portugal"».

Cortesia de wikipedia

O critério histórico
«Ainda está por determinar quais as crónicas redigidas por Fernão Lopes, além daquelas que averiguadamente lhe pertencem, Crónica de D. Pedro I, Crónica de D. Fernando e Crónica d’elrei Dom João I de Boa Memória, e dos Reis de Portugal o Décimo (primeira e segunda partes). Já no século XVI, Damião de Góis atribuía também ao nosso primeiro cronista a redacção da Terceira Crónica de D. João I, texto que teria sido parcialmente aproveitado por Gomes Eanes de Azurara, na Crónica da Tomada de Ceuta. E segundo aquele humanista, Fernão Lopes teria redigido também a Crónica de D. Duarte, plagiada e publicada por Rui de Pina. Damião de Góis foi também o primeiro a observar que Fernão Lopes alude frequentemente a acontecimentos anteriores ao reinado de D. Pedro, como se os tivesse narrado.
Assim, no Prólogo da Crónica de D. Pedro, o cronista refere-se à «ordem do nosso arrazoado, no primeiro prólogo já tangida», no capítulo I observa: «Morto el rei D. Afonso, como haveis ouvido, insistindo, nos capítulos XXVII e XLIV: «Já tendes ouvido», «como ouvistes», «como em seu lugar tendes ouvido». No capítulo XII é mais explícito: «Já vós ouvistes bem quanto os Reis antigos fizeram…».
Também Gomes Eanes de Azurara afirma que a actividade cronística de Fernão Lopes começara ainda antes da nomeação oficial, visto que D. Duarte «em sendo infante, lhe cometeu o cargo de apanhar os avisamentos que pertenciam a todos aqueles feitos e os ajuntar e ordenar segundo pertencia à grandeza deles e autoridade dos príncipes e outras notáveis pessoas que os fizeram».
Se a carta régia de 1434 atribuía já a Fernão Lopes o cargo de «poer em carónica as estórias dos reis que antigamente em Portugal foram», a 11 de Janeiro de 1449, assinada por D. Afonso V, pouco antes do encontro de Alfarrobeira, e destinada a aumentar a tença atribuída por D. Duarte, sublinhava:
  • «pelos grandes trabalhos que ele há tomado e ainda há-de tomar em fazer a crónica dos feitos dos reis de Portugal».

Cortesia de wikipedia 

Assim, competia ao primeiro cronista-mor do reino a narração dos «grandes feitos e altos» de D. João I, mas como acentuavam as duas cartas régias, na sequência das crónicas dos reis da primeira dinastia, ou, nos termos da carta de 1449, da «crónica dos feitos dos reis de Portugal».
Deste modo, Fernão Lopes teria deixado dois volumes de crónicas, como também se deduz do seguinte passo da Primeira Parte da Crónica de D. João I:
  • «[…] No começo desta obra nomeados fidalgos alguns, que ao conde dom Henrique ajudaram ganhar a terra aos mouros; assi neste segundo volume diremos uns poucos dos que ao Mestre foram companheiros em defender o reino de seus imigos».
A descoberta dos manuscritos de duas crónicas anónimas parece vir confirmar as hipóteses sugeridas por Damião de Góis, corroborando as afirmações do próprio Fernão Lopes. O códice encontrado, em 1942, na Biblioteca Municipal do Porto (publicado com o título de Crónica dos Cinco Reis de Portugal, porque apenas relata a história dos cinco primeiros reinados) apresenta grandes semelhanças, quanto à técnica da narração e ao estilo, com as crónicas de Fernão Lopes.
O mesmo acontece com o manuscrito pertencente à Casa Cadaval, que abrange, além do governo do conde D. Henrique, os sete primeiros reinados. Corresponde ao códice completo (de que a Crónica dos Cinco Reis é apenas um fragmento) e foi impresso em 1952 com o título de Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal. É também conhecido por Crónica de Portugal de 1419, porque, segundo está registado no texto, foi iniciada nesta data, pouco tempo depois de FL ter entrado ao serviço do rei e do infante D. Duarte. Deve corresponder, pois, à Crónica de Portugal ou Crónica Geral do Reino, que segundo o testemunho de Azurara, existia na livraria de D Duarte.
Considerada perdida, teria sido aproveitada por Rui de Pina e outros cronistas. Também a Crónica do Algarve se integra nesta obra, apresentando as características dos textos de FL, o qual, todavia, e de acordo com o método historiográfico de então, poderá ter aproveitado e desenvolvido uma «estória» ou relato de uma testemunha presencial.
Parece poder concluir-se que as Crónicas de D. Pedro e D. Fernando fazem parte da Crónica dos Feitos dos Reis de Portugal, mas está ainda por averiguar com exactidão qual a contribuição de FL nas crónicas assinadas por Rui de Pina (1440? – 1522), assim como nas de Duarte Galvão (? – 1517), Acenheiro (1474 - ?) e Duarte Nunes de Leão (1530? – 1608). Contudo, as três crónicas de FL não chegaram até nós no texto original, assinado pelo autor; apenas possuímos os apógrafos, isto é, cópias elaboradas por ordem de D. Manuel, nos princípios do século XVI». In Maria Tarracha Ferreira, Crónicas de Fernão Lopes, biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 1993, ISBN – 972-568-132-0.

