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sábado, 30 de outubro de 2021

Passagem para a Índia. E.M. Forster. «O narguilé tinha sido preparado com o tabaco muito comprimido, conforme o costume da casa do seu amigo, e a água gorgolejava melancólica. Ele o manejou habilmente»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Largando a bicicleta, que caiu antes que um criado pudesse pegá-la, Aziz saltou para dentro da varanda. O jovem era pura animação: Hamidullah, Hamidullah! Eu me atrasei?, gritou ele. Não se desculpe, disse o anfitrião. Você está sempre atrasado. Responda, por favor, à minha pergunta. Estou atrasado? Mahmoud Ali comeu tudo? Se ele comeu, vou para outro lugar. Senhor Mahmoud Ali, como vai o senhor? Obrigado, doutor Aziz, eu estou morrendo. Morrendo antes do jantar? Ah, pobre Mahmoud Ali! Hamidullah já está morto. Ele faleceu enquanto você vinha subindo de bicicleta. Ah, sim, é isso, disse o outro. Imagine nós dois dirigindo-nos de um outro mundo ao senhor, de um mundo mais feliz. Por acaso no seu mundo mais feliz existem narguilés? Aziz, não brinque. Estamos numa conversa muito triste. O narguilé tinha sido preparado com o tabaco muito comprimido, conforme o costume da casa do seu amigo, e a água gorgolejava melancólica. Ele o manejou habilmente. Cedendo por fim, o tabaco saiu num jacto, penetrou nos seus pulmões e narinas, expulsando a fumaça das fogueiras de esterco de vaca que os havia enchido quando ele passou pedalando pelo bazar. Era delicioso. Aziz ficou ali num transe sensual mas sadio, durante o qual a conversa dos outros dois não lhe pareceu particularmente triste, eles estavam discutindo se era ou não possível ser amigo de um inglês. Mahmoud Ali sustentava que era impossível e Hamidullah discordava, mas com tantas reservas que não havia atrito entre eles. Era realmente delicioso estar deitado na ampla varanda, com a lua subindo diante deles e os criados preparando o jantar lá atrás, e sem nenhuma confusão acontecendo. Bom, veja a minha própria experiência esta manhã. Eu só afirmo que é possível na Inglaterra, respondeu Hamidullah, que muito tempo antes havia estado naquele país, antes da grande migração, e tivera em Cambridge uma recepção cordial. Aqui é impossível. Aziz, o garoto de nariz vermelho insultou-me novamente no tribunal! Eu não o culpo. Disseram-lhe que ele devia insultar-me. Até recentemente ele era um garoto muito bonzinho, mas os outros tomaram conta dele. É, eles não têm chance aqui, é isso que eu acho. Aparecem querendo ser cavalheiros e ouvem dizer que isso não é apropriado. Veja o Lesley, veja o Blakiston, agora é o seu garoto de nariz vermelho, e Fielding será o próximo. Ora, eu me lembro quando o Turton apareceu. Foi numa outra parte da Província. Vocês não vão acreditar, amigos, mas eu andei com o Turton na carruagem dele, o Turton! Ah, sim, houve uma época em que nós éramos muito íntimos. Ele me mostrou a sua colecção de selos.

Hoje ele é capaz de achar que você a roubaria. Turton! Mas o garoto de nariz vermelho será bem pior que o Turton! Acho que não. No fim eles são todos iguais, nem melhores nem piores. Dou a qualquer inglês dois anos, seja ele Turton ou Burton. A diferença é apenas de uma letra. E dou a qualquer inglesa seis meses. Todas elas são exactamente iguais. Você não concorda comigo?» In E.M. Forster, Passagem para a Índia, 1924, 1879, Edição Relógio D’Água, 2017, ISBN 978-989-641-756-7.

