domingo, 30 de junho de 2024

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Sacrifiquei os meus vinte anos a tratar do pai e dos irmãos. Agora, com trinta e cinco, não achas que é tempo de casar? ... e de ter filhos... Mais uma razão para lhe fazeres companhia»

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A Tempestade

«São grandes senhores!, disse frei Zedilho. Sim, eram! Mas, com o serem, continuavam escravos do grão-turco e se não cumpriam os seus ofícios e governos como deviam, não se ensaiava nada em tirá-los do cargo e com facilidade os mandava matar, se lhe parecia, sem haver quem lho ousasse contradizer. Se porém serviam fiel e louvavelmente, promovia-os de uma dignidade pequena a outra maior. Ordinariamente não dava estas funções senão por três anos, já se via com que intenção...

Tínhamos passada toda a Albânia com a diversidade dos seus portos, cidades e lugares, entre os quais a famosa Castória, edificada dentro do mar como a rica Veneza, e a inexpugnável Valona, onde ao presente o grão-turco tem a sua esquadra de galés e naus de que se serve nas batalhas navais. Pérides, com o seu olhar habituado a perscrutar o horizonte onde começava a sombrear a mancha de uma ilha, disse: Tenho de vos deixar. Estamos a chegar a Corfu. Bateu-me mais forte o coração e senti subitamente um grande medo do que iria encontrar naquela ilha.

Não tardou muito que a víssemos com nitidez, suas muralhas edificadas sobre a rocha viva, e pouco tempo depois dávamos entrada pelo estreitíssimo canal que vai entre a ilha e a terra dos Turcos, tão estreito que as embarcações que entram não podem fazer manobra para se voltarem e necessitam de um vento para entrar e outro para sair. Por isso muitas vezes sucede estarem ali detidas sem poderem fazer viagem, salvo sendo ajudadas pelas galés que a senhoria veneziana ali tem continuamente para guarda e defensão da ilha.

A muita proximidade da terra dos Turcos faz que estes a cobicem e mais que uma vez tentaram tomá-la, mas sem resultado, pois Veneza tem sabido defendê-la, com a guarnição militar dos seus dois fortíssimos castelos roqueiros sobre o mar e as suas cerca de trinta galés.

Enigma Alfa. 1501 - 1545

O que murmuram os canaviais

Herdou as saboarias paterna, mas não a provedoria, que o pai vendera para pagar dívidas. Casava assim a irmã Inês com um homem bem dotado e rico. Uma pontinha de inveja? Ana era mais velha que Inês e lá se quedava naquele casarão de Santarém, condenada a cuidar do pai viúvo e dos irmãos, sem a companhia da irmã nem da aia Maria do Céu que Inês levava consigo. Súbito veio o luto: Inês morria do parto do filho Francisco; o cunhado casava segunda vez, com uma prima dele, Filipa, de quem teve o filho Fruitos; falecida a segunda mulher, volta a contrair matrimónio, agora Isabel Vieira que se finou de peste sem lhe dar geração: e pela quarta vez com Isabel Gomes Limi que gerou cinco filhos: primeiro Rui como o pai, falecido ainda no berço, o segundo Manuel e depois Damião, Baltasar e Antónia. A aia ia ficando na casa a cuidar das crianças.

Em mil e quinhentos e onze, Isabel viu-se viúva. Foi então que ao menino Damião, nascera em mil e quinhentos e dois como o príncipe João, recordava Ana, após o saimento do pai levou-o para a corte, ainda na idade do eixo e do pião, o meio-irmão Fruitos, a sugestão de el-rei de quem era moço da guarda-roupa. Aí vão os dois rapazes a entrar nos Paços da Ribeira. Largo e comprido corredor de portadas de vidro viradas ao terreiro e, ao fundo, às naus varadas no Tejo. Grossos tocheiros em castiçais dourados. A espaços certos, pesadas portas de carvalho polido e nos intervalos, em frente das portadas, grandes espelhos a beberem a luz e a espalharem claridade.

Soam-lhes os passos nas lajes de mármore, os de Fruitos mais largos, os do irmão miudinhos. Na última porta dois archeiros fardados de librés com galões de ouro fazem sentinela. Na antecâmara vem recebê-los o guarda-mor: por aqui. Vais ver o senhor do mundo, segreda Fruitos ao ouvido do irmão.

O rei Emanuel estava sentado em cadeirão de espaldar, junto a uma mesa com papéis, a ditar suas cartas ao secretário. Ao vê-los, parou de ditar e ergueu o olhar para o menino. Damião arregalou os olhos de água. O rei sorria-lhe: aproxima-te. Beija a mão a Sua Alteza, disse-lhe Fruitos em voz baixa. Damião, num dobrar de joelhos, os olhos cheios de lágrimas, beijou a mão do rei. Estás espantado, moço? Nunca viste um rei? Que se passa com teu irmão, Fruitos? Senhor, nosso pai foi a enterrar. E ver-te agora…, a tua parecença com ele... Até eu, habituado a ti, estou torvado. Vá meu filho, disse o rei afagando a cabeça do menino, enxuga-me essas lágrimas. Serei para ti um pai, verás. Ana Macedo recordava estas coisa com o susto na alma e, quando Maria do Céu se preparava para ingressar num convento… Volta para Santarém, propõe-lhe. A nossa casa continua a ser a tua. Maria do Céu ripostava: mas, menina… Céu, estou sozinha, meu paizinho Deus o chamou, meus irmãos na Índia... Cá me soou que a menina vai casar…

Sacrifiquei os meus vinte anos a tratar do pai e dos irmãos. Agora, com trinta e cinco, não achas que é tempo de casar? ... e de ter filhos... Mais uma razão para lhe fazeres companhia. Recordaremos os tempos felizes e tu ajudas-me a tratar das crianças que nascerem… Quem é ele? Um cavaleiro-fidalgo chamado Simão Vaz. Vem. Contar-te-ei tudo quando estiveres comigo. Um dia, já casada, foram viver para Lisboa e por essa altura vira Ana o rei pela primeira vez e logo notara a extrema semelhança dele com o defunto marido da sua defunta irmã, que ambos Deus fosse servido de ter em sua glória, amém. Homem de boa estatura de corpo el-rei Emanuel, mais delgado que grosso, a cabeça sobre o redondo, cabelos castanhos, a testa desanuviada deles, olhos alegres, de um verde quase branco, alvo, semblante bem-assombrado, risonho nas covas da face e na comissura dos lábios, os braços carnudos, tão compridos que as mãos lhe passavam abaixo dos joelhos, as pernas proporcionadas ao corpo...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,

sábado, 29 de junho de 2024

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Que as mandava criar com muito cuidado e diligência, doutrinar na bruta e maldita seita do sancarrão Mafamede e instruir em todas as boas artes militares: na cavalaria, no pelejar com toda a sorte de armas. Com que fim?»

