domingo, 30 de junho de 2019

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco.«Ou talvez não: um termo ligado à Tradição podia da mesma forma ocorrer à mente d’Eles. Por um momento pensei que talvez Eles tivessem entrado no apartamento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ficheiro: Abu
«(…) Quem tenta penetrar no Rosal dos Filósofos sem possuir a chave, lembra o homem que procura caminhar sem pés. (Michael Maier, Atalanta Fugiens, Oppenheim, De Bry, 1618, emblema XXVII) A descoberto, só havia isto. O resto tinha de procurar nos disquetes do word processor. Estavam dispostos em ordem numérica e pensei que tanto fazia começar pelo primeiro, já que Belbo havia mencionado a senha. Sempre fora cioso dos segredos de Abu. Com efeito, mal premi a máquina, apareceu uma mensagem que me solicitava: tens a senha? Fórmula não imperativa, Belbo era uma pessoa educada. A máquina não colabora, sabe que deve receber a palavra, não a recebe, fecha-se. Como se acaso me dissesse: ouve lá, tudo o que queres saber eu trago aqui na minha pança, mas cava cava, velha toupeira, jamais o encontrarás. Vire-se, disse para mim, gostavas tanto de jogar permutações com Diotallevi, eras o Sam Spade da editora, como disse Jacopo Belbo, trata de encontrar o falcão.
A senha de Abulafia podia ser de sete letras. Quantas permutações de sete letras se poderiam fazer com as vinte e cinco letras do alfabeto, calculando ainda as repetições, pois nada impedia que a palavra fosse cadabra? Existe a fórmula em alguma parte, e o resultado deve dar seis bilhões e pouco. Se tivesse um computador gigante, capaz de encontrar seis bilhões de permutações a um milhão por segundo, teria mesmo assim de comunicar uma por uma a Abulafia, para experimentá-las, e sabia que ele precisava de cerca de dez segundos para perguntar e em seguida checar a password. Logo, sessenta bilhões de segundos. Visto que num ano há pouco mais de trinta e um milhões, digamos trinta para arredondar, o tempo de trabalho seria algo como dois mil anos. Nada mau. Era necessário proceder por conjecturas. Em que palavra poderia ter pensado Belbo? Antes de mais nada, seria uma palavra que tivesse encontrado ao princípio, quando começou a usar a máquina, ou que havia descoberto, e mudado, nos últimos dias, ao se dar conta de que as disquetes continham material explosivo e o jogo, pelo menos para ele, já não era mais um jogo? Seria aliás muito diverso. Melhor optar pela segunda hipótese. Belbo sente-se perseguido pelo Plano, leva o Plano a sério (porquanto assim me havia deixado perceber pelo telefone), e pensa então em algum termo que tem relação com a nossa história.
Ou talvez não: um termo ligado à Tradição podia da mesma forma ocorrer à mente d’Eles. Por um momento pensei que talvez Eles tivessem entrado no apartamento, copiado as disquetes, e naquele instante mesmo estariam provando todas as combinações possíveis em algum sítio remoto. O calculador máximo num castelo dos Cárpatos. Que tolice, admiti comigo, aquilo não era gente de calculador, antes teriam procedido com o Notarikon, a Gematria, a Temurah, tratando as disquetes como se fosse a Torah. E teriam gasto tanto tempo nisto quanto gastaram na redação do Sefer Ietzirah. Contudo, a conjectura não era de desprezar. Se Eles existissem, certamente haveriam de seguir uma inspiração cabalística, e se Belbo estava convencido de que, de facto existiam, possivelmente teria seguido a mesma via. Por desencargo de consciência, tentei com as dez sefirot: Keter, Hokmah, Binah, Hesed, Geburah, Tiferet, Nezah, Hod, Jesod, Malkut, e ainda introduzi a Shekinah de lambujem... Não funcionava, é claro, era a primeira ideia que poderia ocorrer à mente de qualquer um.
Contudo, a palavra devia ser qualquer coisa de óbvio, que vem à mente por força das circunstâncias, pois quando trabalhas num texto, de maneira obsessiva, como devia ter trabalhado Belbo nos últimos dias, não te podes esquivar do universo do discurso em que vives. Seria desumano pensar que ele tivesse enlouquecido por causa do Plano e que lhe viesse à mente apenas, sei lá, Lincoln ou Mombasa. Deveria ser algo relacionado com o Plano. Mas o quê? Busquei identificar-me com os processos mentais de Belbo, que havia escrito fumando compulsivamente, bebendo e olhando à sua volta. Fui à cozinha e despejei o último gole de uísque no último copo limpo que encontrei, voltei para a consola, as costas contra o espaldar, as pernas sobre a mesa, bebendo a curtos goles (não era assim que fazia Sam Spade, ou talvez fosse o Marlowe?) e girando o olhar em torno. Os livros estavam distantes demais e não lhes podia ler os títulos nas lombadas.
Tomei a última gota de uísque, fechei os olhos, reabri-os. Diante de mim a estampa seiscentista. Era uma típica alegoria rosa-cruciana daquele período, tão rico de mensagens em código, destinada aos membros da Fraternidade. Representava evidentemente o Templo dos Rosa-Cruzes, onde aparecia uma torre da qual ascendia uma cúpula, segundo o modelo iconográfico renascentista, cristão e hebraico, no qual o Templo de Jerusalém aparecia reconstruído segundo o modelo da Mesquita de Omar». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sisidea/Difel/JDACT

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco.«Bastou um comando para que uma baba lactiginosa se espalhasse sobre o texto fatal e inoportuno, apertei a tecla cancelar e pssst, tudo desapareceu»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ficheiro: Abu
«(…) Poderia arrepender-me e deitar fora esse primeiro bloco: deixo-o aqui apenas para mostrar como podem nesta tela coexistir o ser e o dever ser, contingência e necessidade. Contudo, poderia subtrair o bloco indesejado ao texto visível mas não à memória, conservando assim o arquivo dos meus remorsos, roubando aos freudianos onívoros e aos virtuosos das variantes o prazer das conjecturas, a própria ocupação e a glória académica. Muito melhor que a memória verdadeira, porque esta, quiçá a preço de duro exercício, aprende a lembrar mas não a esquecer. Diotallevi ficou sefarditicamente louco com aqueles palácios de grandes escadarias, e a estátua de um guerreiro que perpetra crime horrível contra a mulher indefesa, depois corredores com centenas de quartos, cada qual com a representação de um portento, aparições subitâneas, acontecimentos inquietantes, múmias animadas, e a cada imagem, fácil de gravar, podes associar um pensamento, uma categoria, um elemento da alfaia cósmica, decerto um silogismo, um sorites imane, cadeias de apotegmas, colares de hipálages, rosários de zeugmas, danças de hýsteron próteron, lógoi apofânticos, hierarquias de estoiquéias, precessões de equinócios, paralaxes, herbários, genealogias de gimnosofistas, ad infinitum, ó Raimundo, ó Camilo, que vos bastava repassar na mente as vossas visões e logo reconstruíeis a grande cadeia do ser, em Love and joy, pois tudo aquilo que se desencadeia no universo em vossa mente já estava reunido em volume, e Proust vos teria feito sorrir. Mas quando juntamente com Diotallevi, pensávamos construir uma ars oblivionalis, não conseguimos chegar a encontrar as regras para o esquecimento. É inútil, podes andar em busca do tempo perdido seguindo lábeis indícios como o Pequeno Polegar no bosque, mas não consegues perder de propósito o tempo reencontrado, como uma ideia fixa. Não existe uma técnica do esquecimento, estamos ainda nos processos naturais causais, lesões cerebrais, amnésia ou a improvisação manual, sei lá, uma viagem, o álcool, a sonoterapia, o suicídio. Abu pode, ao contrário, conceder-te pequenos suicídios locais, amnésias provisórias, afasias indolores. Onde estavas ontem à noite. Muito bem, leitor indiscreto, tu jamais saberás, mas aquela linha ali em cima, interrompida, era exactamente o início de uma longa frase que escrevi de facto mas que depois preferi não ter escrito (e nem mesmo pensado), porque queria que o escrito não tivesse sequer acontecido.
Bastou um comando para que uma baba lactiginosa se espalhasse sobre o texto fatal e inoportuno, apertei a tecla cancelar e pssst, tudo desapareceu. Mas não basta. O trágico do suicida é que, mal ele salta da janela, entre o sétimo e o sexto andares, raciocina: ah, se pudesse voltar atrás! Mas embalde. Jamais aconteceu. Splash. Abu, ao contrário, é indulgente, permite a resipiscência, poderia em seguida recuperar o meu texto desaparecido se decidisse em tempo e comprimisse a tecla de recuperação. Que alívio. Só de saber que, se quiser, poderei recordar, esqueço num minuto. Não mais andarei pelos barezinhos a desintegrar naves espaciais com os projécteis tracejantes, já que o monstro não te desintegra. Faz melhor que isso, desintegra os pensamentos. É uma galáxia de milhares e milhares de asteróides, todos enfileirados, brancos ou verdes, acredite se quiser. Fiat Lux, Big Bang, sete dias, sete minutos, sete segundos, e nasce diante de teus olhos um universo em perene liquefação, onde não existem nem mesmo linhas cosmológicas precisas e vínculos temporais, nada senão numerus Clausius, aqui se vai para trás mesmo no tempo, os caracteres surgem e reafloram com ar indolente, brotam do nada e dóceis a ele retornam, e quando voltas a chamar, concatenas, cancelas, dissolvem-se e reectoplasmam-se em seu lugar natural, é uma sinfonia submarina de enlaçamentos e fracturas moles, uma dança gelatinosa de cometas autófagos, como o lúcio do Yellow Submarine; premes a falangeta e o irreparável começa a escorregar para trás na direcção de uma palavra voraz desaparecendo nas suas fauces, que a suga e swrrlurp, lá se foi, se não paras ela se come a si mesma e se engorda de seu nada, buraco negro de Cheshire.
E se escreves algo que o pudor não queira, tudo acaba na disquete, neste imprimes uma palavra de ordem, e pronto, ninguém mais te poderá ler, óptimo para os agentes secretos, escreves a mensagem, pões a ressalva e terminado, metes o disco no bolso e vais à vida, que nem mesmo Torquemada poderá saber o que escreveste, apenas tu e o outro (o Outro?). Supõe também que te torturam, finges que vais confessar e digitas a palavra, mas em vez disso comprimes uma tecla oculta e a mensagem lá se foi. Ora, eu havia escrito algo, movi o polegar por engano, desapareceu tudo. Que era? Não me lembro. Sei que não estava revelando Mensagem alguma. Mas quem sabe se a seguir». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sisidea/Difel/JDACT

