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e wikipedia
O
peso e a leveza
«(…) Para lhe minorar o sofrimento, casou-se com ela (puderam
finalmente desistir do estúdio alugado onde Tereza já não vivia há muito) e
arranjou-lhe um cachorrinho. Era filho de uma cadela são-bernardo de um colega
de Tomas e do pastor-alemão do vizinho. Ninguém queria os rafeiros e o seu
colega sentia as entranhas revolverem-se-lhe só de pensar em matá-los. Tomas
tinha de escolher um cachorro e sabia que os que não escolhesse seriam
abatidos. Estava na mesma situação que um presidente da República quando há
quatro condenados à morte e só pode agraciar um. Acabou por escolher um
cachorro, uma fêmea, que parecia ter o corpo do pastor-alemão e cuja cabeça
fazia lembrar a do são-bernardo. Levou-o à Tereza. Esta pegou nele ao colo,
apertou-o contra os seios e o bicho fez-lhe imediatamente xixi na blusa. Depois,
tiveram de baptizá-lo. Tomas queria que, pelo nome, se ficasse logo a saber que
o cão era de Tereza e lembrou-se do livro que ela trazia debaixo do braço no
dia em que viera a Praga sem prevenir. Propôs que lhe chamassem Tolstoi. Não
lhe podemos chamar Tolstoi, replicou Tereza, porque é uma menina. Vamos mas é
chamar-lhe Ana Karenina.
Não lhe podemos chamar Ana Karenina, uma fuçazinha assim
tão engraçada não é de mulher, disse Tomas. Karenine, sim. É isso mesmo. Foi
sempre assim que o imaginei. Mas não achas que se se chamar Karenine pode ficar
com a vida sexual perturbada? Não é de todo impossível que uma cadela que se
habitue a responder por um nome de cão venha a ter tendências lésbicas... O
mais curioso é que a previsão de Tomas veio a confirmar-se. As cadelas gostam
normalmente mais do dono que da dona, mas, com Karenine, passava-se
precisamente o contrário. Resolveu apaixonar-se por Tereza e Tomas estava-lhe
reconhecido por isso. Fazia-lhe festas na cabeça e dizia-lhe: tens razão,
Karenine, era exactamente isso que eu esperava de ti. Já que não consigo sozinho,
tu tens de me ajudar. Mas, mesmo com a ajuda de Karenine, não conseguiu fazê-la
feliz. Foi o que percebeu uns dez dias depois da ocupação do país pelos tanques
russos. Estava-se em Agosto de 1968 e o director de uma clínica de Zurique, que
conhecera num colóquio internacional, todos os dias lhe telefonava da Suíça.
Temia que lhe acontecesse qualquer coisa de mal e punha um lugar à sua
disposição.
Se Tomas não hesitara sequer um minuto em recusar a oferta
do médico suíço fora por causa de Tereza. Pensava que ela não devia querer
ir-se embora. Aliás, Tereza passou os sete primeiros dias da ocupação numa
espécie de transe que quase se assemelhava à felicidade. Andava sempre na rua
com a máquina fotográfica e distribuía os seus negativos por jornalistas
estrangeiros que se disputavam entre si para os obter. Num dia em que fora um
pouco longe demais e fotografara de perto um oficial a apontar a pistola às
pessoas que iam numa manifestação, apreenderam-lhe a máquina e obrigaram-na a
passar a noite no quartel-general russo. Ameaçaram-na com o pelotão de
fuzilamento, mas, assim que se viu em liberdade, voltou a ir para a rua tirar
fotografias.
Assim, qual não foi a surpresa de Tomas quando, no décimo dia da ocupação, ela lhe perguntou: ora
diz-me, no fundo, porque é que tu não queres ir para a Suíça? E porque é que havia de ir? Aqui têm contas a ajustar contigo... Com quem é que não têm?, replicou Tomas, fazendo um gesto de
resignação. Mas, e tu: eras capaz de viver no estrangeiro? E por que não? Depois
de te ter visto pronta a dar a vida por este país, não percebo como é que agora
te podias ir embora?! Desde que Dubcek voltou, tudo mudou,
disse Tereza». In Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, 1983,
Publicações dom Quixote, 2013, ISBN 978-972-200-002-4.
Cortesia
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