Cortesia da uc
Os mais Antigos Documentos Escritos em Português
Revisão de um problema histórico linguístico
«No actual território português o latim clássico sofreu até ao séc. IX uma transformação tão profunda que levou J. M. Piel a afirmar que pelos fins deste século: «o idioma do futuro Condado Portugalense apresentava fonética e lexicalmente maiores afinidades com o português de hoje do que com o latim falado no tempo da colonização romana».
Desde então até ao séc. XII, temos o período a que Leite de Vasconcelos chamou do Português proto-histórico, durante o qual vão aparecendo algumas palavras portuguesas ou aportuguesadas por entre o latim bárbaro dos documentos.
NOTA: Este trabalho foi preparado no Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, Série de «Estudo e Publicação de Fontes da História Medieval de Portugal» (Instituto de Paleografia e Diplomática). Embora não se possa precisar o período exacto em que o latim falado na antiga Lusitânia atingiria tal grau de transformação que merecesse a denominação de português, não há dúvida que, pelo menos, dois séculos antes do ano 1100 o idioma do futuro Condado Portugalense apresentava fonética e lexicalmente maiores afinidades com o português de hoje do que com o latim falado no tempo da colonização romana).
Atendendo à sua grande antiguidade, o exemplo mais significativo que conheço é um diploma original de 25 de Agosto de 1008, proveniente do cartório da Sé de Coimbra, em que se lê:
- «...et illa alia mediatate reserbamus pro nos et nec vindamus Nec donemus ad alio homine nisit ad ti ou tu a nos. Abeas firmiter de nostro dato (...) et fauolasti proa me ad meo marito Virterla et dimisit mici illa merze et rezebit me pro sua muliere et consudunasti nos todos tres in tua kasa ad tua bemfeitoria (...) nos illa devindigare non potuerimus pos tua parte ou tu in uoci nostra...».
No séc. XII, os termos em vulgar tornam-se de cada vez mais frequentes, como mostrou Pedro de Azevedo, e estão datados dos finais deste século dois documentos redigidos em português - O ‘Auto de partilhas de 1192’ e o ‘Testamento de 1193’. Dos princípios do séc. XIII temos a ‘Notícía de torto e o Testamento’ de D. Afonso II, de 27 de Junho de 1214, seguindo-se-lhe um longo hiato até aparecer novo documento em português em 1255.
1192, Março. Auto de partilhas
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A crítica que em 1957 se elaborou à autenticidade do ‘Auto de partilhas’ de 1192 obrigou a rever o problema dos mais antigos documentos em português, como escreveu M. de Paiva Boléo:
- «O problema dos primeiros textos portugueses não literários renovou-se completamente a partir de 1957, ano em que Avelino de Jesus da Costa chegou à conclusão, pelo exame paleográfico do documento - de que o ‘Auto de partilhas’ não era um documento original, mas uma cópia bastante posterior».
NOTA: Paiva Boléo continua: Com data de l1 de Abril de 1957, teve a amabilidade de me escrever uma carta em que punha pela primeira vez o problema nos seguintes termos: «O ‘Auto de partilhas’ de 1192 não se pode apresentar como o primeiro documento em português, porque se trata de uma cópia do século XIV e não de um original. É bem sabido que os escribas que faziam as cópias alteravam, muitas vezes, o original, adaptando-o à linguagem corrente na época da cópia. Parece-me que foi o que se deu com o referido «Auto de partilhas», em que o copista deve ter traduzido para a linguagem do seu tempo a parte dispositiva do documento, conservando o latim na introdução e subscrição do mesmo. Mais me convence disso o facto de haver outra cópia do século XVII em que se actualiza, por ex. [...onrra d'Ulveira (...) que chamam da Ulvar para honra d'Oliveira (...) que chamão do Olival]. Posteriormente, numa extensa recensão ao ‘Anuario de Estudios Medievales’, publicada na Revista de Guimrirães, vol. 75, 1965, já esquecido dessa carta que me tinha escrito, diz que foi em 1958, numa aula de Paleografia, que chamou a atenção dos alunos para esse documento. Aí fornece diversas informações, que deixam bem evidenciado ter sido ele a primeira pessoa a pôr o problema.
Dada a especial importância deste problema histórico linguístico, julgo oportuno submeter o ‘Auto de partilhas’ a novo exame crítico, abrangendo neste também os outros três mais antigos documentos escritos em português.
Auto de Partilhas de 1192
Até 1957, o ‘Auto de partilhas’ foi tido unanimemente como o mais antigo texto português (não literário) provido de data, e, como tal, citado ou transcrito em todas as obras portuguesas e estrangeiras, que tratam do português arcaico.
1193, Setembro. Testamento de Elvira Sanches
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Em Fevereiro daquele ano, ao fazer o estudo crítico de vários documentos nas aulas práticas de Paleografia e Diplomática, apresentei fotocópia do referido ‘Auto’, mostrando que, atendendo aos caracteres paleográficos da escrita e ao português em que estava redigido, não podia ser um documento original de 1192 mas um texto dos fins do séc. XIII ou princípios do XIV. Não podia, por conseguinte, ser apresentado como o texto português mais antigo, porque o escriba devia ter traduzido para a linguagem do seu tempo a parte dispositiva do diploma original, mantendo o latim apenas na introdução, na data e nas subscrições. Dava-se até a coincidência de haver uma cópia do séc. XVII (cuja fotocópia também apresentei), em que o português arcaico deste ‘Auto’ foi actualizado, substituindo, por ex.: «...onrra d'Ulueira (...) que chamam da Vluar» por «...honra de Oliveira (...) que chamão do Olival...».
Em carta de 11 de Abril de 1957, expus ao Professor Paiva Boléo a minha opinião sobre este documento. Tendo tomado conhecimento dela, o Feliciano Ramos pediu-me que lha expusesse por escrito para justificar a eliminação do ‘Auto de partilhas’ da 4ª edição da ‘História da Literatura Portuguesa’, que estava a preparar.
Não querendo ir contra a opinião unânime de todos os filólogos e historiadores da Literatura portuguesa sem ter o apoio de uma autoridade em Paleografia e Diplomática, consultei sobre esta matéria Rui de Azevedo, que, em carta de 28 de Dezembro de 1958, me disse que nunca tinha reflectido no ‘Auto de partilhas’, mas que, examinando-o agora, corroborava a minha opinião, sugerindo, porém, que, em vez de uma cópia ou versão, poderia ser uma falsificação dos fins do séc. XIII inícios do XIV, atendendo a que se tratava de um problema de partilhas». In Avelino de Jesus da Costa, Os Mais Antigos Documentos Escritos Em Português, Revisão de um problema Histórico linguístico, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Revista Portuguesa de História, Coimbra, 1979.
Cortesia da Universidade de Coimbra/JDACT