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Em abono da verdade, deve dizer-se que este Adónis do sul da Europa passou um pouco ao lado a Sarah. Porém, o italiano cedo mostrou um interesse genuíno e uma conversa agradável»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Nunca lhe havia passado pela cabeça que se podia ter precipitado até ao momento em que o disse. Rafael podia, simplesmente, não sentir nada por ela. E o facto de o ver dar mais um gole na cerveja, sem proferir uma palavra, fazia-a sentir cada vez mais pequena, como uma menina que confessara o seu amor e levara a primeira tampa. Não verbal, neste caso, o que ainda custava mais. Teria Sarah compreendido tudo mal? Teria, deliberadamente, deturpado os sinais? Nem pensar. Era inteligente, bem-sucedida, editora de política internacional do The Times, autora de dois livros conceituados. Teria sido iludida pelos sentimentos? Agora era tarde, não podia fazer nada. Revelara-se. Tinha de se manter firme. Até ao fim. Não dizes nada, Rafael? Mais um gole de cerveja. Deixas-me dizer isto tudo e não dizes nada? Não me paras? Não me colocas no meu devido lugar?
Rafael bem queria falar, e falou, mas Sarah já não o ouviu. Saíra esbaforida depois de ter batido uma nota de dez libras em cima da mesa, para pagar a Evian que mal bebera. Ainda bem que tivemos esta convers, declarou Sarah. Agora posso prosseguir com a minha vida e arrumar o que ficou pendente. E saiu a toda a velocidade, enfurecida. Estava no seu direito de se sentir exasperada. Se tivesse aguardado mais alguns instantes, se não tivesse avançado para a porta tão ligeira, para longe do bar, para longe de Rafael, se, se, se..., provavelmente, tê-lo-ia ouvido. Um tímido e sumido Não posso. A prestigiada editora de política internacional do The Times depressa encontrou razões para esquecer o padre Rafael Santini que regressara a Roma. E se, não raras vezes, relembrava aquela conversa de surdos que teve naquele bar em Whitehall enquanto o Chelsea jogava contra outra equipa qualquer, o mesmo Deus em que Rafael cria, ou outro qualquer, abriu-lhe uma janela, na forma de um Deus italiano. Mais um. Era achacada a italianos, pelos vistos. Correspondente do Corriere della Sera em Londres, com aparições regulares na RAI, os mesmos 32 anos de Sarah, um corpo que faria Eros atirar-se do pedestal roído de inveja, David automutilar-se em desespero. Só teve olhos para ela, a partir do primeiro milésimo de segundo em que a viu, num jantar para jornalistas, na Embaixada de Itália.
Em abono da verdade, deve dizer-se que este Adónis do sul da Europa passou um pouco ao lado a Sarah. Porém, o italiano cedo mostrou um interesse genuíno e uma conversa agradável que ia muito além do playboy que aparentava ser. Natural de Ascoli, na província de Marcas, junto ao Adriático, chamava-se Francesco. Não valia a pena o mentir, a sua beleza escultórica fora a carta que mais pesara para Sarah concordar num encontro a dois. A oportunidade de Francesco mostrar o que valia e se valia a pena. Depois desse primeiro encontro veio o segundo, na semana seguinte, depois de uma semana doida na redacção de Sarah. No terceiro, ficou selado o compromisso com um aceso beijo junto à porta de casa dela, em Kensington, a que se seguiram muitos outros de maior intensidade na cama do quarto dela». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Sei que nos conhecemos em circunstâncias atípicas, prosseguiu de cabeça erguida, ou assim pensava. Sei que passámos por muita coisa, tivemos as vidas em perigo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) A vida revelava-se de estranhas maneiras, era certo. Estava no topo da lista das principais televisões e mesmo jornais concorrentes quando o assunto era a Santa Sé. A sua opinião era de tal forma respeitada que alguns até a apelidavam, nos bastidores, de amante do Papa, pois o que sabia só podia advir dele. Não deixava de ser irónico, uma mulher, o género mais aberrante dentro dos muros sagrados, ser a opinião mais respeitada fora deles.
Pensou em Rafael, no seu ar firme e robusto, no seu sentido de dever, na sua beleza e no que haviam passado juntos, há seis meses ela deixara-o a falar sozinho. Isto não era inteiramente verdade, uma vez que foi apenas Sarah quem falou. Rafael não pronunciou uma palavra. Estavam em Londres, onde Sarah residia. Encontraram-se no Walker's Win and Ale Bar. Ele chegou primeiro e pediu um Bud. Mais tarde quando ela chegou pediu uma Evian, de bradar aos céus num bar referência, mas nem esperou que a trouxessem. Entrou de rompante no assunto que a levara a marcar o encontro. O que há entre nós? Rafael fitou-a como se não a tivesse entendido. O que há entre nós?, repetiu Sarah. Eu sei que tu és padre..., que tens uma relação com..., nesta parte sentiu-se confusa. Deus, Cristo, a Igreja? Todos ao mesmo tempo?, mas também sei que não te sou indiferente. Aqui Sarah olhou-o para captar alguma reacção. Rafael permanecia impávido a escutá-la. Conseguia ser um Olhava-o quando queria. Sarah sentia-se cada vez mais nervosa. Sei que nos conhecemos em circunstâncias atípicas, prosseguiu de cabeça erguida, ou assim pensava. Sei que passámos por muita coisa, tivemos as vidas em perigo e que, provavelmente, isso deu-me a oportunidade de te conhecer melhor do que ninguém, isso fez com que eu me apaixonasse por ti. Quando deu por ela já estava dito. Tinha a noção que ainda dissera mais qualquer coisa, mas não se ouvira mais a si própria. Teria mesmo declarado, em alto e bom som, o que sentia? Olhava-o ainda mais intensamente a tentar descobrir qualquer reacção. Apenas via o mesmo Rafael de sempre, calculista, sereno..., impermeável.
A certa altura ouviu-se um troar de vozes a clamar no interior do bar, em delírio. Os blues tinham acabado de marcar um golo em Stamford Bridge e alguns dos presentes haviam sido contagiados pelas imagens que repetiam nos ecrãs espalhados pelo bar. Foi nesse instante que o empregado trouxe a água, há muito tempo pedida, ou pelo menos assim parecia a Sarah, horas, uma eternidade. É certo que haviam passado somente alguns minutos, poucos, mas a mão no fogo por pouco tempo que seja parece sempre muito. Não é uma situação normal, eu sei. Nada connosco é, avançou Sarah depois de humedecer os lábios. Não te vou pedir para te divorciares de Deus. jamais o faria, mas tinha de o dizer. Está dito. Sei que és inteligente o suficiente para já teres percebido. Olhou-o novamente. De qualquer forma, voltamos ao ponto inicial que me leva à pergunta o que há entre nós? Não te sou indiferente, pois não?» In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

sábado, 29 de junho de 2019

As Três Sereias. Irving Wallace. «Contudo, cerca de cinco semanas antes do presente momento uma coisa muito agradável acontecera a Claire. O efeito que produzira em toda a sua pessoa fora imediato…»