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O Rei de Marfim

«(…) Falas de outra luta? Tu, minha irmã, é que referiste esse rei de Mmarfim como sendo o bom rei Duarte nosso avô. À roda dele giravam nobres senhores e esboçavam-se as lutas que ao depois se seguiram. Marfim, ébano... eu sei. encetaremos outra jogada, outras jogadas. reveremos tudo. com a morte recente da nossa avó Isabel de Urgel fecha-se um círculo de tamanho ódio! Psiu! falasse baixo! Tia Filipa podia ouvir pobre senhora de luto pela mãe...

Tudo aí começou  voltou-se Filipa em lágrimas. Não chores, minha tia! Então? Levantava-se Joana a abraçá-la, a sentá-la ao pé de si, trinta e um anos secos e martirizados. Tudo aí começou ..., abriu-se em soluços,  e agora, de uma casa tão grande e tão feliz, só eu e a triste da minha irmã Catarina encerrada na casa.

(…)

A Tempestade

No dia seguinte, a fúria do vento minguava e nós fomos costeando a Dalmácia, Argentina, Zara, Lissa, Meleda, Cúrsula, terras sujeitas umas a Veneza e outras à senhoria de Aragusa. Vinham-me à lembrança fragmentos de antigas e recentes leituras: a Dalmácia era a pátria de São Jerónimo e também do papa mártir São Caio, da parentela do imperador Diocleciano; Aragusa ou Ragusa, o antigo Epidauro, era ao presente dos Turcos e chamava-se Dobrónica, cidade grandíssima, rica, muito nomeada naquelas partes, terra de grandes tratos e mercadores, onde se fazem muitas naus, as maiores e mais grossas de todo o Levante. É daqui o nosso padre guardião, frei Bonifácio. Seguimos sempre ao longo da costa, o que amenizava a viagem, pois tinham nossos olhos com que se entreterem. Que montes seriam aqueles?, apontava frei Zedilho. Eu consultava o meu enquirídio e não demorava muito a identificá-los: eram os montes Acroceráunios, muito afamados na Antiguidade.

Ah! Deles fazia memória São Jerónimo no segundo prólogo da Bíblia, comentava o meu teólogo. Vinha depois a costa do Epiro, a que está ligada a Macedónia, pátria de Alexandre Magno, do qual tantas grandezas contam tantos escritores gregos e latinos.

As línguas de todas estas terras são muito diversas umas das outras, mas os Aragúsios e os Dalmacianos entendem-se bem entre si pela contínua comunicação. Os Albaneses e os Epirotas usam comumente o grego, mas, como presentemente estão submetidos aos Turcos, toda a gente principal e nobre fala a língua turca. Estas informações colhi-as eu de um marinheiro grego chamado Pérides, a quem frequentemente fazíamos perguntas quando queríamos saber alguma coisa.

Era muito sensível ao facto de a sua pátria grega estar sob o domínio turco. Isolava-se amiúde junto à amurada a olhar a linha da costa passar, os montes e vales, as lágrimas a desfiarem-lhe pelas faces e cantando baixinho, só para si, saudosas melopeias que aprendera em menino. Ansiava pelo dia em que a Grécia sua bem-amada recobrasse a independência. Mal adivinhava eu, naquele tempo, que também me estava destinado ter, a respeito do meu país, essa dolorosíssima experiência!... Contava-nos ele factos nunca ouvidos.

De todas as partes e províncias e em especial do Epiro, da Macedónia e da Albânia, todas as pias de baptizar eram obrigadas cada ano a dar certas crianças de tributo ao grão-turco... Dar crianças ao turco?, admirava-se, escandalizado, frei Zedilho. Para quê?, secundava eu. Que as mandava criar com muito cuidado e diligência, doutrinar na bruta e maldita seita do sancarrão Mafamede e instruir em todas as boas artes militares: na cavalaria, no pelejar com toda a sorte de armas. Com que fim?

Criavam assim um corpo militar de eleição, no qual residia toda a força e potência humana do grão-turco. Era com eles que fazia a guerra a todo o mundo..., e conquistava tantos reinos e províncias como tinha tomado aos cristãos, por nossos pecados, rematava eu tomando calor no que dizia, e pela ambição e cobiça de alguns príncipes católicos, se este nome lhes cabia, que procurando com injustas guerras o alheio perdiam o próprio...

Aqueles eram os guerreiros a que se chamava janízaros. Mas não era só nas guerras que o grão-turco deles se servia. Usava-os também no governo da sua corte e de todos os seus reinos e províncias. Segundo o esforço, a prudência, a valentia e virtude que cada um demonstrava ia-lhes dando os ofícios e honras, dignidades e prémios que lhe parecia merecerem: a uns fazia baxás, que eram uma espécie de vizo-reis de reinos e províncias, a outros sanjacos, que eram governadores das cidades e seus termos, a outros berebés, chauses, cádis, que eram como justiças-mores das terras onde residiam...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos, Conhecimento,

Madeline Hunter. Deslumbrante. «Já fui em outras festas com as crianças presentes. Não me lembro de vê-la nessas. Só estive com elas um ano, antes de conhecer o capitão Joyes e deixar minha posição. Na cidade ninguém ouviu falar que houvesse algum homem na casa»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…)  Então deixarei a indicação para ela vir para aqui assim que retornar. Olhou para o lado. Lizzie, pode... Ora essa, onde é que ela se enfiou? Estava aqui mesmo antes de a Celia trazê-lo e até leu o seu cartão... Estalou a língua em sinal de exasperação. Por favor, aguarde aqui, lord Sebastian, enquanto vou pessoalmente dizer para nos enviarem miss Kelmsleigh.

Deixou-o no meio da vegetação. O ar tinha um aroma luxuriante cuja densidade húmida continha um pouco de tudo. Citrinos e rosas e até o laivo fresco da erva. Uma pessoa podia se inebriar com um perfume daqueles. Enfiou o dedo na terra de um dos vasos em que mrs. Joyes estivera trabalhando. Tocou no volume de um bulbo. Desceu tranquilamente o corredor, passando por vários limoeiros em vasos e por mesas de botões floridos. No fundo do edifício uma videira crescia dentro do vidro. A raiz encontrava-se do lado de fora, mas o pé espesso entrava por um buraco aberto na parede de tijolo. As várias gavinhas trepavam por apoios robustos, estirando-se depois por barras de ferro, colocadas meio metro acima da sua cabeça. Debaixo deste frondoso caramanchão interior, estavam uma mesa de pedra e quatro cadeiras, compondo uma vinheta toscana.

Foi uma experiência, esclareceu mrs. Joyes, regressando. A videira, não pensei que resultasse. Deve ser agradável ficar sentado a esta mesa nos dias ensolarados de Inverno. Tem um belo conservatório de plantas.

É uma estufa. A maior parte daquilo que as pessoas chamam conservatórios na realidade são estufas, ou estufas de forçagem. Imagino que a palavra não seja suficientemente requintada e por isso a designação incorrecta se tenha tornado comum. Um verdadeiro conservatório de plantas faz isso mesmo, limita-se a conservar as plantas durante o Inverno, período em que estão em dormência. Temos um desses, também, no fundo do jardim. O rosto dela voltou a prender sua atenção.

Queira me desculpar, acho que fui inadvertidamente grosseiro. Já nos cruzamos, tenho certeza, mas não consigo me lembrar onde. Já nos cruzamos, realmente, anos atrás. Eu trabalhava como governanta para a família do duque de Becksbridge. Fomos apresentados um ao outro numa recepção no jardim, à qual fui autorizada a ir com a mais velha das minhas pupilas. Tem uma memória excelente para as pessoas insignificantes com as quais se cruza na vida, lord Sebastian. Se ela fosse de facto insignificante, ele poderia merecer o elogio, mas duvidava de que algum homem esquecesse que a conhecera.

Já fui em outras festas com as crianças presentes. Não me lembro de vê-la nessas. Só estive com elas um ano, antes de conhecer o capitão Joyes e deixar minha posição. Na cidade ninguém ouviu falar que houvesse algum homem na casa. O seu marido está ao serviço da marinha?

Esteve no exército. Morreu na Guerra Peninsular. A pergunta não alterou a graciosidade da sua postura, mas os olhos, escurecendo um pouco, revelaram que o assunto ainda lhe causava dor. Se me der licença novamente, vou ver porque demora Audrianna. Já devia ter voltado». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.

Cortesia de EASA/JDACT

JDACT, Madeline Hunter, Escrita, Saber,

Deslumbrante. Madeline Hunter. «Olhou para cima. Metade do tecto era composto também por pequenos painéis de vidro. Aguarde aqui, por favor, indicou ela, desaparecendo por trás de uma enorme palmeira num vaso»

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«(…) Era o tipo de casa boa e sólida que se encontrava por toda a Inglaterra. Bonita, na sua alvenaria de pedra cinzenta, era grande demais para uma simples casa rústica e pequena demais para ser um solar. No topo, um sótão com telhado duplo erguia-se em dois pisos de altura tendo apenas janelas bem proporcionadas decorando a fachada simples.

Não apareceu ninguém para ficar com seu cavalo, por isso Sebastian atou as rédeas a um poste. O tempo que esperou depois de bater à porta deixava a entender que poucos criados trabalhavam lá, apesar da propriedade deixar transparecer alguma riqueza. A porta finalmente abriu. Uma governanta muito magra de meia-idade espreitou-o por entre os folhos da touca. Leu o cartão dele e voltou a espreitar. O olhar dela se demorou na caixa de madeira comprida que ele trazia debaixo do braço.

Disseram-me que miss Kelmsleigh vive aqui, explicou ele. Vim devolver uma coisa que ela perdeu.  Uma moça loira, bonita, surgiu. Também leu o cartão. Eu trato disto, mrs. Hill.  A mulher mais velha se retirou. A loira indicou que entrasse. Devia falar com mrs. Jones, prosseguiu. É a proprietária da casa. Está na estufa. Vou levá-lo até lá. Num passo tranquilo, levou-o até aos fundos da casa. Passaram por uma biblioteca com bonitas estantes e muitas cadeiras estofadas. Uma segunda sala de estar ocupava a parte de trás da casa. Através de uma das janelas, viu uma estufa.

Situada a vinte metros da casa, a estufa era muito maior do que as encontradas em casas rurais, a não ser que fossem propriedades muito grandes. A metade de cima das paredes era de vidro, num mosaico de painéis rectangulares suportados por ferro. A entrada para a estufa ficava no fundo de um corredor que saía da sala de estar. A mulher que o guiava abriu uma porta e ele foi envolvido por um calor húmido. Olhou para cima. Metade do tecto era composto também por pequenos painéis de vidro. Aguarde aqui, por favor, indicou ela, desaparecendo por trás de uma enorme palmeira num vaso. Momentos depois reapareceu e gesticulou para que se aproximasse. Apontou mrs. Joyes e se despediu.

Mrs. Joyes trabalhava sentada a uma mesa coberta de vasos cheios de terra. A mesma terra sujava o avental, as mãos e a touca. Enquanto ele se aproximava, ela pegou um trapo para limpar a pior parte.

