A Tempestade
«São grandes senhores!, disse frei Zedilho. Sim, eram! Mas, com o serem, continuavam escravos do grão-turco e se não cumpriam os seus ofícios e governos como deviam, não se ensaiava nada em tirá-los do cargo e com facilidade os mandava matar, se lhe parecia, sem haver quem lho ousasse contradizer. Se porém serviam fiel e louvavelmente, promovia-os de uma dignidade pequena a outra maior. Ordinariamente não dava estas funções senão por três anos, já se via com que intenção...
Tínhamos passada toda a Albânia com a diversidade dos seus portos,
cidades e lugares, entre os quais a famosa Castória, edificada dentro do mar
como a rica Veneza, e a inexpugnável Valona, onde ao presente o grão-turco tem
a sua esquadra de galés e naus de que se serve nas batalhas navais. Pérides,
com o seu olhar habituado a perscrutar o horizonte onde começava a sombrear a
mancha de uma ilha, disse: Tenho de vos deixar. Estamos a chegar a Corfu.
Bateu-me mais forte o coração e senti subitamente um grande medo do que iria
encontrar naquela ilha.
Não tardou muito que a víssemos com nitidez, suas muralhas edificadas
sobre a rocha viva, e pouco tempo depois dávamos entrada pelo estreitíssimo
canal que vai entre a ilha e a terra dos Turcos, tão estreito que as
embarcações que entram não podem fazer manobra para se voltarem e necessitam de
um vento para entrar e outro para sair. Por isso muitas vezes sucede estarem
ali detidas sem poderem fazer viagem, salvo sendo ajudadas pelas galés que a
senhoria veneziana ali tem continuamente para guarda e defensão da ilha.
A muita proximidade da terra dos Turcos faz que estes a cobicem e mais
que uma vez tentaram tomá-la, mas sem resultado, pois Veneza tem sabido
defendê-la, com a guarnição militar dos seus dois fortíssimos castelos
roqueiros sobre o mar e as suas cerca de trinta galés.
Enigma Alfa. 1501 - 1545
O que murmuram os canaviais
Herdou as saboarias paterna, mas não a provedoria, que o pai vendera para
pagar dívidas. Casava assim a irmã Inês com um homem bem dotado e rico. Uma
pontinha de inveja? Ana era mais velha que Inês e lá se quedava naquele casarão
de Santarém, condenada a cuidar do pai viúvo e dos irmãos, sem a companhia da
irmã nem da aia Maria do Céu que Inês levava consigo. Súbito veio o luto: Inês
morria do parto do filho Francisco; o cunhado casava segunda vez, com uma prima
dele, Filipa, de quem teve o filho Fruitos; falecida a segunda mulher, volta a
contrair matrimónio, agora Isabel Vieira que se finou de peste sem lhe dar geração:
e pela quarta vez com Isabel Gomes Limi que gerou cinco filhos: primeiro Rui
como o pai, falecido ainda no berço, o segundo Manuel e depois Damião, Baltasar
e Antónia. A aia ia ficando na casa a cuidar das crianças.
Em mil e quinhentos e onze, Isabel viu-se viúva. Foi então que ao menino
Damião, nascera em mil e quinhentos e dois como o príncipe João, recordava Ana,
após o saimento do pai levou-o para a corte, ainda na idade do eixo e do pião,
o meio-irmão Fruitos, a sugestão de el-rei de quem era moço da guarda-roupa. Aí
vão os dois rapazes a entrar nos Paços da Ribeira. Largo e comprido corredor de
portadas de vidro viradas ao terreiro e, ao fundo, às naus varadas no Tejo.
Grossos tocheiros em castiçais dourados. A espaços certos, pesadas portas de
carvalho polido e nos intervalos, em frente das portadas, grandes espelhos a
beberem a luz e a espalharem claridade.
Soam-lhes os passos nas
lajes de mármore, os de Fruitos mais largos, os do irmão miudinhos. Na última
porta dois archeiros fardados de librés com galões de ouro fazem sentinela. Na
antecâmara vem recebê-los o guarda-mor: por aqui. Vais ver o senhor do mundo,
segreda Fruitos ao ouvido do irmão.
O rei Emanuel estava sentado
em cadeirão de espaldar, junto a uma mesa com papéis, a ditar suas cartas ao
secretário. Ao vê-los, parou de ditar e ergueu o olhar para o menino. Damião
arregalou os olhos de água. O rei sorria-lhe: aproxima-te. Beija a mão a Sua
Alteza, disse-lhe Fruitos em voz baixa. Damião, num dobrar de joelhos, os olhos
cheios de lágrimas, beijou a mão do rei. Estás espantado, moço? Nunca viste um
rei? Que se passa com teu irmão, Fruitos? Senhor, nosso pai foi a enterrar. E
ver-te agora…, a tua parecença com ele... Até eu, habituado a ti, estou
torvado. Vá meu filho, disse o rei afagando a cabeça do menino, enxuga-me essas
lágrimas. Serei para ti um pai, verás. Ana Macedo recordava estas coisa com o
susto na alma e, quando Maria do Céu se preparava para ingressar num convento…
Volta para Santarém, propõe-lhe. A nossa casa continua a ser a tua. Maria do
Céu ripostava: mas, menina… Céu, estou sozinha, meu paizinho Deus o chamou,
meus irmãos na Índia... Cá me soou que a menina vai casar…
Sacrifiquei os meus vinte
anos a tratar do pai e dos irmãos. Agora, com trinta e cinco, não achas que é tempo
de casar? ... e de ter filhos... Mais uma razão para lhe fazeres companhia.
Recordaremos os tempos felizes e tu ajudas-me a tratar das crianças que
nascerem… Quem é ele? Um cavaleiro-fidalgo chamado Simão Vaz. Vem. Contar-te-ei
tudo quando estiveres comigo. Um dia, já casada, foram viver para Lisboa e por
essa altura vira Ana o rei pela primeira vez e logo notara a extrema semelhança
dele com o defunto marido da sua defunta irmã, que ambos Deus fosse servido de
ter em sua glória, amém. Homem de boa estatura de corpo el-rei Emanuel, mais
delgado que grosso, a cabeça sobre o redondo, cabelos castanhos, a testa
desanuviada deles, olhos alegres, de um verde quase branco, alvo, semblante
bem-assombrado, risonho nas covas da face e na comissura dos lábios, os braços
carnudos, tão compridos que as mãos lhe passavam abaixo dos joelhos, as pernas
proporcionadas ao corpo...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995,
Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.
Cortesia de Difel/JDACT
D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,