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«(…) E nas noites em que Marc se achava demasiado ocupado, sem tempo para levá-la ao cinema ou para dar com ela um passeio de automóvel, ou quando não se realizava uma festa, ela permitia que o marido fixasse os olhos sobre as suas notas, fizesse as suas pesquisas, corrigisse os seus escritos, trabalho de homem, enquanto ela lia um romance ou assistia, com olhos sonolentos e entediados, a alguns programas no aparelho portátil de televisão. Nada disto fora modificado por Easterday e pelas Três Sereias. Contudo, e Claire tinha a certeza disso, alguma coisa se modificara, no que lhe tocava. Era uma coisa que não se relacionava com a rotina diária. Tratava-se de uma sensação, de uma bolha de emoção quase tangível e efervescente, dentro do seu ser. Ela era a sra. Marc Hayden, oficial, legalmente, para melhor, para pior, para sempre, desde há um ano e nove meses. Com o casamento, um bom casamento tinham dito a mãe e o padrasto, essa bolha de emoção dentro de si parecera vivaz, engraçada, como uma enorme bolha que a elevava continuamente, e para além dela tudo era maravilhoso. Mas pouco a pouco, à medida que os dias passavam, essa bolha detivera-se, desvanecera-se, convertera-se num pequeno charco apavorante que não representava absolutamente nada. Eis o que parecia a bolha: nada. Eis a sua sensação no que se referia a tudo mais: nada. Era como se todas as excitações, todas as possibilidades de ser feliz, se tivessem extinguido. Era como se todos os factos da vida fossem previsíveis, os do próximo momento, do dia seguinte, até ao último, e não houvesse esperança de se sentirem novos frémitos de prazer, de se experimentarem novas alegrias. Eis a sensação, e quando ouvia mães discutirem os sentimentos de depressão que sobrevinham depois de darem à luz uma criança, perguntava-se se o mesmo não seria válido em relação ao casamento. Não podia censurar ninguém pelas suas decepções, nem Marc, decerto, Marc muito menos que as outras pessoas, com excepção, possivelmente, da própria noiva, com o seu murcho buquê de grandes esperanças ultra-românticas. Se tivesse dinheiro, pensava, financiaria um grupo de peritos a fim de que estes descobrissem o que acontecia às Cinderelas após o casamento.
Contudo, cerca de cinco semanas antes do presente momento uma coisa muito agradável acontecera a Claire. O efeito que produzira em toda a sua pessoa fora imediato, mas nada revelara às pessoas que a rodeavam. Sentia-se desperta. Experimentava uma sensação de bem-estar. Tinha a certeza de que a sua vida iria conhecer melhores momentos, uma renovação quase total. E sabia que o elemento inspirador fora a carta de Easterday. Dactilografara com desvelo excertos resumidos, em duplicado, dessa carta. Conhecia de cor tudo o que Easterday prometia. Com excepção de uma longa viagem de uma semana a Acapulco e à Cidade do México, na companhia da mãe e do padrasto, quando tinha quinze anos (recordava-se das Pirâmides, do Jardim Flutuante, de Chapultepec, recordava-se de não se encontrar só nem sequer um instante), Claire nunca estivera fora dos Estados Unidos. E agora, quase de um dia para o outro, seria transportada para um lugar desconhecido e exótico dos Mares do Sul. A promessa de uma transformação era quase insuportável, de tão estimulante que era. Os verdadeiros pormenores acerca das Três Sereias possuíam pouca realidade e portanto pouco significado para ela.
Tinham bastante semelhança com as milhares de palavras dos livros de Maud, de inúmeros outros volumes sobre antropologia que lera atentamente, e tudo parecia apenas história, passado remoto, sem nada a ver com sua vida presente. Todavia, a data aproximava-se cada vez mais, e se Easterday não era o romancista que lhe chamara Marc, se aquelas coisas fossem verdadeiras e não constituíssem somente palavras, ela estaria em breve numa cabana sufocante, entre homens e mulheres quase nus, que retiravam os víveres de um armazém comum, que consideravam a virgindade um defeito e a educação prática nos assuntos do sexo uma necessidade, que praticavam o amor numa Cabana de Auxílio Social e num festival, sem restrições e inibições (com um concurso de beleza nudista!).
Claire lançou um olhar para o relógio de parede esmaltado que se encontrava ao lado da banheira. Eram nove e um quarto. A primeira aula de Marc já teria terminado. Hoje, disporia de quatro horas antes da aula seguinte. Perguntou-se se ele voltaria a casa ou se se dirigiria para a biblioteca. Decidiu que era melhor vestir-se. Estendeu a mão e fez girar a alavanca que se achava sob a torneira; o escoadouro abriu-se e a água e a espuma começaram a descer com o ruído característico. Ergueu-se e, cautelosamente, passou um pé sobre uma das bordas da banheira, ficando a gotejar sobre o espesso tapete branco». In Irving Wallace, As Três Sereias, Livros do Brasil, coleção Dois Mundos, 2000, ISBN: 978-972-381-025-7.

Cortesia de LBrasil/DMundos/JDACT

As Três Sereias. Irving Wallace. «Tenho a impressão de que o seu Easterday não passa de um romancista, dissera ele duas noites antes a Maud. Uma coisa como esta devia ser investigada convenientemente…»

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[…]
Cara Dra Hayden
E assim, nessa altura, afirmou-me: Professor Easterday: embora conheça melhor a Oceania do que nós, devo declarar que a nossa experiência em muitos pontos da Terra ensinou-nos que nem tudo foi descoberto, que nem tudo é conhecido, e que a natureza tem maneira de preservar as suas pequenas surpresas. De facto, conheci alguns antropólogos, pessoas que serviram no Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, que me confessaram terem descoberto, por acaso, pelo menos meia dúzia de ilhas desconhecidas, habitadas por tribos primitivas, que não constavam dos mapas existentes.
[…]