Tinha um rosto muito bonito. Muito pálido. Muito perfeito. Olhos cinza-escuro. Possuía uma elegância natural que afectava até sua postura de pé. Se ele nunca a tivesse visto, poderia ter ficado embasbacado. Só que ele já a vira antes. Tinha certeza.

Lord Sebastian Summerhays, que honra. Não é frequente termos visitas tão ilustres. Procura uma flor para dar de presente a uma pessoa da sua estima? Temos pelargónios raros de nossa própria hibridação que são sempre apreciados. Procuro uma mulher que, segundo me disseram, vive aqui. miss Kelmsleigh. Indicou com a cabeça a caixa que trazia. – Devo devolver-lhe algo que lhe pertence. Miss Kelmsleigh não está em casa. Deve voltar muito em breve, se quiser aguardar. Ou pode deixar a caixa comigo.

Bom, era aquilo. Podia largar a caixa e ir embora. Não havia razão para não confiar que mrs. Joyes a entregasse a miss Kelmsleigh quando voltasse. Se avisasse para não abri-la, era bastante provável que controlasse a curiosidade.  Se estiver voltando em breve, eu mesmo lhe darei». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.

Cortesia de EASA/JDACT

 JDACT, Madeline Hunter, Escrita, Saber, 

Madeline Hunter. Deslumbrante. «A chegada de Sebastian, portanto, não atraiu grande atenção. Desceu a rua principal, passando por lojas em edifícios velhos de tabique e casas de pedra alinhadas. Procurou uma taverna»

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«(…) Demais então. Avise a Fenwood para não recebê-la na próxima vez. Não permita que ela se assenhore do seu apartamento e entre nele a seu bel-prazer. Existira sempre o perigo de a mãe deles transformar Morgan numa criança assim que tivesse a oportunidade. Intrometia-se, o mimando e dominando, até ele perder o direito de ser um homem distinto. Esse havia sido o motivo de Sebastian se mudar para aquela casa quando o irmão voltou da guerra. Sua presença assegurava que a mãe não expandiria demais o seu domínio, especialmente no que dizia respeito ao filho mais velho. Sempre foi melhor em lidar com ela do que eu. Como em tantas outras coisas, declarou Morgan. Não havia nada que dizer adiante daquilo, por isso ambos voltaram-se aos jornais. Disse que esteve perto de Brighton, ontem? Ouviu alguma coisa acerca do espectáculo no Duas Espadas? Espectáculo? Morgan estreitou os olhos para ler as letras impressas. Deixou sair um sorriso. Um homem levou um tiro de uma amante. Aquilo é que deve ter sido um bom teatro. Ele não morreu, parece. Mesmo assim, não se deve ter falado de outra coisa lá em baixo. O que está lendo aí? Morgan corou. Um dos jornais cor-de-rosa da nossa mãe. De Brighton? Londres.

Maldição! Sir Edwin estava certo. A história provavelmente chegara à cidade antes de qualquer uma das suas vítimas. Evidentemente, não havia nomes no jornalzinho, porém. Ainda. O ritual terminou às onze horas. Sebastian se despediu e voltou ao próprio quarto. O criado pessoal o saudou com uma carta selada na mão. O endereço não estava correcto, meu senhor. Sebastian pegou a carta. Escrevera-a para miss Kelmsleigh e enviara-a por um mensageiro para a casa do pai. Não vivem mais lá? Mrs. Kelmsleigh sim, e miss Sarah Kelmsleigh. Audrianna Kelmsleigh, porém, não. O lacaio perguntou e lhe disseram que ela fora morar no Middlesex, perto da aldeia de Cumberworth. Sebastian levou a carta para o quarto. Abriu uma gaveta e olhou para a pistola que trouxera do Duas Espadas. Suas tentativas de devolvê-la de forma discreta não tinham dado certo. Podia mandar o despachante a Cumberworth. Se miss Kelmsley havia se mudado para o campo, bastariam algumas perguntas para localizá-la. Podia igualmente embrulhar a pistola e dá-la ao criado, e dar o assunto por encerrado. Viu a pistola numa mão suave, feminina. Viu olhos verdes de mulher cintilando de vida, depois acendendo de fascínio e paixão, e, por fim, esmaecendo de melancolia. Imaginou ela atravessando a hospedaria até à carruagem, fingindo não reparar que os outros clientes olhavam e sussurravam. Disse ao criado para mandar buscar o cavalo.

Cumberworth continuava uma aldeia rural, mas Londres se aproximava a cada ano que passava. Já fora absorvida pelos subúrbios da cidade, um dos muitos vilarejos do Middlesex que viam recém-chegados se misturar com velhos residentes e agentes imobiliários decompor quintas em pequenas propriedades para as famílias prósperas da sua vizinha maior. A chegada de Sebastian, portanto, não atraiu grande atenção. Desceu a rua principal, passando por lojas em edifícios velhos de tabique e casas de pedra alinhadas. Procurou uma taverna.

O Baron’s Board não estava muito cheio às duas da tarde e a cerveja de Sebastian chegou rápido. Bebeu em pé, submetendo-se à inspecção curiosa do proprietário. Também está assim húmido na cidade?, perguntou o homem, secando canecas de cerveja. Pior, respondeu Sebastian. Está a caminho de um lugar mais seco? Não, vim à procura de uma pessoa para tratar de negócios. Talvez a conheça. Miss Kelmsleigh. O proprietário estalou a língua… Eu conheço ela e as amigas. Todas as pessoas de Cumberworth conhecem as hóspedes de mrs. Jones. Ah, conhecem? Acho que miss Kelmsleigh é prima dela, não sua hóspede. É difícil saber do que chamar aquelas mulheres, não acha? O resto não são parentes, não me parece. Só um grupo de mulheres que vieram de visita e nunca mais foram embora. Mrs. Joyes vive na aldeia? Tem propriedade a pouca distância. Uma casa boa e um bom pedaço de terra. Cultiva flores numa estufa grande. Vende-as em Londres a floristas chiques. A casa dela fica um tanto afastada da rua, por isso há uma placa pintada no local onde é preciso virar. Flores Preciosas, é assim que o negócio dela se chama. Estalou novamente a língua. Até parecem boa gente. São reservadas. Não há razão para pensar que haja alguma coisa imprópria, mas as pessoas falam, não é mesmo? Sem dúvida. Sebastian acabou de beber a cerveja e pediu indicações para chegar ao letreiro do Flores Preciosas. Quinze minutos depois, seguia pelo caminho privado que conduzia à casa de mrs. Joyes». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.

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sexta-feira, 28 de junho de 2024

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Meu pai falava mas o conto por vezes era completado, em hora de recreio, na roda de meus irmãos Pedro e Jaime, com cores mais vivas e a rudeza de palavras…»

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O Rei de Marfim

«(…) Por areias e papirais marginam o rio sagrado e junto de frescas nascentes avistam enfim, a brilhar ao sol, o palácio das portas de cedro e janelas de cristal, e ante o trono encastoado de safiras ajoelham e beijam a mão do Preste João das Índias... ai menina! Dizem que no regresso lutou com os gigantes de um só olho e com a dextra alçando a cruz da espada fez frente aos enleios da feiticeira circe... o infante, minha dona, não é criatura deste mundo ... Tu ouvias, calado, a cismar, pensavas já, talvez, que um dia haverias de enviar teus embaixadores a esse rei cristão das terras distantes... mas a tua tia Filipa ali estava a falar vestida de negro, cabelo negro, o poço dos olhos negrume de água salobra fetos e salamandras... saíra à mãe, ao sangue de Urgel... sua irmã Isabel, a tua mãe, dizia ela que era branca, esguia, loira, tu não chegaste a conhecê-la...

Era verdade, senhor meu pai? Ele sorria entre sisudo que sempre se mostrava. Não, não era verdade, invenções de simples e crédulos, de servos e gente do povo, de algum jogral cego a cantar fadários nos arcos da rua Nova, com seu espantado respeito e maravilhamento, como se estivessem a imaginar seres fabulosos, cosiam lá entre si ao que ouviam e iam passando de boca a orelha acrescentamentos e remendos de fantasia. Não, saíra do reino por fins de Junho de vinte e cinco, depois de ter ido à corte tomar a bênção do rei seu pai e despedir-se do irmão Duarte, que ajudava já nas canseiras da governação, entrara em Castela por alfaiates e ao fim de três jornadas atingia Ciudad Rodrigo, subira até Valladolid, corte de poetas, a ver em seu paço o rei João primo co-irmão, longas caminhadas de paladinos...

Meu pai falava mas o conto por vezes era completado, em hora de recreio, na roda de meus irmãos Pedro e Jaime, com cores mais vivas e a rudeza de palavras não dizidoiras, a brejeirice dos trovadores, ouvidas aos cavaleiros sem a presença feminina... fungavam risotas ao pronunciá-las, eu até gostava... porque é que a aia as queria esconder dos meus ouvidos? Não as declaravam diante das damas nos serões reais?..., com seus quarenta cavaleiros e homens de pé, a carriagem bem aparelhada, seguia o infante pelas sendas do vento e da água, por florestas cerradas, vales descobertos, desfiladeiros cortados no cerne de montanhas de lobo, urso e javali, descansando no desconforto de albergues ermos, em catraias de portelas onde sob o cascalho esfarelado e nas frinchas das penhas o tojo rasteiro, a urze, a carqueja, o espinheiro, enregelados da nortada ou queimados do Suão, sugam a última lentura da terra. Não, não se tratava de peregrinação de cavaleiros da Távola Redonda em demanda do Santo Graal nem desafio de magriços e seus companheiros para desagravo de damas... pelo caminho iam conversando: Quando chegares a Inglaterra, infante, receberás a garroteia, estou em crer... Cala-te, Álvaro Vaz, também terás a tua, como teu pai». In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

 D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «… de seu jeito, bem diferente, mas contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?»

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O Rei de Marfim

«(…) Para onde mais podia ela ir, senão ali ficar na cela em que recolheu o último bafo da mãe?..., tudo aí começou. Tânger foi o descalabro de todos nós..., do cativeiro do infante, da morte prematura do rei na menoridade do filho, do rebentar dessa semente funesta da malquerença contra o regente meu pai..., porque não se cansava a tia Filipa de falar nisso?, ainda lhe doía a morte do pai, agora avivada pela da mãe?, raiva, ódio, desejo de vingança?..., que outra coisa havias tu e tua irmã de fazer senão afagar-lhe o ombro, abraçá-la, tomar-lhe as mãos, a consolá-la à tia Filipa, irmã de vossa mãe?..., nunca te haveria de esquecer o olhar dela molhado a erguer-se para ti, para Joana: devereis saber, meus sobrinhos..., e as palavras se lhe mergulhavam atrás a revolver no poço do tempo... bom monteiro e caçador, não há que ver, como todos os varões dessa família ..., eu sei, eu sei, minha senhora tia, intervinhas tu. Meu bisavô João até escreveu aquele livro ..., sim, e nosso avô Duarte, lembrava Joana, compôs também um outro ..., assim é. E este nosso avô Pedro ...

