Cortesia
de wikipedia e jdact
Dia
de Finados
«(…) Martinho apertou, sem
querer, o braço da avó ao ter diante dos olhos a pesada pedra do túmulo. Era de
facto terrível, com as argolas de ferro enferrujadas e o musgo negro que a
cobria. Não vou deixar que a metam aqui, pensou, desolado. E um toque de pó-de-arroz
na face dela, junto à orelha esquerda, enterneceu-o como o rasto duma mulher
bonita. Até ao fim somos amantes uns dos outros, pensou, triste. A educação de
mulheres dera-lhe um descaramento ritual, sem nada de perverso, só amadurecido
pela reflexão. Deteve-se a olhar para as campas cobertas de inscrições
saudosas, de flores caras, de candeeiros vermelhos dentro dos quais uma chama
curta ia sucumbindo. A morte tinha-se tornado uma vaidade mais, uma festa de
anos em que só faltava o parabéns a você mas não a mesa abundante.
Tem frio, avó?, perguntou. Não,
só um pouco de fome. Mas, espera: não é fome, talvez não seja. A morte é
excitante. Esta gente toda vai comer demais e enrolar-se na cama com peúgas e
tudo. Não se devem frequentar lugares destes na minha idade. São lúbricos e
quase mal-afamados. Um dente dela abanava quando ela falava, e Martinho podia
distinguir um ligeiro ciciar da voz que dantes não tinha. Pronto, a velhice
está a bater-lhe à porta. Não vamos pensar nisso, não quero pensar nisso.
Pronto, acabou, pensamentos vagabundos! Beijou-a, a rir-se, e notou que os
cabelos dela tinham um cheiro de ferro frisado. Os cabelos. De repente as
mulheres puseram-se a usar franja e Nietzsche disse que era para esconder a
testa e o que ela presume: inteligência, independência de vida, sexo, gerência
dos negócios e outras coisas. Por mais que olhasse para todos os lados, as mulheres
não pareciam diferentes. Quer dizer: talvez se adaptassem com mais dificuldade
a um destino de donas de casa e mães de cinco filhos ranhosos e impertinentes.
A verdade estava à vista, a crueldade era uma forma de razão prática, mas isso
sempre existira entre as mulheres e os homens também. Só uma educação muito rígida
as controlava. Casavam-se por amor, mas o amor incluía tudo o que se pode
imaginar como na história do Humpty Dumpty. Cascas de ostras e peles de raposa
ou daquelas águas de Colónia estafadas cujos frascos eram sempre uma ralação
pois não pertenciam a nenhum lugar: nem ao lixo nem a uma colecção, nem para
encher outra vez. Paula Nabasco disse que outra vez que lhe dessem um frasco
desses, o mandava de volta de presente para outra pessoa. Eu, só gosto de
lavanda. Mas quando fiquei grávida do Martinho enjoei a lavanda e nunca mais a
pude suportar. Isto deve ter um sentido, não sei.
Paula
penteava os compridos cabelos pretos. Tão pretos quanto podiam ser, com
reflexos metálicos. Há coisas que se lêem nos livros mas que, nem por isso,
deixam de ser assim. Negro-asa de corvo existia. Eram os cabelos de Paula. Aí
está uma coisa que não se desfaz depressa. O cabelo, pensou Martinho. Pôs-se a
olhar para a cabeça das pessoas que enchiam o cemitério e ficou desconcertado. Pareciam
todas como as dos condenados à guilhotina ou ao machado, pontas cortadas ao acaso
segundo o critério do barbeiro da prisão. Os pensamentos dele voaram noutra direcção,
conduzidos por uma curiosidade que o fazia memorizar os momentos menos interessantes
da vida. Coisas de que ninguém se lembrava saíam da memória como ratos dum
queijo gigantesco. Era uma ideia tola mas divertida como as crianças costumam
gostar». In Agustina Bessa Luís, A Ronda da Noite, Guimarães Editores, 2006,
ISBN 972-665-513-7, Relógio d'Água, 2017, ISBN 978-989-641-811-3.
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