«(…) Dos quatro membros da família Hayden, quatro membros, isto é, se se contasse a sempre sorridente Suzu, a empregada japonesa, Claire Emerson Hayden fora, conforme ela própria pensava, a menos afectada, na rotina diária, pela carta de Easterday, recebida cinco semanas antes. A transformação da sogra, Maud (Claire ainda a achava tão extraordinária, após quase dois anos, para chamá-la de Matty), fora a mais acentuada. Maud sempre estivera ocupada, alardeando a sua eficiência, mas nas últimas cinco semanas tornara-se muito mais ativa, fazendo o trabalho de dez pessoas. E mais do que isso, aos próprios olhos de Claire mostrava-se cada vez mais jovem, enérgica, criadora. Claire imaginava que ela se encontrava agora como devia ter sido no auge do seu vigor físico, quando Adley era seu colaborador. Ao pensar nisso, Claire, agora mergulhada até aos ombros no seu voluptuoso banho de espuma, abriu, com a palma da mão, um caminho em forma de leque através da espuma. Permitiu que o seu espírito se detivesse no Dr. Adley R. Hayden, de quem se recordava agora imprecisamente. Vira-o duas vezes antes do seu casamento, quando Marc a trouxera a Santa Bárbara para participar de reuniões mundanas, e impressionara-a bastante aquele erudito alto, curvado, um pouco barrigudo, com a sua ironia seca, os seus vastos conhecimentos e a sua compreensão. Apesar de Marc tartamudear na presença do pai, de provocar com frequência a sua ironia e de ser por ele menosprezado com demasiada facilidade com um leve ridículo, ela sentira-se impressionada pela autoridade de Adley. Sempre pensara ter deixado de si uma impressão pouco lisonjeira, embora Marc lhe tivesse garantido que o pai a achara uma coisinha bastante bonita. Com frequência desejava ter significado mais alguma coisa para Adley; porém, uma semana depois do seu segundo encontro, ele morrera subitamente de um ataque de coração, e, no além, estava certa, seria ainda considerada por ele apenas uma coisinha bastante bonita.
As bolhas de sabonete tinham-se amontoado novamente diante do corpo de Claire, que, ainda divagando, começou a alisá-las. A sua mente errava, sabia, e tentava recordar-se daquilo em que pensara. Por fim recordou-se: a carta de Easterday, recebida cinco semanas antes, e o efeito que produzira em todos eles. Maud mantinha-se numa actividade febril, sim. E Marc achava-se mais ocupado agora, mais concentrado (se isso era possível), mais nervoso, queixando-se cada vez mais de pequenos contratempos, mas acima de tudo perguntando-se se era prudente, se valia a pena, fazerem aquela viagem de estudo. Tenho a impressão de que o seu Easterday não passa de um romancista, dissera ele duas noites antes a Maud. Uma coisa como esta devia ser investigada convenientemente antes de desperdiçarmos todo este tempo e dinheiro. Maud tratara-o como sempre o tratara, com a infinita paciência e a afeição de todas as mães para com os seus filhos precoces. Maud defendera a integridade de Easterday e explicara que as circunstâncias não permitiam qualquer investigação, recordando o seu faro quando se tratava de um cometimento de onde se podiam esperar bons resultados, produto não só do seu instinto como da sua experiência.
Como habitualmente, quando era derrotado pelos argumentos da mãe, Marc batera em retirada e mergulhara no trabalho. Somente a rotina de Claire não parecera afectada pelo recente acontecimento. Havia agora mais trabalho de dactilografia e arquivo para fazer, mas isso não preenchia suficientemente o seu tempo. Todas as manhãs, porém, podia demorar-se no seu banho quente, ler ao café, consultar Maud, fazer o trabalho do costume e participar depois, com as jovens esposas de outros professores, de uma partida de ténis, tomar chá na sua companhia ou assistir a uma conferência». In Irving Wallace, As Três Sereias, Livros do Brasil, coleção Dois Mundos, 2000, ISBN: 978-972-381-025-7.

Cortesia de LBrasil/DMundos/JDACT

A Sádica Nostalgia das fogueiras do Santo Ofício (maldito): o processo judicial contra a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Francisco Topa «A contestação mais interessante à primeira acusação é a de Mário Cesariny Vasconcelos, provavelmente elaborada pelo seu advogado, Fernando Luso Soares»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os termos do libelo são idênticos, mantendo-se também os 29 exemplos, a que se juntam contudo outros 13, todos da autoria de algum dos arguidos: um é retirado de um texto de Luiz Pacheco, nove pertencem a Ary dos Santos, ao passo que os restantes três são de Melo e Castro. Percebe-se o objectivo de tentar implicar mais diretamente cada um dos acusados, o que é confirmado pela natureza diferente destes trechos: embora às vezes esteja em causa uma linguagem crua e o recurso ao palavrão, parece, sobretudo nos casos de Luiz Pacheco e Ary dos Santos, que é o alcance sociopolítico e o efeito iconoclasta que é objecto de reparo e de tentativa de criminalização. Vejam-se os seguintes dois exemplos (f. 232), um de cada autor:

«Assim termina o lamento
Pois recordar é sofrer
Ama e fo… É bom sustento!
E por nós reza um bater».

«O Cordeiro de Deus foi assado no espeto
Extraíram-lhe o bedum…, esfregaram-no com sal
Comeram-lhe os col…. Deixaram-lhe o esqueleto
Tiraram-lhe o retrato para pôr num missal»

A acusação acrescenta que O livro em questão foi vendido publicamente, a mais de seis pessoas e que Foram apreendidos 37 exemplares do mesmo. É escusado sublinhar que, noutro contexto, ambos os números teriam sido certamente considerados ridículos e insuficientes para justificar os crimes que estavam em causa. O quinto aspecto menos conhecido do processo tem a ver com os argumentos usados pela defesa, e é talvez o mais interessante. Parte dos argumentos é previsível e passa pelo acentuar da validade e do interesse deste tipo de poesia e pela negação da intenção de ofender a moral pública. Natália Correia, nas declarações que presta na Polícia Judiciária a 18-1-1966, invoca os precedentes abertos por Carolina Michäelis Vasconcelos [como já fizera no prefácio] e nos nossos dias por Elsa Pacheco Machado e do Doutor Rodrigues Lapa, que publicaram respectivamente, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e as Cantigas de Escarno e Maldizer, colecções essas de nível universitário que são vendidos (sic) abertamente nas nossas livrarias e nas quais se encontram algumas das produções que vêm na Antologia referida nos autos e cuja terminologia é pelo menos tão violenta como a da presente Antologia, se não for mais. Na contestação à primeira acusação, afirma, ela ou o seu advogado, Manuel João Palma Carlos, de modo contundente, numa retomada dos argumentos habitualmente usados pelas vítimas de processos deste tipo. Um dos elementos interessantes apresentados por Natália Correia é uma carta do poeta Eugénio Andrade, em que este uma nota de gratidão.
A contestação mais interessante à primeira acusação é a de Mário Cesariny Vasconcelos, provavelmente elaborada pelo seu advogado, Fernando Luso Soares. Para além da sólida fundamentação jurídica, o autor discute com finura a natureza da sátira e do erotismo e recorre a argumentos emblemáticos da histórica literária. A dada altura cita dois casos de reacção judicial contra escritores: Dostoievski, que foi acusado de se ter compadecido do destino miserável dos camponeses que se encontravam reduzidos à condição de escravos». In Francisco José Jesus Topa, A Sádica Nostalgia das fogueiras do Santo Ofício: o processo judicial contra a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, Revista Historiae, Universidade do Porto, Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, Espólio de Natália Correia, Torre do Tombo, Tribunal de Comarca de Lisboa, 4.º Juízo Criminal, 2015.

Cortesia de RHistoriae/UdoPorto/TorredoTombo/JDACT

Um País Encantado. Luís Miguel Rocha. «Preferiram a lei do chicote que ainda hoje impera, mas não usamos chicote no sentido pejorativo, Deus nos livre, é o caminho que escolhemos com tino, um homem a governar todos até que bem entenda deixar de o fazer…»