Cortesia de ERelógioD’Água/JDACT

JDACT, Literatura, Índia, EM Forster,

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Passagem para a Índia. E.M. Forster. «A extensão interminável se interrompe apenas ao sul, onde um grupo de punhos e dedos se arremete do chão. Esses punhos e dedos são as colinas de Marabar, que contêm as extraordinárias cavernas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A não ser pelas cavernas de Marabar, que ficam a trinta quilómetros de distância, a cidade de Chandrapore nada apresenta de extraordinário. Margeada, mais que banhada, pelo Ganges, ela o acompanha por umas poucas milhas, quase não se distinguindo dos detritos que ele deposita tão fartamente. Não há degraus para banho na beira do rio, porquanto ali o Ganges não é sagrado; na verdade não há beira de rio, e o amplo e mutante panorama da sua corrente é vedado por bazares. As ruas são malcuidadas e os templos não têm beleza, e embora haja umas poucas casas elegantes, elas são encobertas por jardins ou ficam em becos cuja sujeira afasta quem quer que não tenha sido convidado. Chandrapore nunca foi grande ou bela, mas duzentos anos atrás ficava na estrada entre o Norte da Índia, então imperial, e o mar, e as casas elegantes datam desse período. O interesse pela decoração cessou no século XVIII, mas nunca foi democrático. Nos bazares não há pinturas e os entalhes são poucos. A própria madeira parece feita de barro; os habitantes, de barro movente. Tudo o que se mostra aos olhos é tão rasteiro, tão monótono, que quando o Ganges baixa seria legítima a expectativa de que ele tivesse feito desaparecer aquela excrescência devolvendo-a à terra. As casas caem, as pessoas se afogam e são deixadas por ali apodrecendo, mas o contorno geral da cidade persiste, inchando aqui, minguando ali, como uma débil mas indestrutível forma de vida. Para o interior a perspectiva se modifica. Há uma esplanada oval e um hospital comprido e descorado. No terreno elevado ao lado da estação ferroviária erguem-se casas de eurasianos. Depois da ferrovia, que corre paralela ao rio, a terra afunda e em seguida volta a se erguer muito infrenemente. Nessa segunda elevação fica a pequena área residencial dos funcionários ingleses do distrito, e vista dali Chandrapore parece ser um lugar totalmente diferente. É uma cidade de jardins. Não é uma cidade, e sim uma floresta dispersa, rala, com cabanas. Um jardim de recreio tropical banhado por um rio nobre. As palmeiras suculentas, os cinamomos, as mangueiras e as figueiras-de-bengala que estavam ocultos atrás dos bazares são visíveis agora e por sua vez ocultam os bazares. As árvores se erguem em jardins onde antigos tanques as nutrem, irrompem em arrabaldes abafadiços e ao redor de templos desprezíveis. Buscam luz e ar, e, dotadas de mais força que o homem ou suas obras, pairam sobre o sedimento inferior saudando-se umas às outras com acenos de galhos e folhas e criando uma cidade para os pássaros. Sobretudo depois das chuvas elas escondem o que se passa, mas em todas as ocasiões, mesmo quando queimadas ou desfolhadas, embelezam a cidade para os ingleses que moram no alto, e assim os recém-chegados não acreditam que Chandrapore seja tão pobre quanto costuma ser descrita, e é preciso levá-los até lá para que eles se desiludam. Quanto à área residencial dos funcionários, ela não provoca nenhuma emoção. Não encanta nem desagrada. É planeada com espírito prático, tendo no alto um Clube de tijolo vermelho e bem atrás uma mercearia e um cemitério, e as casas se dispõem ao longo de ruas que se cruzam em ângulos rectos. Não há nada de repulsivo, e apenas o panorama é bonito; nada é compartilhado com a cidade, fora o céu que se arqueia sobre ambas.

O céu também tem as suas mudanças, menos pronunciadas que as da vegetação e do rio. Por vezes as nuvens lhe dão relevo, mas normalmente ele é uma cúpula de matizes mesclados, com predomínio do azul. De dia o azul empalidece até ao branco, ali onde ele toca o branco da terra; depois do pôr-do-sol ele tem uma nova circunferência alaranjada, dissolvendo-se em direcção ao alto até chegar a um suavíssimo púrpura. Mas o cerne azul permanece, até mesmo à noite. Então as estrelas são como lâmpadas penduradas na imensa abóbada. A distância entre a terra e elas é um nada, confrontada com a distância além delas; e essa distância mais remota, embora esteja além da cor, finalmente se liberta do azul.

O céu tudo determina, não só climas e estações, mas a hora em que a terra deverá se embelezar. Sozinha ela pouco pode fazer, apenas débeis explosões de flores. Mas quando o céu resolve, os bazares de Chandrapore inundam-se de esplendor ou uma bênção passa de horizonte a horizonte. O céu é capaz disso por ser tão forte e tão enorme. A força lhe vem do sol, nele infundida diariamente; o tamanho, da prostração da terra. Nenhuma montanha ultrapassa a linha curva. Légua após légua a terra se estende plana, incha um pouco, volta a ficar plana. A extensão interminável se interrompe apenas ao sul, onde um grupo de punhos e dedos se arremete do chão. Esses punhos e dedos são as colinas de Marabar, que contêm as extraordinárias cavernas». In E.M. Forster, Passagem para a Índia, 1924, 1879, Edição Relógio D’Água, 2017, ISBN 978-989-641-756-7.

