domingo, 2 de junho de 2019

O Sebastianismo, História Sumária. José Van Den Besselaar. «Fosse isso como fosse, quase todas as profecias eram redigidas numa linguagem obscura e enigmática, prestando-se a mais de uma interpretação»

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As profecias e os cartapácios dos sebastianistas
«(…) Na sociedade moderna, científica e tecnológica, a profecia já não funciona, faltando-lhe para tal as condições indispensáveis. Vem a ser substituída por análises científicas e processos técnicos, que invadem quase todos os terrenos da cultura hodierna e, dentro dos seus limites, funcionam com grande perfeição. Mas a ciência e a técnica têm os seus limites fatais: ambas são incapazes de dar sentido à vida dos indivíduos e das colectividades. Examinando de perto as ideologias modernas, que a muitos parecem objectivas e definitivas, descobrimos nelas também elementos míticos. Estes mostram muitas vezes ter mais força existencial e maior poder conquistador do que os componentes meramente racionais. Intellectus supponens fidem. Vimos que desde os primeiros séculos da era cristã se forjaram profecias sobre o rumo do processo histórico, mas que elas nunca pulularam tanto entre os cristãos como no fim da Idade Média.
Em Portugal, o profetismo teve o seu apogeu mais tarde, nos séculos XVI, XVII e XVIII. Os forjadores de profecias costumavam pô-las na boca de uma pessoa ilustre, já há muito tempo defunta. Este método tinha duas vantagens. Em primeiro lugar, a antiguidade do vaticínio conferia-lhe certa dignidade. Em segundo lugar, este método possibilitava aos autores iniciar os seus oráculos com o prenúncio de acontecimentos já sucedidos na época da redacção. E a verdade das profecias já cumpridas devia garantir a das profecias ainda por cumprir. A profecia propriamente dita continha geralmente, além de admoestação e imprecações, material de propaganda a favor de uma corrente religiosa, combinado com qualquer movimento político ou social. Aos modernos causa espanto o facto de que esses produtos fantasistas brotavam sem escrúpulos da mente de pessoas que decerto se consideravam a si mesmas como honradas e honestas e como tais eram consideradas por outros. Hoje, estamos espontaneamente inclinados a condenar tais falsificações. Mas não sejamos demasiadamente severos com aquela gente. Diz um crítico francês: pour des esprits peu formés à l’observation, attribuant à ce qui est une importance bien moindre qu’à ce qui doit être, introduire dans les archives le document qui y manque malheuresement, n’est pas mentir, c’est au contraire rétabilir une vérité supérieures.
Fosse isso como fosse, quase todas as profecias eram redigidas numa linguagem obscura e enigmática, prestando-se a mais de uma interpretação. E, assim como os documentos históricos dão lugar a uma constante discussão entre os estudiosos do passado sobre a sua correcta interpretação, assim as profecias criavam uma classe de exegetas que disputavam entre si o seu verdadeiro significado. Havia inúmeras disputas entre pessoas unidas na sua fé nas profecias, mas muito desunidas na sua interpretação. Os combatentes mostravam, por vezes, algum talento em discernir o ponto fraco da argumentação dos seus adversários, mas falhavam redondamente em provar, de maneira convincente, a sua própria opinião. Essas discussões fazem-nos pensar nos debates parlamentares entre conservadores e progressistas, que não convencem ninguém, a não ser quem já esteja convencido. Assim a luta continuava indecisa, sem vencedores finais nem derrotados definitivos. Os combatentes gostavam de assumir ares de eruditos, mas a erudição que exibiam mal resiste a um exame crítico, porque toda ela estava baseada em premissas ilusórias. Acontece, porém, que também as ilusões fazem parte da História, chegando a ser, por vezes, motrizes mais pujantes do que as lucubrações de ordem puramente intelectual. Por mais eruditos e, em alguns casos, inteligentes que fossem os polemistas, quase nenhum deles levantava o problema que ao homem moderno parece fundamental: a autenticidade das profecias alegadas». In José Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária, Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria Bertrand, 1987.

Cortesia de CV Camões/JDACT