quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Dan Brown. O Símbolo Perdido. «O prédio tinha até a sua própria virgem vestal: um funcionário público federal chamado guardião da cripta, que conseguiu manter a chama acesa por 50 anos, até a política, a religião e os danos causados pela fumaça apagarem a ideia»

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«Os olhos de Sato se estreitaram. Estamos na Rotunda do Capitólio dos Estados Unidos, professor, não em um altar sagrado dedicado a antigos segredos místicos.  Na verdade, minha senhora, disse Langdon, conheço um grande número de historiadores que iriam discordar.

Nesse mesmo instante, do outro lado da cidade, Trish Dunne estava sentada dentro do Cubo diante do brilho do telão de plasma. Terminou de preparar  seu spider de busca e digitou as cinco expressões-chave que Katherine havia lhe passado. Isso não vai dar em nada. Sentindo-se pouco optimista, ela accionou o spider, dando início por toda a rede. A uma velocidade estonteante, as expressões passaram a ser comparadas a textos espalhados pelo mundo todo... em busca de uma correspondência perfeita. Era inevitável que Trish se perguntasse qual era o sentido daquilo, mas ela já havia aprendido a aceitar que trabalhar para os Solomon significava nunca conhecer todos os factos.

Robert Langdon lançou um olhar ansioso para o seu relógio de pulso: 19h58. O rosto sorridente de Mickey Mouse não conseguiu alegrá-lo. Preciso encontrar Peter. Estamos perdendo tempo. Sato havia se afastado por alguns instantes para atender um telefonema, mas logo voltou para junto de Langdon. Professor, estou atrapalhando algum compromisso seu? Não, senhora, respondeu Langdon, tornando a cobrir o relógio com a manga do casaco. Só estou muito preocupado com Peter. Entendo, mas eu lhe garanto que o melhor que o senhor pode fazer por ele é me ajudar a entender a maneira de pensar do homem que o sequestrou.

Langdon não tinha tanta certeza disso, mas percebeu que não iria a lugar nenhum antes de a directora do ES conseguir a informação que desejava. Agora há pouco, disse Sato, o senhor sugeriu que a Rotunda é de certa forma sagrada segundo o conceito desses Antigos Mistérios. Isso mesmo, senhora. Explique para mim. Langdon sabia que teria de escolher com parcimónia as palavras. Havia passado semestres inteiros leccionando sobre o simbolismo místico de Washington e, só naquele prédio, a lista de referências místicas era quase interminável. Os Estados Unidos têm um passado oculto.

Sempre que Langdon dava alguma palestra sobre a simbologia dos Estados Unidos, seus alunos ficavam surpresos por descobrir que as verdadeiras intenções dos pais fundadores da nação não tinham absolutamente nada a ver com aquilo que tantos políticos agora afirmavam. O destino que se pretendia dar aos Estados Unidos se perdeu na história. O primeiro nome dado pelos pais fundadores à capital por eles edificada tinha sido Roma. Eles haviam baptizado seu rio de Tibre e construído uma capital clássica de panteões e templos, todos adornados com imagens de grandes deuses e deusas, Apolo, Minerva, Vênus, Hélios, Vulcano, Júpiter. No centro, como em muitas das grandes cidades clássicas, erigiram uma duradoura homenagem aos antigos, o obelisco egípcio. Esse obelisco, mais alto até do que os do Cairo ou de Alexandria, erguia-se 170 metros em direcção ao céu, maior que um prédio de 30 andares, proclamando gratidão e honra ao fundador semidivino ao qual aquela capital devia seu mais novo nome. Washington.

Agora, séculos mais tarde, apesar da separação entre Igreja e Estado no país, aquela Rotunda patrocinada pelo governo estava repleta de simbolismos religiosos antigos. Havia mais de uma dezena de deuses diferentes na Rotunda, mais do que no Panteão original de Roma. O Panteão romano, é claro, fora convertido ao cristianismo em 609... mas este panteão nunca havia sido convertido; vestígios de sua verdadeira história ainda permaneciam claramente visíveis.

Como a senhora deve saber, disse Langdon, esta Rotunda foi projectada como um tributo a um dos santuários místicos mais venerados de Roma. O Templo de Vesta. Das virgens vestais?, Sato parecia duvidar que as virginais guardiãs da chama de Roma tivessem algo a ver com o prédio do Capitólio norte-americano. O Templo de Vesta em Roma, disse Langdon, era circular e tinha um enorme buraco no chão, dentro do qual o fogo sagrado da iluminação era mantido por uma irmandade de virgens cuja tarefa era garantir que a chama jamais se apagasse. Sato deu de ombros. – Esta Rotunda é um círculo, mas não estou vendo nenhum buraco no chão. Não, agora não existe mais, porém durante anos o centro desta sala possuiu uma grande abertura justamente no lugar onde está a mão de Peter. Langdon gesticulou em direcção ao chão. Ainda é possível ver no piso as marcas deixadas pela grade que impedia as pessoas de caírem lá dentro. O quê?,  indagou Sato, examinando o chão. Eu nunca ouvi falar nisso. Parece que ele tem razão. Anderson apontou para o círculo de protuberâncias de ferro que marcava o local das antigas barras da grade. Eu já tinha visto esses negócios antes, mas não fazia a menor ideia do que eram ou para que serviam.

Você não é o único, pensou Langdon, imaginando os milhares de pessoas, incluindo famosos legisladores, que passavam pelo centro da Rotunda todos os dias sem saber que antigamente teriam caído dentro da Cripta do Capitólio, o nível logo abaixo da Rotunda. O buraco no chão, disse-lhes Langdon, acabou sendo coberto, mas, durante um bom tempo, os visitantes da Rotunda puderam ver através dele o fogo que ardia lá em baixo.

Sato se virou. Fogo? No Capitólio? Na verdade, era mais uma tocha grande, uma chama eterna que ardia na cripta logo abaixo de onde estamos. A ideia era que o fogo fosse visível pelo buraco, transformando esta sala em um moderno Templo de Vesta. O prédio tinha até a sua própria virgem vestal: um funcionário público federal chamado guardião da cripta, que conseguiu manter a chama acesa por 50 anos, até a política, a religião e os danos causados pela fumaça apagarem a ideia». In Dan Brown, O Símbolo Perdido, 2009, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-252-014-0.

Cortesia de BertrandE/JDACT

JDACT, Washington DC, Dan Brown, Literatura, Maçonaria,

domingo, 26 de novembro de 2023

Dan Brown. O Símbolo Perdido. «Se esse homem quer que o senhor localize algum tipo de portal para ele, por que simplesmente não lhe diz como encontrá-lo? Por que toda essa encenação? