jdact
e wikipedia
O
peso e a leveza
«(…)
Mas ainda poderia falar-se em
alegria? Mal a deixava para ir ao encontro de uma das amantes, esta
tornava-se-lhe indiferente e jurava a si próprio que era a última vez. A imagem
de Tereza estava sempre a bailar-lhe diante dos olhos e tinha que se embebedar
imediatamente para deixar de pensar nela. Desde que a conhecia, era incapaz de
ir para a cama com outras sem a ajuda do álcool! Mas o cheiro a álcool era
precisamente o indício através do qual Tereza ainda descobria com mais
facilidade as suas infidelidades. A armadilha fechara-se sobre Tomás: mal a
deixava para ir ao encontro delas, o seu desejo desvanecia-se, mas se passava
um dia sem elas punha-se logo a telefonar para marcar um encontro. Ainda era em
casa de Sabina que se sentia melhor porque sabia que ela era discreta e que não
havia razão para temer ser descoberto. No atelier, pairava como uma recordação
a sua vida passada, a sua vida idílica de celibatário.
Talvez ele não se desse conta de como mudara: tinha medo de
voltar tarde para casa porque Tereza estava à espera. Uma vez, enquanto faziam
amor, Sabina viu-o espreitar para o relógio e percebeu que ele se esforçava por
apressar a conclusão. Em seguida, pusera-se toda nua a passear negligentemente
pelo atelier e fora postar-se diante de um cavalete onde estava um quadro inacabado,
enquanto espiava Tomás a enfiar a roupa a toda a velocidade. Em breve este se
encontrava outra vez vestido, mas com um pé descalço. Olhou em redor de si e
depois pôs-se de gatas debaixo da mesa com se estivesse à procura de qualquer
coisa. Sabina disse: quando olho para ti, só sinto que estás a ficar cada vez
mais parecido com o eterno tema dos meus quadros: o encontro de dois mundos.
Uma dupla exposição. Por detrás da silhueta de Tomás, o libertino, transparece
o incrível rosto do apaixonado romântico. Ou então, é precisamente o contrário:
através da silhueta do Tristão que não pensa senão na sua Tereza, apercebe-se o
belo universo traído do libertino. Tomás pusera-se de pé e não prestava grande
atenção ao que Sabina dizia. De que é que andas à procura?; perguntou ela.
De uma meia. Inspeccionou o quarto
com ele e depois Tomas voltou a pôr-se de gatas debaixo da mesa. Aqui não há meia nenhuma, disse Sabina. Já não a trazias, com
certeza. Não a trazia, o quê?!,
exclamou Tomas, olhando para o relógio. Não posso ter vindo só com uma meia! Não é de todo impossível. Andas tão distraído ultimamente... Estás
sempre com pressa, passas a vida a olhar para o relógio... Não é de admirar que
te esqueças de calçar uma meia... Decidira-se
já a calçar o outro sapato sem meia. Está
frio lá fora, disse Sabina. Vou emprestar-te
uma meia! E estendeu-lhe uma meia enorme de rede branca à última moda. Tomas sabia perfeitamente que aquilo era uma vingança. Sabina
escondera-lhe a meia para o castigar de ter olhado para o relógio enquanto
estavam a fazer amor. Mas com o frio que estava, não podia senão submeter-se a
ela. Entrou em casa com uma meia numa perna e, na outra, uma meia branca de
mulher enrolada no tornozelo. Estava
numa situação de onde não havia saída: aos olhos das amantes, marcado pelo selo
infamante do seu amor por Tereza; aos olhos de Tereza, pelos estigmas das suas
aventuras com as amantes». In Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, 1983,
Publicações dom Quixote, 2013, ISBN 978-972-200-002-4.
Cortesia
PdonQuixote/JDACT