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Porque, deixe-me confidenciar-lho, sou terno, sou terno mesmo antes do sexto JB sem água ou do oitavo drambuie, sou estupidamente e
submissamente terno como um cão doente, um desses cães implorativos de órbitas
demasiado humanas que de quando em quando, na rua, sem motivo, nos colam o
focinho aos calcanhares gemendo torturadas paixões de escravo, que acabamos por
sacudir o pontapé e se afasta, a soluçar, decerto, interiormente sonetos de
almanaque, chorando lágrimas de violetas murchas. Duas coisas, minha boa amiga,
continuo a partilhar com a classe de que venho, desapontando o poster do Guevara,
esse Carlos Gardel da Revolução, que pendurei sobre a cama a fim de que me proteja
dos pesadelos burgueses, e que funciona um pouco para mim como uma espécie de
jóia magnética Vitaphor
da alma: a emoção fácil que me faz fungar diante da televisão da leitaria à
hora da novela, e o medo arrepiado do ridículo. O que eu gostava, por exemplo, de
conseguir, sem ostentação nem vergonha, coroar a minha calvície nascente de um
chapéu tirolês de pena. Ou de deixar crescer a unha do dedo mínimo. Ou de
entalar um bilhete de eléctrico dobrado na aliança. Ou de atender os meus
doentes vestido de palhaço pobre. Ou de lhe oferecer o meu retrato em coração
de esmalte para você usar quando for gorda, porque será gorda um dia, descanse,
todos nós seremos gordos, gordos, gordos e tranquilos, como gatos capados à
espera da morte nas matinées do Odeon.
Porém, na época de que lhe falo
eu tinha cabelo, bastante cabelo, enfim, algum cabelo se bem que aparado
regularmente curto e escondido dentro do pires da boina militar, e descia de
Luanda a caminho de Nova Lisboa na direcção da guerra, através de inacreditáveis
horizontes sem limites. Entenda-me: sou homem de um país estreito e velho, de
uma cidade afogada de casas que se multiplicam e reflectem umas às outras nas frontarias
de azulejo e nos ovais dos lagos, e a ilusão de espaço que aqui conheço, porque
o céu é feito de pombos próximos, consiste numa magra fatia de rio que os gumes
de duas esquinas apertam, e o braço de um navegador de bronze atravessa obliquamente
num ímpeto heróico. Nasci e cresci num acanhado universo de crochê, crochê de
tia-avó e crochê manuelino, filigranaram-me a cabeça na infância, habituaram-me
à pequenez do bibelot,
proibiram-me o canto nono de Os Lusíadas e ensinaram-me
desde sempre a acenar com o lenço em lugar de partir. Policiaram-me o espírito,
em suma, e reduziram-me a geografia aos problemas dos fusos, a cálculos horários
de amanuense cuja caravela de aportar às Índias se metamorfoseou numa mesa de
fórmica com esponja em cima para molhar os selos e a língua. Já lhe aconteceu sonhar
de cotovelos apoiados num desses tampos horríveis e acabar o dia num terceiro andar
de Campo de Ourique ou da Póvoa de Santo Adrião, a ouvir crescer a própria barba
nos serões vazios? Já sofreu a morte quotidiana de acordar todas as manhãs ao lado
de uma pessoa que mornamente se detesta? Irem os dois para o emprego no carro, olheirentos
de sono, pesados já de decepção e cansaço, ocos de palavras, de sentimentos, de
vida? Pois imagine que de repente, sem aviso, todo esse mundo em diminutivo,
toda essa teia de hábitos tristes, toda essa reduzida melancolia de pisa-papéis
em que neva lá dentro, em que neva monotonamente lá dentro, se evaporava, as raízes
que a prendem a resignações de almofada bordada desapareciam, os elos que a agarram
a pessoas que a aborrecem se quebravam e você acordava numa camioneta, não muito
confortável, é certo, e cheia de tropas, é verdade, mas circulando numa
paisagem inimaginável, onde tudo flutua, as cores, as árvores, os gigantescos
contornos das coisas, o céu abrindo e fechando escadarias de nuvens em que a
vista tropeça até cair de costas, como um grande pássaro extasiado». In
António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
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