É isso, sim, meus sobrinhos, mas particularmente do que vosso avô Pedro mais gostava era de ocupar suas horas..., com que minúcia repartia cada tarefa, cada obrigação pelas horas do dia!..., deixa-me ver se adivinho, deixa ..., diz, meu sobrinho. Do que ele mais gostava era de ocupar suas horas metido na livraria ..., a estudar ..., completava tua irmã. E a verter do latim o livro dos ofícios de Marco Túlio Cicerão..., costumava dizer que cada livro era uma janela do universo, mas acrescentava pensativo: Mais se aprende dos costumes a índole dos homens do que pela leitura de grossos volumes, homem sábio, meu pai! Arrumado nas ideias e na acção, o cuidado que punha em mandar abrir valas para enxugar os pântanos do Mondego..., bom administrador de sua casa como dos negócios da república, conhecedor como poucos da arte da guerra, perito do regimento da corte..., que saudades as minhas! Quando ele aparecia à porta da câmara cansado do estudo, meus meninos, desembaraçava-me eu do colo da ama e corria a estender-lhe os braços para o alto, ele avançava no seu andar manso, dobrava-se, içava-me a beijar-me..., a mim, enquanto sentia aquela barba ruiva arranhar-me a cara, semelhava-me estar a ver do cimo da torre de um castelo a sala e as pessoas lá em baixo muito pequenas..., depois sentava-se..., quantas vezes o fazia, com os filhos em roda e a minha mãe ao lado, a recordar as suas viagens por essa Europa fora..., de seu jeito, bem diferente, mas contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?, lá vai cavalgando em seu corcel de prata e de arreios de ouro, seguem-no atrás os doze companheiros, Cristo mai-los discípulos, como fantasmas caminham sobre as montadas tarrenego mafarrico, não parecem desta vida, bestas do apocalis a correr campos de turcos, ladeiam já as margens do termodonte no país das amazonas, atravessam desertos em cima de dromedários e chegam à Noruega onde os dias não luzem mais do que quatro horas, passam Babilónia, a província dos centauros, a terra dos alarves em que os filhos são sepultura dos pais, nas serranias da arménia vêem a arca de noé, por damasco descem à Terra Santa, ao Egipto, onde assistem ao suplício de um mouro que por ter dado uma bofetada num peregrino é empalado numa vara afiada que lhe saía pela boca..., visitam a região dos gigantes, dos homens com cabeça de cão, dos pigmeus que têm guerra com as aves... em Meca admiram, suspenso no ar por seis pedras imãs, o moimento de mafoma... e entram no paraíso terreal, que é banhado por quatro rios: do Tigre, que corre por território dos assírios, saem ramos de ciprestes e de oliveiras; das ondas do Eufrates erguem-se palmeirais agitados pelo vento; do Géon, que circunda o chão da Etiópia, surgem homens cor de bronze; do Físon, que rodeia a região de Hevilath, onde nasce o ouro e se encontra o Bdélio e a Cornalina, esvoaçam papagaios coloridos em seus ninhos pelas águas... » In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «Disse que se chamava Elvira e sorriu levemente quando Ramiro lhe perguntou onde podia encontrar uma montada. Ides roubar um cavalo? Não era boa ideia, explicou, amanhã seria procurado como ladrão»

jdact

NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Nem isso fez recuar o príncipe, que reafirmou, convicto: É como vos digo. Só irei a Ricobayo se me casar com Chamoa. Preocupado, Fernão Peres murmurou: Isso é a guerra. Que seja, ripostou Afonso Henriques. E se a temeis, minha mãe sabe como pará-la. De cabeça perdida, a rainha enfureceu-se e apontou o dedo ao filho: Ainda não chegou o vosso tempo. Chamoa vai casar com Paio Soares e ireis a Ricobayo! São as minhas ordens, sou a rainha! Afonso Henriques, cada vez mais furioso, ripostou com desdém: Não, minha mãe, não sois uma rainha. Sois apenas uma condessa mentirosa, e não farei o que me ordenais! Irado, deu meia-volta e saiu, fechando a porta com estrondo. Na sala, deu de caras com as suas irmãs, Bermudo e as três mouras. Urraca Henriques ainda tentou acalmá-lo, dizendo: Meu irmão, não vos zangueis com nossa mãe!

Porém, o descontrolo apoderou-se dele. Aproximou-se de uma arca e com um gesto brusco levantou-a e atirou-a à parede. Depois, num acesso de cólera imparável, pegou num banco corrido e lançou-o contra a porta do quarto da mãe. De seguida, dirigiu-se a uma mesa, onde estavam inúmeras escudelas de barro, e varreu-as com o braço para o chão, onde se desfizeram em cacos. As únicas pessoas que se aproximaram foram Sancha Henriques e Fátima, mas logo que as viu perto o príncipe ergueu o braço e preparava-se para o descer quando Fátima, entredentes, o provocou: Não lutais com mulheres, já sabeis que perdeis.

Aquela antiga lembrança pareceu desequilibrá-lo e, enfurecido, deu meia-volta e saiu do quarto. Desceu as escadas a correr, pregando no final um violento pontapé na porta, que saltou das dobradiças. A sua fúria parecia impossível de estancar, e atravessou o pátio às biqueiradas em barris e fardos de palha. Por fim, entrou de rompante na casa onde pernoitava e logo saiu de volta, com uma espada na mão. Colérico, vergastou o alpendre, sulcando as vigas de madeira, e trespassou mais barris e fardos, desvairado e aos urros: Canalhas, malditos! Só perante a chegada de meu pai, Egas Moniz, o meu melhor amigo acalmou e suspendeu aquelas brutais investidas. Eu estava na varanda, e vi-o a arfar e a ranger os dentes. Meu pai e ele ficaram a olhar um para o outro calados, como se soubessem que um novo tempo, conturbado e perigoso, iria começar. Depois, estranhamente sereno, Afonso Henriques disse a meu pai, antes de entrar em casa: Preparai-vos para a guerra.

Meu pai ficou no alpendre, pensativo, a mirar a habitação da rainha, no interior da qual se via ainda a luz trémula das velas. Depois, minha prima Raimunda apareceu, vinda do escuro onde se escondia para todos espiar, e quando se preparava para entrar meu pai apenas lhe disse: Hoje não, deixai-o sozinho.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

Quando se soube da sua partida, suspeitei de que Ramiro decidira fugir do pai. É evidente que ele teria preferido mil vezes que Chamoa casasse com o príncipe, pois assim ficaria longe dela, e o seu coração não sofreria tanto. Com aquela decisão da rainha, sentia-se a enlouquecer. Não podia regressar à Maia, seria incapaz de ver Chamoa nas mãos e na cama do seu progenitor. Ao planear a sua escapada, confessou-me tempos mais tarde, lembrara-se de Gondomar. Ouvira-o dizer que partiria de Viseu no domingo e a ideia de se juntar à Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo pareceu-lhe a única saída. Ao fazê-lo, aproximava-se perigosamente do segredo da relíquia, que só seu pai conhecia. Naquela noite, Ramiro levou apenas o arco e as flechas, e correu pelas ruas, saindo por uma das portas da muralha. Já na estrada, além de vários mendigos que se arrastavam, gemendo enregelados, viu uma mulher, que caminhava à sua frente. Era alta e forte, e estava enrolada num manto, para se proteger do frio da noite. Ao ouvir passos, virou-se para ver quem a seguia e Ramiro perguntou-lhe pelos homens de Gondomar. Acho que já partiram, informou ela.

Disse que se chamava Elvira e sorriu levemente quando Ramiro lhe perguntou onde podia encontrar uma montada. Ides roubar um cavalo? Não era boa ideia, explicou, amanhã seria procurado como ladrão. Curiosa, Elvira questionou-o: Porque quereis fugir? Num arremesso de honestidade só possível perante estranhos, Ramiro contou-lhe a verdade. A normanda suspirou, desalentada. Quem me dera ir convosco, mas eles só levam homens. Intrigado, Ramiro perguntou-lhe se estava enamorada de alguém, mas ela apenas encolheu os ombros. Ninguém me quer». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, Conhecimento, 

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «Dona Teresa também teria de se apresentar, bem como o seu filho, herdeiro do Condado Portucalense. Não o fazer seria um insulto, um desafio que só poderia trazer desgraças aos ausentes»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

 

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Na cama, seminus, estavam Fernão Peres Trava e a rainha, nos seus jogos amorosos, mas nem essa visão deteve Afonso Henriques. Porque me haveis mentido?, gritou. O seu berro ouviu-se pela casa toda. À porta do quarto da rainha juntou-se um preocupado grupo, que incluía as duas irmãs do príncipe, Urraca e Sancha Henriques, bem como o marido da primeira, Bermudo, e ainda as três mouras. Como vos atreveis?, replicou dona Teresa. Fernão Peres Trava saltou da cama e enrolou-se num manto escarlate, protegendo o seu exposto corpo. Afonso Henriques ignorou-o e os seus olhos fixaram-se na mãe, que se cobrira rapidamente com um cobertor de seda.

Porque me haveis traído?, perguntou. Dona Teresa parecia confundida. De que falais? Então, Afonso Henriques recordou a conversa da véspera e Fernão Peres Trava pasmou-se. A rainha não lhe dera a conhecer as promessas trocadas. Aflita, sentindo-se a perder a confiança do amante, dona Teresa declarou: Disse-vos que tinha dúvidas sobre a lealdade de Paio Soares! Nunca vos prometi nada! Hoje de manhã, o Fernão conversou com o Paio e tudo ficou esclarecido! O seu amante relaxou, aliviado. Porém, Afonso Henriques berrou: Mentira! Haveis dito que não iam casar, que Chamoa seria minha! Apontou para Fernão Peres e prosseguiu: Agora, que ele está aqui, falta-vos coragem! Foi ele quem vos fez mudar de ideias! O vosso amante é mais importante do que o vosso filho! O Trava, enrolado no seu manto, falou pela primeira vez. Príncipe, se já eram conhecidas as intenções de vossa mãe em casar Chamoa com Paio Soares, porque a haveis seduzido? Com habilidade manipuladora, o nobre galego tentava inverter a situação, mas o príncipe não o deixou.

E como podia saber das vossas ideias? Acaso me informaram delas? Governais o Condado na vossa cama! Casais os meus melhores amigos e nem sequer me consultais! Atrapalhado pelas duras acusações de Afonso Henriques, o casal de amantes não reagiu, e ele continuou: Mas isto, isto é muito mais grave! Fui falar convosco ontem! Pedi-vos que cancelassem o casamento de Chamoa com Paio Soares! Disse-vos que me enamorara dela! Não vos interessam os meus pedidos? Com uma voz serena e pausada, e depois de um curto silêncio, Fernão Peres tentou chamar o príncipe à razão. Afonso VII ameaçou Toronho! Casar Chamoa com Paio Soares anula esse desejo bélico, sem ofender o novo rei. Já o vosso casamento com Chamoa seria perigoso, pois Toronho passaria a ser pertença do Condado Portucalense, e não do rei de Leão, Castela e Galiza! Desejais uma guerra com vosso primo? Mantendo o mesmo tom de voz calmo, o nobre galego admitiu: Não podeis enfrentá-lo, não tendes força para tal. A Galiza e o Condado terão de unir-se devagar, passo a passo, a vossa pressa é má conselheira.

Irritado com as insinuações do Trava, de que ele era impetuoso, mas pouco inteligente, Afonso Henriques gritou-lhe: Decerto julgais que sou estúpido? Todo o Condado conhece a vossa vontade de ter um filho varão! É por isso que quereis tempo! O receio de perder Toronho é uma miserável desculpa! Com asco estampado no rosto, o príncipe exclamou: Afonso VII tem mais com que se preocupar do que com Toronho! Se me casasse com Chamoa e lhe fosse prestar vassalagem a Ricobayo, meu primo esquecia qualquer agravo! Na cara de Fernão Peres nasceu um misto de admiração e espanto. Por um lado, surpreendia-o o conhecimento que o príncipe tinha das intenções íntimas da mãe; por outro, admirava os seus raciocínios rápidos sobre os supostos desejos de Afonso VII. A surpresa venceu a admiração, pois sorriu levemente e murmurou: Estais bem informado. Suspeito de que andais a espiar a rainha. Dona Teresa, indignada, explodiu: Meu Deus, e chamais-me traidora! Afonso Henriques ignorou este contra-ataque e enfrentou a mãe. Se não for cancelado o casamento de Chamoa com Paio Soares, não vou a Ricobayo prestar vassalagem ao meu primo! Dona Teresa mostrou-se verdadeiramente espantada. O que dizeis?, balbuciou. Estais louco?

A cerimónia de coroação de Afonso Raimundes como Afonso VII estava marcada para breve, e já chegara a Viseu a notícia de que o novo rei exigira aos principais nobres de Leão, Castela e Galiza, que se dirigissem a Ricobayo, onde lhe teriam de prestar vassalagem. Dona Teresa também teria de se apresentar, bem como o seu filho, herdeiro do Condado Portucalense. Não o fazer seria um insulto, um desafio que só poderia trazer desgraças aos ausentes». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «sirva de exemplo claro meu tormento, com que todos conheçam claramente que quanto ao mundo apraz é breve sonho»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

Volta de Ceuta

«(…)

Vós, que escuitais em rimas derramado

dos suspiros o som, que me alentava

na juvenil idade, quando andava

em outro em parte do que sou mudado,

 

sabei que busca só, do já cantado

no tempo em que eu temia ou esperava,

de quem o mal provou, que eu tanto amava,

piedade, e não perdão, o meu cuidado.

 

Pois vejo que tamanho sentimento

só me rendeu ser fabula da gente

(do que comigo mesmo me envergonho),

 

sirva de exemplo claro meu tormento,

com que todos conheçam claramente

que quanto ao mundo apraz é breve sonho.

(Soneto 101)

 

É certo que este soneto é, por assim dizer, uma tradução do 1.º soneto de Petrarca; mas não se segue d'ahi que nelle se não encontrem elementos autobiographicos do nosso poeta. Reproduzo o soneto do poeta italiano, porque é um elemento de interpretação para o de Camões.

 

Voi ch'ascoltate in rime sparse il suono

di quei sospiri ond'io nudriva il core

in sul mio primo giovenile errore,

quand'era in parte altr'uom da quel ch'i'sono;

 

Del vario stile in ch'io piango e ragiono

fra le vane speranze e'l van dolore,

ove sia chi per prova intenda amore,

spero trovar pietà, non che perdono.

 

Ma ben veggi'or si come ai popol tutto

favola fui gran tempo: onde sovente

di me medesmo meço mi vergogno:

 

e dei mio vaneggiar vergogna è'l frutto,

e '1 pentirse, e '1 conoscer chiaramente

che quanto piace ai mondo è breve sogno.

In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

 Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «Porém, pois o destino trabalhoso, que me escurece a Musa fraca e lassa, louvor de tanto preço não sustenta…»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

Volta de Ceuta

«(…)

Como já fica dicto, esta egloga foi dirigida a dona Francisca de Aragão. Na egloga 5.ª, escripta na mesma occasião, e bem assim no soneto 190, allude também Camões á projectada epopea. Em Ceuta ainda não pensava nella, como se infere da epistola 1.ª, est. 23-35, e se vê do soneto 267, manifestamente contemporâneo desta epistola, e dirigido pelo poeta a um seu admirador, que também fazia versos:

 

Se a fortuna inquieta e mal olhada,

que a justa lei do ceu comsigo infama,

a vida quieta, que ella mais desama,

me concedêra, honesta e repousada.

 

Pudera ser que a Musa, alevantada

com luz de mais ardente e viva flamma,

fizera ao Tejo, lá na pátria cama,

adormecer ao som da lyra amada.

 

Porém, pois o destino trabalhoso,

que me escurece a Musa fraca e lassa,

louvor de tanto preço não sustenta,

 

a vossa, de louvar-me pouco escassa,

outro sogeito busque valeroso,

tal qual em vós ao mundo se apresenta.

 

Forçado a desistir dos seus altos pensamentos, não tendo podido conseguir que a menina dos olhos verdes tornasse a olhar para elle, ferido no coração e no amor próprio, o poeta viu-se, com vergonha sua, fabula da gente, começou a servir de assumpto á maledicência». In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «co prado em gentileza, por quem o pastor triste endoudecia, por a praia do Tejo discorria a lavar a beatilha e o trançado. O sol já consentia que saísse da sombra o manso gado»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

 Volta de Ceuta

«(…)

Passado já algum tempo que os amores

de Almeno, por seu mal, eram passados,

porque nunca Amor cumpre o que promette,

entre uns verdes ulmeiros apartado,

regando por o campo as brancas flores,

em lagrimas cansadas se derrete,

quando a linda pastora, que compete

co monte em aspereza,

co prado em gentileza,

por quem o pastor triste endoudecia,

por a praia do Tejo discorria

a lavar a beatilha e o trançado.

O sol já consentia

que saísse da sombra o manso gado.

 

Já acordado daquelle pensamento,

que tão desacordado sempre o teve, (ver nota)

viu por acerto o bem que incerto tinha;

e porque, donde o amor a mais se atreve,

alli mais enfraquece o entendimento,

não lhe soube dizer o que convinha.

(Egloga 3.ª est. 1-2).

 

NOTA: Relêa-se o bellissimo soneto 279, que começa:

Doce sonho, suave e soberano.

se por mais longo tempo me durára!

Ah! Quem de sonho tal nunca acordara,

pois havia de ver tal desengano!

 

Pois se até ao invocar a musa inspiradora para o poema épico que vai emprehender, se presénte que o som vem d'uma parte, mas que a pancada é em outra!

 

Em vós tenho Helicon, tenho Pégaso;

em vós tenho Calliope e Thalia

e as outras sete irmãs, co fero Marte.

Em vós deixou Minerva sua valia;

em vós estão os sonhos do Parnaso;

das Pierides em vós se encerra a arte.

Com qualquer pouca parte,

senhora, que me deis de ajuda vossa,

podeis fazer que eu possa

escurecer ao sol resplandecente;

podeis fazer que a gente

em mi do grão poder vosso se espante

e que vossos louvores sempre cante.

 

Podeis fazer que cresça de hora em hora

o nome Lusitano, e faça inveja

a Esmirna, que de Homero se engrandece.

Podeis fazer também que o mundo veja

soar na ruda frauta o que a sonora

cithara Mantuana só merece.

(Egloga 4.ª, est. 1.ª e 2.ª)

In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,