jdact

«O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós». In Jean.Paul Sartre

«(…) De como o coronel se achou de amores por dona Margarida.
Falemos do ano treze, depois de mil e novecentos, do antigo Reino de Portugal, renegado havia pouco mais de dois anos e meio. Não importa que num país de cinco milhões, trezentos mil republicanos, intoxicados como sempre por ideais estrangeiros, tenham sido bem sucedidos na imposição das suas filosofias, importa é que homens corno o coronel, ainda não tão graduado na altura, creram e lutaram para que qualquer um, que assim o ambicionasse, pudesse colocar o país em mares bem mais calmos, de forma a navegarmos ordeiramente rumo ao progresso. O coronel servia governos e não políticas, por isso nunca se apercebeu que já no ano treze deste século XX a jovem República andava nas mãos dos oportunistas e dos endinheirados em jogos de poder, maquinações e arrioscas. O coronel, ainda não coronel à época, andava ocupado a minar as incursões monárquicas que, vá-se lá saber porquê, ainda viam goradas as hipóteses de recolocação no trono de Manuel II. O povo estava dividido, mas sabia o coronel que o povo anda para o lado da locomotiva, o que era preciso era um bom líder e todos o seguiriam, talvez tivesse chegado essa hora. Afonso Costa ascendera ao governo através de uma coligação, a União Sagrada, talvez ela consagrasse de novo o país às graças do Senhor, de quem andava arredado. Mas não sabia o coronel que os grandes homens para os quais abriu caminho queriam era encher os seus bolsos, porque é isso a democracia, usar o dinheiro dos outros em benefício próprio ou dos seus e preparar o caminho para que as suas gentes os substituam no poder. Contudo, nesta imberbe República eram sete cães a um osso, todos a pretenderem o mesmo e quanto mais se dividir menos fica para usufruto próprio. Isto ainda daria estrondo, governos a cair a torto e a direito até que todos se unissem sob a lei do chicote ou fizessem um pacto para ganhar algum de quando em vez. Preferiram a lei do chicote que ainda hoje impera, mas não usamos chicote no sentido pejorativo, Deus nos livre, é o caminho que escolhemos com tino, um homem a governar todos até que bem entenda deixar de o fazer, e que não permita que se fale mal dele, pois não é brincadeira governar um país das dimensões do nosso.
Perdoem-nos o trato ligeiro com que abargantamos esta fase da História de Portugal, coisas mais profundas estavam em jogo, nenhuma mais importante do que o dinheiro, no entanto, mas as ideologias tombavam e renasciam a uma velocidade estonteante. É o problema das revoluções, pretendem sempre substituir por inteiro os regimes precedentes em vez de pouparem o que de bom têm, pois, por muito maus que fossem, e não era o caso, encontrar-se-ia sempre algum ponto positivo que valesse a pena continuar a implementar, contudo, falava-se do trato ligeiro, devido ao facto desta ser a história do coronel e não a de Portugal, prossigamos, portanto, com o fio da meada. Também o coronel usufruía das probidades da democracia, pois o governo decretara o serviço militar obrigatório a todos os mancebos com idade para servir a pátria. Deixara também de ser possível apresentar um substituto para o lugar do visado, segundo a lei do recrutamento, prática corrente entre os endinheirados. Porém, em troca de uma quantia, podia colocar-se um Não Apto na cédula militar, prova documental da incapacidade do jovem em servir a nação. Ganhara muito dinheiro o coronel com esta rotina beneficiária, os homens entravam a rodos no exército, pelo que alguns a menos não faria diferença. Certo dia, apareceu um homem na divisão de inspecção onde o nosso coronel fazia por aumentar o seu pecúlio, trazia consigo um jovem gaiato, muito bem vestido, mas atemorizado. Pudera, nunca estivera tao perto de tanta vulgaridade, sebosos, sebentos, desdentados, desgrenhados, esguedelhados, piolhosos, pulgosos, badalhocos, putridos, asquerosos e todos os adjectivos e mais alguns para rotular todos aqueles que o cercavam, aos olhos dos gaiatos e não aos nossos, bem entendido». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de PlanetaE/JDACT

Um País Encantado. Luís Miguel Rocha. «… um pouco das duas se combina agora vinda de quem vem, ela saberá qual lhe toca quando chegar à hora de deliberar, deixemo-la dormir ora e a todos os que de nós invejarem»

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«O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós». In Jean.Paul Sartre

«(…) Os outros voltam às limpezas, bem mais limpos estão dos desejos mundanos, mas não dos da alma, isso só a eles importa e se não se apoquentam eles muito menos o faremos nós. Continua a limpar o pó Laurinda enquanto Alfredo segue pelo corredor, em direcção à cozinha, ver a sua Conceição Genoveva. Sente súbitas saudades da sua gorda, mãe do seu único filho, que ainda só seis meses tem. Laurinda é bem mais nova, mais fresca, como se viu, e mais magra, com uma grande abertura de ideias mas com os mesmos ideais porque é o que espera quem nasce desventurado e sem refúgio, ficar-se burro de instrução até ao fim da vida ou subir à custa de ardis para saciar mais os bolsos, porque se há coisa que todos fazemos é abafar o tes…, uns mais do que outros, mas todos alguma coisa. Assim seja para quem puder, só alguns, poucos, sairão da sumidouro rumo ao píncaro, a maior porção ficará pelo trabalhos duros que os abastados não fazem porque têm dinheiro para pagar, pouco, ao burro pobre que dele precisa para pôr comida na boca dele e da família. Estes que aqui trabalham nem se podem chorar, não ganham moedas mas comem e bebem à discrição, dormem em bons colchões e não é trabalho que mate e ainda têm direito a alívios destes, como vimos mas não vamos dizer a vivalma ou então que atire a primeira pedra, como disse Jesus Cristo noutras circunstâncias parecidas, o que de nós nunca o fez. Poucas ou nenhumas se atirariam porque todos gostamos do mesmo e de andar por fora a debicar e a fazer modernas experimentações como as que viu o coronel há pouco e que pensava ser impossível no ramo da reprodução. Somos testemunhas e não mirones e não falaremos mais disto.
Mariana Silveira ainda não se preocupa com estas coisas, mais importante é despicar, formosa e fresca, medrar para a vida sem problemas de saúde, ela que dorme ainda na alcofa, serena e amansada como a está a ver o pai e Josefina, que ainda não saiu de cerca dela desde que acordou pela manhã, muito antes das outras, que ainda dormem. Não tens escola hoje?, pergunta o pai a lembrar-se das horas. Hoje é sábado, pai. Tens razão, ando perdido. Gostas da tua irmãzinha? Muito. Vou-lhe ensinar tudo o que sei. E já sabes muito? Sei que chegue. É danada esta, pensa o coronel, gosta de resposta na ponta da língua, sai a ele esta Josefina, ou talvez não, é mesmo a cara e o carácter da tia que lhe deu o nome, a sua cunhada, espevitada e frontal porque não adianta mandar dizer por outro aquilo que tem de sair de nós. As tuas irmãs, já acordaram? Vou ver. Já é hora de arribarem.
Sai Josefina rumo ao quarto dela e das outras que ainda não as vimos mas havemos de ver, o tempo sobeja para onde vamos e muitos anos para confiar a todos os que de nós se interessem por esses factos. Com tanta algaraviada nem demos pelo acordar de dona Margarida, que já atenta no cenário. Coisa como esta nunca viu, o seu coronel a apreciar sua filha Mariana Silveira logo na manhã do nascimento. Com as outras a nada disto se assistiu, ficou semanas fora do lar a curar a ira, que estranheza esta que passa desde esta noite a mudar-lhe o esposo para melhor. Bom-dia, senhor meu marido. Bons-dias para si também. Deixou-a dormir bem? Muito bem. Não chorou um segundo. Prezo por si. Esta noite dormirei consigo se já não houver problema. Nunca houve senhor meu marido, mas estimo que me tenha deixado descansar esta noite. Claro que pode dormir, mas dada a minha situação sabe que nada poderá... Bem sei quanto a isso tudo o que há a saber. Não a molestarei nesse aspecto. Vou agora ao quartel ver como se apresentam as coisas. Só mais uma coisa senhor meu marido. Dizei. Fiz promessa à Virgem de lá ir acender umas velas se tudo corresse pelo melhor. À Virgem de Fátima? Sim, meu senhor, prometi lá ir no treze de Maio. Prometeu que eu iria?
Claro que não, senhor meu marido. Prometo só por mim para não enfastiar outros, mas posso ir só com o Albino e as crianças. Nada disso, eu a acompanharei e às crianças no dia treze. Descansai agora. Agradeço-lhe, senhor meu. Um beijo dá na boca de sua amorável esposa, a imaginar outras coisas que lhe ornam a lembrança, e sai do quarto. Este homem está maluco, pensa dona Margarida, acometida em pensamentos toscos de imaginação cheia. Não se imagine mais porque a causa está neste quarto, naquela alcofa a dormir, a futura dona que dobrou o despiedoso coronel à nascença, neste dia três de Abril do ano que todos sabemos, muitos mais virão adiante deste, pois que venham, das horas dos dias se faz a história e nascem os heróis depois dos vilões porque para haver herói tem de existir vilão primeiro ou não seriam necessários actos heróicos. À frente se verá de que é feita esta Mariana Silveira, se de matéria vil ou varonil, um pouco das duas se combina agora vinda de quem vem, ela saberá qual lhe toca quando chegar à hora de deliberar, deixemo-la dormir ora e a todos os que de nós invejarem». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de PlanetaE/JDACT