Cortesia de ERelógioD’Água/JDACT

JDACT, Literatura, Índia,

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Um Quarto com Vista. E.M. Foster. «Aquela senhora parece tão inteligente, murmurou a menina Bartlett à prima. Estamos com sorte»

jdact

A Bertolini
«(…) A menina Bartlett, embora perita em habilidades de conversa, sentia-se impotente ante semelhante brutalidade. Era impossível pôr no seu lugar uma pessoa tão grosseira. O seu rosto corou com desagrado. Olhou à volta como se dissesse: vocês são todos assim? E duas velhotas sentadas mais adiante, com os xailes nas costas das cadeiras, olharam para ela, indicando claramente: nós não somos, nós somos bem-educadas. Come. Querida, disse a menina Bartlett a Lucy, e começou a mexer distraidamente a carne que tinha censurado antes. Lucy murmurou que aquela gente em frente parecia muito estranha. Come, querida. Esta pensão é um desastre. Amanhã mudamo-nos. Mas anulou esta drástica decisão mal a tinha anunciado. Os reposteiros ao fim da sala abriram-se e revelaram um sacerdote, gordo mas atractivo, que correu a ocupar o seu lugar à mesa, alegremente, pedindo desculpa por ter chegado tarde. Lucy, que ainda não tinha adquirido maneiras, pôs-se logo de pé e exclamou: oh, oh! Mas é o senhor Beebe! Que bom! Veja, Charlotte, agora temos de ficar, mesmo que os quartos sejam maus. Oh!
A menina Bartlett disse, com mais comedimento: como está, senhor Beebe? Julgo que já se esqueceu de nós, menina Bartlett e menina Honeychurch. Estávamos em Tunbridge Wells quando o senhor ajudou o vigário de St. Peter naquela Páscoa muito fria. O clérigo, que tinha o ar de estar de férias, não se lembrava delas tão claramente como elas se lembravam dele. Mas avançou bastante satisfeito e aceitou a cadeira que Lucy lhe indicou. Estou tão contente de o ver, disse a rapariga, que se encontrava num estado de fome espiritual e teria ficado contente de ver o criado se a prima lho permitisse. Como o mundo é pequeno. E Summer Street também o torna especialmente divertido. A menina Honeychurch vive na paróquia de Summer Street, disse a menina Bartlett, preenchendo o vazio, e acontece que ela me disse por acaso que o senhor acaba de aceitar... Sim, ouvi a minha mãe falar disso na semana passada. Ela não sabia que eu o tinha conhecido em Tunbridge Wells, mas eu mandei-lhe logo uma carta e disse: o senhor Beebe é…Exacto, disse o clérigo. Mudo-me para a reitoria de Summer Street em Junho próximo. Tenho sorte de ter sido nomeado para um bairro tão encantador. Oh, estou tão contente! O nome da nossa casa é Windy Corner. O senhor Beebe fez uma vénia.
Normalmente está lá a minha mãe e eu, e o meu irmão, embora não seja frequente que o possamos levar à i... isto é, a igreja é um bocado longe. Querida Lucy, deixa o senhor Beebe jantar. Estou a jantar, obrigado, e a apreciá-lo. Preferia conversar com Lucy, cuja execução musical recordava, do que com a menina Bartlett, que provavelmente recordava os seus sermões. Perguntou à rapariga se conhecia bem Florença e foi informado pormenorizadamente de que ela nunca lá tinha estado antes. É delicioso aconselhar um novato e ele era o primeiro. Não se esqueça dos arredores, concluiu. Na primeira tarde bonita vá até Fiesole e dê a volta por Settignano. ou mais ou menos. Não!, gritou uma voz do fundo da mesa. Está enganado, senhor Beebe. Na primeira tarde bonita essas senhoras têm de ir a Prato. Aquela senhora parece tão inteligente, murmurou a menina Bartlett à prima. Estamos com sorte». In E.M. Foster, Um Quarto com Vista, 1908, 1978, Relógio D’Água Editores, 2011, ISBN-978-989-641-246-3.

Cortesia de Relógiod’águaEditores/JDACT

Um Quarto com Vista. E.M. Foster. «Uma troca. Os turistas de classe mais alta ficaram chocados e tiveram pena dos recém-chegados. A menina Bartlett, em resposta, abriu a boca o menos possível»