Cortesia de M. T. Ferreira/JDACT

Jaime Cortesão. Crónicas Desaparecidas, Mutiladas e Falseadas. «Na “Crónica de D. João II”, isto é, quando os Descobrimentos dominam toda a política do Estado, apenas dois ligeiros capítulos lhes são expressamente dedicados. O ajustamento e simultaneidade destes factos bastaria, que uns se explicam pelos outros, ou melhor, que tanto o desaparecimento das crónicas como o silêncio de Rui de Pina sobre os Descobrimentos…»

jdact

«Uma outra série de razões, que passamos a enumerar, nos confirma inteiramente nessa explicação do enigma.

a) Antes de mais nada convém observar que, pelo que diz respeito à obra de Azurara, apenas desapareceram as crónicas que certamente se referiam a Descobrimentos. De todas as restantes e que hoje se conhecem existiam, antes da impressão, e existem numerosos apógrafos nas Bibliotecas Nacional, Municipal do Porto, da Academia de Ciências e Torre do Tombo.

b) Na “Crónica de D. Duarte”, de Rui de Pina, não se fala de Descobrimentos.

c) Na de Afonso V, do mesmo cronista, apenas um capítulo se refere muito ligeiramente à grande empresa nacional. Foi o mesmo Góis quem primeiramente o observou: «… porque nas crónicas del rei D. João e del rei D. Duarte, seu filho, nenhuma cousa se trata do que toca a estes descobrimentos e na del rei D. Afonso quinto, seu neto, em um só capítulo, onde se escreve o falecimento do infante D. Henrique, conta este cronista, brevemente, algumas cousas das que até então passaram…»

d) Na “Crónica de D. João II”, isto é, quando os Descobrimentos dominam toda a política do Estado, apenas dois ligeiros capítulos lhes são expressamente dedicados.

e) Sobre as explorações atlânticas, a ocidente dos arquipélagos dos Açores, Madeira e Cabo Verde, realizadas desde o reinado de Afonso V e continuadas em tempo de João II, nem uma palavra existe nas respectivas crónicas. Todavia, uma dessas expedições, ordenada por este último monarca, e antes da primeira partida de Colombo, a de Pedro de Barcelos e João Fernandes Labrador, à América do Norte, alcançava a «parte do norte», segundo os documentos autênticos do tempo.

O ajustamento e simultaneidade destes factos bastaria, se outras razões mais poderosas não tivéssemos, a evidenciar que uns se explicam pelos outros, ou melhor, que tanto o desaparecimento das crónicas como o silêncio de Rui de Pina sobre os Descobrimentos se filiam no segredo que envolveu desde o começo a empresa nacional. As crónicas que versavam os Descobrimentos foram sequestradas ou destruídas, tal coimo os nossos grandes feitos navegadores desapareceram das obras de Rui de Pina.

Cortesia de wikipedia

Nem este assumiria à grave responsabilidade de chamar suas as alheias crónicas, quando muitos testemunhos o poderiam delatar, se lhe não tivessem dado o encargo de as “emendar”, como diz Barros, isto é, de apagar delas tudo o que pudesse informar os estranhos sobre as causas íntimas e muitos dos resultados da empresa nacional.
Qual a alma vil e peca de cronista, que na sua história de motu-próprio calasse ou diminuísse as nossas maiores façanhas, se alguma grave razão de Estado o não tivesse coibido?

Como explicar o desaparecimento duma série tão notável de crónicas se uma razão comum o não justificasse?

Em abono desta opinião devemos relembrar ainda alguns factos semelhantes e já hoje presentes.
f) Da série de crónicas desaparecidas ou caladas, durante o tempo em que os Descobrimentos foram o eixo de toda a vida nacional, devemos aproximar o mistério que nesta mesma época envolveu os livros que versavam a arte náutica, em que foram os mestres da Europa. O mais notável deles, o “Regimento do Astrolábio”, uma espécie de manual prático para ensinança de marinheiros, e que estes dois cronistas igualmente calaram, tornou-se tão raro que da primeira edição conhecida só há poucos anos tivemos notícia pelo exemplar único da Biblioteca de Munique que Joaquim Bensaúde estudou e publicou pela primeira vez. O mesmo ilustre historiógrafo conclui que o desaparecimento total duma primeira edição dessa obra e a extrema raridade da segunda, foram deliberadamente provocados.

g) Os documentos da cartografia portuguesa do século XV desapareceram também inteiramente.

h) A mesma sorte ainda tiveram muitos dos documentos originais, que mais nos poderiam elucidar e se referiam a terras ou ilhas descobertas, as instruções dadas aos navegantes e os seus respectivos relatórios.

Cortesia de wikipedia 

Uns e outros factos têm sido explicados pela mesma razão: o segredo nacional.
Finalmente outras razões demonstram a nossa afirmação.
i) Quem meditar na compreensão da história que sucessivamente tiveram Lopes, Azurara e Pina depressa compreenderá que este despojou as crónicas daqueles, ao “emendá-las”, de muitos dos factos e pormenores, que encarnam o povo na vida da nação e tornam forte e palpitante o seu relato. Quem ler a “Crónica de D. João I”, de Fernão Lopes, na parte que hoje conhecemos, e onde se sentem tumultuar os interesses e paixões das classes e onde a burguesia e os mesteres, mais organizados, substituindo-se a uma nobreza dividida, inspiram, servem e amparam os heróis nacionais; ou as crónicas da Guiné e dos condes de Meneses, de Azurara, onde tantas vezes transparecem os grandes objectivos nacionais, e ainda a intervenção das classes, posto que sem o vigor daquele, mas sempre tão minuciosa, tão humanas em certos passos e tão severas por vezes no juízo dos homens, e as comparar às crónicas de Rui de Pina, maiormente as do “Africano” e do “Príncipe Perfeito”, onde a nação se apaga e mal rasteja como uma sombra aos pés do trono, anémicas, escassas, subservientes, constatará com dor que as deste último são um pálido resumo das crónicas dos seus antecessores, que ele aproveitou, e representam com a sua monstruosa deformação uma imensa e irremediável perda para a história nacional (247)». In Jaime Cortesão, A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora, Lisboa 1965.

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