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Um País Encantado. Luís Miguel Rocha. «Já vai o coronel no corredor, à espera da cigarrilha matinal que lhe vai fazendo falta. Entra no salão de leitura, sabem-lhe bem estes minutos que antecedem a graciosa deleitação do fumo»

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«O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós». In Jean.Paul Sartre

«(…) Por aqui o meu coronel?, estranha Gracinda, a mais velha das serviçais da casa, que já servia os antigos donos antes do coronel montar praça nela, na casa, ou no solar como lhe quiserem chamar. Precisa de alguma coisa? Não obrigado, Gracinda, só vim esticar as pernas. A senhora já acordou? Ainda não, coitadinha, diz Conceição Genoveva com cara de enfado a juntar ao esforço da partição do fiel amigo. Precisa de descansar. Assim será. E sai o Coronel da cozinha pela parte de dentro para ir à sua vida, não sem antes desejar um bom dia às duas das quatro serviçais da casa. À Gracinda, cozinheira, e à Conceição Genoveva, das tarefas múltiplas e esposa do mordomo Alfredo. As outras estão nos seus afazeres com certeza, a Laurinda, da lida  da casa, quartos, camas, salas e salões, pó e afins, menos a roupa, porque essa fica para a Conceição Genoveva que vai todas as sextas-feiras ao tanque público lavá-la quando não chove e saber das novas da terra ou, nos dias maus, ao tanque interno. A roupa de todos sem diferença de classes, mas sem misturas de cores para não dar caso. E a Rosa, que as há em todo o lado no nosso querido Portugal, a que trata das miúdas, todas, trabalho imperioso e de grande responsabilidade.
Já vai o coronel no corredor, à espera da cigarrilha matinal que lhe vai fazendo falta. Entra no salão de leitura, sabem-lhe bem estes minutos que antecedem a graciosa deleitação do fumo. Que maravilha esta que nós ternos, a de saborear mais os preliminares do que o prazer em si mesmo. Já a acendeu, já a contempla nos dedos e recosta-se no cadeirão. Mira a porta da sala de convívio aberta e Laurinda, do outro lado com o pano de limpar o pó apoiado numa mesinha pequena, numa esfregação com Alfredo, o mordomo. Este, por detrás dela que limpa o pó, murmúrio, gemido, respiração cavalar. E Alfredo roça que roça para trás e para a frente por detrás de Laurinda, de saias levantadas sobre as costas para dar arejo às apudoradas partes, despudoradas agora, e espaço ao membro másculo que balança enérgico em movimentos persistentes. Que rijeza, que tes… este, dos dois, não pensam em pecado nesta hora, isso fica para mais tarde, que coisa chamarmos a consciência honesta e verdadeira para esta sala onde estes dois se comem e enrijam os sentimentos físicos do coronel que, na outra sala, ainda espreita pela porta com o sublime desejo cada vez mais
inflamado. Ele é testemunha e não mirone destes que fod… um com o outro, ele mordomo casado, mas não com ela, mulher da limpeza, do pó, que abana o pano com todo o vigor, casada com o motorista da casa, o Adelino, que ainda há pouco trouxe o coronel do cemitério e agora tira a lama do lado de fora do veículo porque dentro está reluzente, ou não fosse essa também a sua função, a de cuidar do bem-estar da viatura, enquanto a esposa limpa o pó e dá polimento aos móveis que ficarão gastos de tanto limpar no mesmo sítio e com tanto viço. O coronel já tem um alto no cimo das calças enquanto ainda aprecia o espectáculo. A posição mudou, ele sentado no sofá e ela por cima dele, como que a montar um jumento qualquer e a saltar, a saltar, a saltar, tanto arrebatamento, nenhuma afeição, só carne com carne a eliminar o desejo como quer o coronel, e salta que salta, salta que salta, salta que salta, até se vê a cueca que foi enfiada de manhã e não foi tirada, só empurrada para o lado, grande desvario este, não têm eles medo que alguém entre ou que alguém veja? Não, ora essa, quem é que entraria e quem é que veria, nada disso, e o que importa é aliviar a tensão e cortar o tes… Está quase, é bem doida esta Laurinda, pensa o coronel, que nunca a tinha olhado com olhos de ver e agora que enxerga alimenta ideias. Mas que é isto que ela faz? Por esta é que não esperava, tal coisa nunca tinha pensado, dela que agora deglute o agregado do mordomo. Que visão, que loucura mais interessante vem a ser esta, que Laurinda tão ágil ali em reverência com aquilo do mordomo, ele que já geme de prazer manado e ela a continuar sem bulício em movimentos maquinais até que Alfredo pára de gemer e o coronel descansa também do vislumbre a que assistiu de uma técnica mais avançada do que ele pode supor e que os subservientes dominam e ele não. Arrumam-se os dois do pouco que desajeitaram, tudo o resto está imaculado, nem pingo de obscenidade, pudera, é tão bom quando tudo corre bem, estas depravações só são boas com os de fora, isto que nem é pecado quando os cônjuges não compensam nessas artes. O que está feito, feito está, e o nosso coronel já saiu do salão de leitura, ele que nem saboreou a cigarrilha, mas algo bem melhor do que isso. O pecado é galante e saboroso, mesmo o dos outros que não os dele, e já vai pelo corredor a ver a filha mais nova, que se lembrou agora dela». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de PlanetaE/JDACT

Os Sete Minutos Irving Wallace. «Mostrava-se desalentado com a Sanford House, que o pai dirigia com mão de ferro. Mas a última vez que Barrett conversara com Phil Sanford, há apenas três meses…»

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«(…) Ah, ainda bem que o senhor chegou. Mr. Barrett. Houve dois telefonemas interurbanos, urgentes, na última meia hora. Ambos da mesma pessoa. Um tal mr. Philip Sanford, de Nova Iorque, ele queria que o senhor ligasse para lá assim que chegasse. Deixou o número do escritório e o da residência. Vejamos. São apenas três e vinte em Nova Iorque. Experimente o do escritório. Levantando-se do sofá, despindo a camisa e atirando-a de lado, foi preparar um sumo de frutas na pequena cozinha. Enquanto enchia o copo, pôs-se a pensar em Phil Sanford. Estranhava duas coisas nos dois telefonemas consecutivos. Sanford passava muito tempo sem comunicar com ele, e quando o chamava, poucas vezes por ano, era sempre à noite. Além disso, as ligações eram sempre despreocupadas, sem pressa: a necessidade de um amigo solitário de estabelecer contacto numa reafirmação de amizade. O pobre Sanford contava com um mínimo de carinho da mulher e absolutamente nenhum do pai tirânico. Mas os telefonemas desta manhã, pelo visto, não tinham sido por cortesia social. Diziam-se urgentes. E agora Barrett perguntava-se porquê. Tomando o sumo de frutas, Barrett pensou no velho amigo e na amizade que os unia, amizade mais antiga, mas menos agradável do que a que tinha por Abe Zelkin. Depois de Harvard, quando tanto ele como Philip Sanford tinham ido para Nova Iorque, ele para se transformar num benemérito desiludido, Sanford para se dedicar à famosa editora paterna, os dois ex-colegas de quarto costumavam encontrar-se com regularidade. Não só simpatizava com Phil como lhe devia muitos favores, por tudo que fizera durante o ano em que Barrett passara dificuldades com a mãe. Mesmo após o casamento de Phil Sanford, Barrett continuou a ver o amigo uma vez por semana, quando almoçavam juntos no Baroque Restaurant ou iam assistir, ocasionalmente, a algum acontecimento desportivo no Madison Square Garden. Mudando-se para a Califórnia, Barrett, desde então, encontrara-se com Sanford apenas meia dúzia de vezes. Essas ocasiões não lhe haviam causado nenhum prazer. Phil Sanford parecia sempre taciturno quando falava sobre a mulher e os dois filhos. Mostrava-se desalentado com a Sanford House, que o pai dirigia com mão de ferro.
Mas a última vez que Barrett conversara com Phil Sanford, há apenas três meses, mais ou menos, quando tivera de tomar o avião para Nova Iorque para tratar de um negócio urgente e os dois tinham jantado juntos no Salão de Carvalho, no Plaza, o encontro tornara-se mais alegre do que de costume. A vida de Sanford mudara radicalmente nos meses que antecederam essa reunião com Barrett. Pela primeira vez, viera-lhe uma oportunidade de provar o seu valor. Embora estivesse cheio de angústias, estava também cheio de entusiasmo. Aquele gigante da publicidade, Wesley R. Sanford, pai de Philip, fora vitimado por um ataque súbito. Embora não houvesse sido violento, servira de advertência suficientemente forte para o obrigar a aposentar-se. Aos olhos do colosso grisalho abatido, a Sanford House, por tanto tempo descobridora e incentivadora de escritores agraciados com o Prémio Nobel de literatura, com o Prémio Pulitzer, o Prix Goncourt, era agora uma editora acéfala. Phil Sanford, o único herdeiro, fora sempre tratado com condescendência, e até desdém, pelo poderoso pai. Era como se o gigante que se fizera por si mesmo sempre houvesse sabido que não poderia engendrar outro à própria imagem e semelhança. Considerava o filho como um pigmeu, pusilânime e incompetente, um fracasso total. Essa fora a Cruz de Phil, e o facto de ter sofrido semelhante tratamento durante tanto tempo sem tomar a iniciativa de se estabelecer por conta própria acabara por contagiar a esposa, que também passara a considerá-lo pusilânime e covarde.
O rumor de que Wesley R. Sanford deixara um próspero negócio editorial, sem herdeiro satisfatório, espalhou-se rapidamente pelos círculos editoriais até chegar aos ouvidos de Wall Street. Grandes complexos de comunicações, conglomerados em busca da diversificação dos seus valores mobiliários, mostraram interesse em comprar a firma, com o seu valioso acervo de autores e nome de prestígio. Restabelecendo-se apenas em parte do ataque, Wesley R. Sanford, segundo se dizia, estava disposto a vendê-la. Foi então que o filho se aproximou da cabeceira do pai e, pela primeira vez, implorou uma oportunidade. Seja porque a doença privara o gigante convalescente de firmeza de ânimo ou seja porque estivera à espera de que o herdeiro fizesse um apelo desse género e ficara impressionado. Wesley R. Sanford prometeu, em termos ásperos, conceder a oportunidade pedida. Philip Sanford recebeu dois anos de prazo para provar que era editor capaz e independente. Se nesse período mantivesse a firma solvente, conservando e expandindo o seu prestígio, ela continuaria pertencendo à família, com Philip no cargo de presidente e eventual proprietário. No entanto, se a sua orientação se manifestasse defeituosa, seria destituído da administração, e a casa editora vendida por completo, inclusive o acervo existente, a uma das indústrias de comunicações que a cobiçava». In Irving Wallace, Os Sete Minutos, Coleção Dois Mundos,  Livros do Brasil, 1988, ISBN 978-972-380-948-0.