jdact

A Bertolini
«A Signora não podia fazer uma coisa destas, disse a menina Bartlett, de maneira nenhuma. Tinha-nos prometido quartos para sul com vista, e juntos. E em vez disso estamos em quartos para norte, isto são quartos para norte, dão para um pátio e estão muito separados. Oh, Lucy! E além disso é cockney!, disse Lucy, que tinha ficado ainda mais escandalizada pelo inesperado sotaque da Signora. É como se estivéssemos em Londres. Olhou para as duas filas de ingleses sentados à mesa, para a fila de garrafas de água e de vinho tinto que corriam entre eles, para os retratos da falecida rainha e do falecido poeta laureado pendurados atrás, com pesadas molduras, para a nota da igreja anglicana (rev. dr. Eager, Oxford), que era a outra única decoração da parede. Charlotte, não tem também a sensação de que podíamos muito bem-estar em Londres? É-me difícil acreditar que lá fora as coisas sejam muito diferentes. Deve ser por estar tão cansada.
Esta carne com certeza que já foi usada para sopa, disse a menina Bartlett, largando o garfo. Eu queria ver o Arno. Os quartos que a Signora nos prometeu na sua carta dariam para o Arno. A Signora não podia fazer-nos uma coisa destas. Não há direito! A mim, qualquer canto me serve, prosseguiu a menina Bartlett, mas acho realmente uma pena que tu não tenhas um quarto com vista. Lucy sentiu que tinha sido egoísta. Charlotte, não me trate com tantos mimos. A Charlotte também merece ter vista para o Arno. Isso mesmo. O primeiro quarto que vagar para a parte da frente...
Será para ti, disse a menina Bartlett, a quem a mãe de Lucy pagava parte das despesas de viagem, uma generosidade a que ela fazia muitas delicadas referências. Não, não, será para a Charlotte. Insisto. A tua mãe nunca me perdoaria, Lucy. Nunca me perdoaria a mim. As vozes das senhoras animaram-se e, para falar verdade, tornaram-se um pouco insistentes. Estavam cansadas e, sob o disfarce da generosidade, brigavam. Alguns dos companheiros de mesa trocaram olhares e um deles, uma daquelas pessoas mal-educadas que às vezes se encontram no estrangeiro, curvou-se para a frente sobre a mesa e meteu-se na discussão. Disse: o meu quarto tem, o meu tem vista.
A menina Bartlett teve um sobressalto. Geralmente nas pensões as pessoas olhavam-se durante um dia ou dois antes de meterem conversa e muitas vezes só descobriam que deveriam fazê-lo depois de terem partido. Sabia que o intruso era mal-educado mesmo antes de ter olhado para ele. Era um homem idoso, forte, com um rosto claro e bem barbeado e os olhos grandes. Havia qualquer coisa infantil naqueles olhos, embora não fosse a infantilidade da senilidade. A menina Bartlett não se deteve a pensar no que poderia exactamente ser porque o seu olhar se desviou para a sua maneira de vestir, que não lhe agradou nada. Provavelmente ele estava a tentar travar conhecimento com elas antes de elas estarem bem ao corrente de tudo. Assim, quando ele lhe falou ela assumiu uma expressão confusa e disse: vista? Oh. A vista! É uma vista encantadora!
Este aqui é o meu filho, disse o ancião, chama-se George. O quarto dele também tem vista. Ah!, disse a menina Bartlett, sofreando Lucy, que estava prestes a falar. O que eu quero dizer, continuou ele, é que podem ficar com os nossos quartos, e nós ficamos com os vossos. Uma troca. Os turistas de classe mais alta ficaram chocados e tiveram pena dos recém-chegados. A menina Bartlett, em resposta, abriu a boca o menos possível e disse: muito obrigada, mas nem pensar nisso. Porquê?, perguntou o ancião, com os dois punhos na mesa. Porque nem pensar nisso, obrigada. Deve compreender, não gostamos de aceitar..., começou Lucy. A prima conteve-a de novo. Mas porquê?, insistiu ele.
As mulheres gostam de olhar para a vista e os homens não. Bateu com os punhos como um rapazinho travesso e virou-se para o filho: George, convence-as! É óbvio que ficarão com os nossos quartos, disse o filho. Não há mais nada a dizer. Não olhou para elas enquanto falava, mas a sua voz era perplexa e triste. Lucy também estava perplexa, mas viu que estavam metidas naquilo que se chama, uma cena, e teve a estranha sensação de que, dissessem o que dissessem aqueles turistas malcriados, o caso continuaria e aprofundar-se-ia até deixar de ser sobre vistas e quartos, mas sobre..., bem, sobre qualquer coisa completamente diferente, em que ela nunca tinha pensado antes. Agora o ancião atacou a menina Bartlett quase violentamente: porque é que ela não queria trocar de quarto? Que possível objecção tinha? Eles retirariam as suas coisas em meia hora». In E.M. Foster, Um Quarto com Vista, 1908, 1978, Relógio D’Água Editores, 2011, ISBN-978-989-641-246-3.

Cortesia de Relógiod’águaEditores/JDACT