Cortesia de CDMundos/LdoBrasil/JDACT

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «A cama estava impecavelmente feita, a coberta bem esticada, as almofadas na cabeceira. Havia exemplares do Corriere delle Alpi, do La Repubblica, do L’Arena e do L’Osservatore Romano empilhados…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Estava ali para trabalhar, servir a Jesus Cristo, à prioresa, à cónega, às irmãs e aos religiosos e religiosas que escolhiam aquele pedaço de paraíso para se hospedar. A alteração à normalidade ocorreu às cinco e meia, quando o prelado não apareceu, como de costume, para tomar o seu banho revigorante antes do jantar. O carro não surgiu ao fundo da rua. A irmã Bernarda deu por si a pensar no que lhe teria acontecido e não conseguiu evitar um sentimento de inquietação. Quinze minutos depois das seis, desceu à cozinha, no rés-do-chão, para recolher o jantar do seu hóspede e subiu de imediato. Tinha a esperança que ele, entretanto, já tivesse chegado, naquele intervalo.
O coração palpitava de preocupação. Que coisa. Porque se sentiria assim? Dali a poucos dias ele partiria, certamente, para sempre, e nunca mais o veria. Nosso Senhor Jesus Cristo, na Sua eterna bondade, cuidai do reverendo monsenhor e fazei com que nada de mal lhe aconteça, pediu mentalmente. E alivie-me destes pensamentos, acrescentou. Não se atrevia a fazê-lo em voz alta. Seria tornar real aquilo que nunca o poderia ser. Seria confirmar que desde que ele chegara não conseguia focar o seu pensamento em mais ninguém, nem no seu querido Jesus. Pousou a bandeja na mesinha e deixou-se ficar à escuta. O coração continuava a apertar-se no peito de consumição. Obrigou-se a acalmar-se. Nada acontecera. Não havia razão para estar tão alterada. Não se preocupava quando os outros hóspedes regressavam tarde ou não o faziam de todo. O monsenhor Lucarelli não era diferente dos outros. Como continuava a não sentir vida dentro do quarto, só lhe restava esperar. O jantar arrefeceu. Teria de pedir para lhe prepararem outro quando ele chegasse. Entrou na capela privada, ajoelhou-se junto ao altar e pediu à estátua de Cristo que mantivesse o prelado debaixo da Sua luz sábia e acolhedora. Rezou durante horas. Até se esqueceu de jantar, mas não se importou. Não tinha qualquer necessidade de comida naquele momento.
Bernarda deixou a capela depois das duas da manhã quando todo o retiro dormia o sono dos justos aos olhos de Deus. Não havia qualquer sinal do reverendo monsenhor Stephano Lucarelli, que saíra de manhã, por volta das sete horas, e não voltara a ser visto. Cogitou se deveria informar a prioresa da ausência dele ou esperar pela manhã. Uma hora depois, considerou…, com muitas reticências…, entrar no quarto. Da janela do terceiro andar não via nenhuns faróis a iluminar o escuro da noite. As reticências foram ultrapassadas uma hora depois e, às quatro da manhã, entrou nos interditados aposentos do reverendo monsenhor Lucarelli. As luzes estavam apagadas. Apalpou a parede ao lado da porta à procura do interruptor e ligou-o assim que o sentiu. Os aposentos não estavam como esperava encontrá-los ao fim de quatro dias. Parecia que nunca tinham sido utilizados. A cama estava impecavelmente feita, a coberta bem esticada, as almofadas na cabeceira. Havia exemplares do Corriere delle Alpi, do La Repubblica, do L’Arena e do L’Osservatore Romano empilhados simetricamente em cima de uma mesa. A curiosidade levou-a a abrir a porta do quarto de banho. Para além das loções fornecidas pelo retiro, reparou nas dele, perfeitamente alinhadas. Creme de barbear, aftershave, champô, gel de banho, escova de dentes dentro de um copo, pasta dos dentes ao lado e outros cremes que a irmã não quis saber para que serviam.
O seu voto de pobreza cingia-a ao banho diário, obviamente com todos os condimentos comuns mas sem cremes para rugas, esfoliantes, máscaras de beleza, e todas as outras poções da eterna juventude. O outro voto, o de castidade, impedia-a de estar dentro dos aposentos do prelado, sem autorização. Permitiu-se abrir a porta do escritório, só para se certificar de que não encontraria o corpo dele no chão, inanimado. Deus nos livre, murmurou para si mesma. Forçou a maçaneta mas não a conseguiu abrir. A porta estava trancada. Infelizmente, sabia onde havia uma chave, na gaveta de cima da cómoda, e nem pensou duas vezes». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «Ó meu Deus, disse a mulher em pânico, saindo de cima de Matteo e procurando refúgio debaixo do lençol. Quem é você?, conseguiu perguntar Matteo, ainda desorientado»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Já com o sol a dar os últimos suspiros, levava-os ao mosteiro de San Francesco al Corso. A maioria persignava-se ao entrar no secular lugar sagrado. Uns por crença, outros por contágio, os japoneses porque sim. Matteo encaminhava-os por um corredor e desciam a uma cripta abobadada, por debaixo da igreja. A humidade dos séculos agarrava-se a eles e às lápides dos monges que por ali jaziam. Ao fundo, junto a uma parede, agrupavam-se em redor de um sarcófago de mármore vermelho veronês vazio. Aguardava que o grupo se apertasse no exíguo espaço e depois falava em surdina, muito devagar, novamente como se estivesse a contar um segredo que não podia ser revelado. Este é o túmulo de Julieta. Havia quem fizesse o sinal da cruz e se ajoelhasse a rezar, e quem atacasse o túmulo com flashes fotográficos, prontamente reprimidos por Matteo. No photos, alertava em tom repreensivo. Foi aqui que Julieta ficou quando tomou o veneno. Do solitário, que repetia a visita pela quarta vez, não havia sinal.

À noite, Matteo continuou, como era habitual, a visita guiada de forma mais íntima, no seu quarto, em cima da cama, com a presa escolhida de manhã. Raramente falhava. Mostrou-lhe os cantos obscuros do prazer, os miradouros mágicos das percepções sensoriais, o fulgor dos corpos sequiosos. Ó meu Deus. Ó meu Deus. Ó meu Deus. Se o Altíssimo estava a ser invocado com tanto vigor era porque Matteo, mais uma vez, cumpria bem o seu papel de amante italiano. Enquanto o suor se misturava com a respiração ofegante da fome corpórea, a porta do quarto arrombada com estrondo deixou entrar o turista solitário. Ó meu Deus, disse a mulher em pânico, saindo de cima de Matteo e procurando refúgio debaixo do lençol. Quem é você?, conseguiu perguntar Matteo, ainda desorientado.
O importante é quem você é, Matteo Bonfiglioli, limitou-se a dizer o homem, muito calmamente. O desconhecido exibiu uma Beretta de 9mm com cabo de madeira. Ó meu Deus, tartamudeou a mulher. Ponha-se a andar, ordenou-lhe o homem. Ela pegou na roupa, atabalhoadamente, e dirigiu-se à saída. Sugiro que se esqueça da minha cara, Mary Theresa Goldwin. O seu marido espera-a no quarto número 204 do hotel Due Torri. Pensa que saiu com a sua amiga Jill. Sabemos onde a Jill anda, não sabemos, querida? Não se preocupem. A minha boca é um túmulo, disse, esboçando um ar cínico. Sentou-se na beira da cama, de costas para Matteo. Se por acaso não se esquecer de mim, eu faço uma visita ao Luke e ao Perry no Adams Hall, 63 South Green Dr., 45701, Athens, Ohio, ameaçou, levantando a arma. E não será para lhes dizer que a mãe se comporta muito, muito mal.
Deixou a informação percorrer todo o corpo da mulher como um calafrio cortante. Ela estava de costas, ainda nua, e ele sabia que as lágrimas jorravam silenciosas pelo bonito rosto. Era suposto ser apenas uma aventura sexual. Nada mais. Adeus, Mary Theresa Goldwin. Ela saiu mas o desconhecido já tinha colado o olhar em Matteo, com a Beretta, ameaçadoramente, apontada na sua direcção. Chegou a sua hora, Matteo Bonfiglioli.

Na segunda-feira, a irmã Bernarda testemunhou uma alteração à rotina, até ali imutável, do monsenhor Lucarelli. Como fizera nos três dias anteriores, Stephano saiu logo depois do pequeno-almoço, vestido com um fato de esqui lavado que a freira havia providenciado, e levando os esquis e a mochila. Pela janela do terceiro andar, viu o carro desaparecer ao fundo da rua. Como esperado, passou o resto da manhã e a tarde fora do retiro. Bernarda aproveitava as horas em que o monsenhor se ausentava para ajudar as irmãs nos outros pisos, ainda que a prioresa a tivesse libertado de outros afazeres que não os de cuidar do enviado de Roma. Como não fora autorizada a entrar no quarto e não havia mais o que fazer, a freira obrigava-se a rezar por bons pensamentos e pelo perdão dos mais impuros, durante sessenta minutos, na capela privada do terceiro andar, e depois descia para ajudar a fazer camas de lavado, aspirar e mais o que fosse necessário». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

quinta-feira, 27 de junho de 2019

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «O solitário que repetia a visita pela quarta vez não tirava os olhos dele enquanto ouvia as mesmas explicações dos dias anteriores. Não era participativo, nunca escreveu nada nas paredes…»

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«(…) Seguia-se a cereja em cima do bolo a que se acedia por um pequeno túnel com as paredes repletas de painéis brancos preenchidos com grafíti amorosos, na Via Cappello, perto da Piazza delle Erbe. Matteo pedia a todos que parassem a meio do túnel e distribuía algumas canetas de feltro. Estas paredes exibem rabiscos de amor, explicava em tom jocoso. Declarem o vosso amor ao mundo, clamava num incitamento à expressão amorosa, com os braços levantados no ar. Declarem o vosso amor. As mulheres, primeiro, começavam a escrever com um brilho nos olhos, no espaço disponível, que já era escasso. Quando terminavam entregavam a caneta ao marido ou ao namorado para que também exprimissem o amor em toda a sua essência. Outras limitavam-se a passá-la à próxima, à amiga ou à desconhecida, enquanto olhavam para Matteo com um ar pecaminoso. Ele estava ciente do efeito que provocava nelas. O dia já ia longo e a escolha dele já fora feita. Bastava um olhar escrutinador, na primeira passagem que fazia pelo corredor do autocarro, logo pela manhã, antes da partida para Castelvecchio, para identificar a presa e iniciar um ataque velado que, a maior parte das vezes, acabava à noite… na cama dele.
O solitário que repetia a visita pela quarta vez não tirava os olhos dele enquanto ouvia as mesmas explicações dos dias anteriores. Não era participativo, nunca escreveu nada nas paredes, e não reagia às revelações exuberantes do guia. Estás a perder o teu tempo comigo, dizia Matteo para si mesmo. A cama já está ocupada logo à noite. Estes painéis são substituídos duas vezes por ano, explicava o guia desfilando pelo grupo que enchia as paredes de amor. Antes do dia 14 de Fevereiro, porque Verona enche-se de pessoas nessa altura, e antes do dia 17 de Setembro, data do aniversário de Julieta. Depois fazia uma pausa teatral como um actor prestes a revelar um segredo. Minhas senhoras e meus senhores, dizia num tom sedutor. Sejam bem-vindos ao Palácio dos Capuleti, a Casa de Julieta. O grupo apressava-se agora para um pequeno pátio rodeado por fachadas de mármore vermelho, onde se via uma varanda em pedra. Na fachada da casa, e em todos os locais onde fosse possível, centenas de cartas dos mais variados géneros. Envelopes rosados, desenhos, papéis simples, bilhetes, dos mais variados tamanhos e feitios, prendiam-se às pedras numa corrente de desejos de amor. Amuletos, chaves, aloquetes, toda a espécie de bugigangas, até pastilhas elásticas se colavam às paredes em forma de coração.
Matteo desaparecia então por momentos, enquanto os turistas se acotovelavam no estreito pátio, admirando, imaginando o que se passara ali entre Romeu e Julieta, séculos antes. Alguns minutos depois davam pela falta dele. Onde está o Matteo? Onde se meteu o guia? O belo italiano? Não seria a primeira vez que ele aproveitava o primeiro impacto e a atmosfera mágica e romântica da casa para se esconder num qualquer local obscuro, aos beijos sôfregos com a presa do dia, mas o efeito que procurava era outro. Quando a simples curiosidade se começava a transformar em protesto, ele reaparecia na varanda de pedra sob uma ovação generalizada.

Romeu! Romeu! Porque és tu, Romeu?
Renega o teu pai, muda de nome;
Se não queres fazê-lo, jura amar-me
E deixo eu de ser Capuleto.

O silêncio espraiava-se pelo pátio com os turistas a olhar para ele. Máquinas fotográficas, telemóveis e outras traquitanas digitais registavam o momento. O solitário estava encostado à parede ao lado do túnel. O sol começava a fraquejar, adornando o espaço com um tom alaranjado, misterioso. Renuncia a esse nome, Romeu, E em vez dele que não faz parte da tua existência, Apodera-te de mim que sou tua. Um coro de aplausos seguia-se à interpretação do guia. Era daqui que Julieta pronunciava estas palavras e Romeu escutava-as daí debaixo, exactamente onde estão agora. Dava o tempo suficiente para se beliscarem todos e abrandarem os sorrisos apaixonados, plenos de imagens românticas. Omitia, claro, que, apesar de a casa ser muito antiga, a varanda fora construída apenas em 1936 e não parecia haver qualquer relação entre os Capuleti, Julieta e aquela residência. Ali vendia-se magia e não a verdade. Nesta, ninguém estava interessado. E agora, anunciava ainda na varanda, vamos à última paragem». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT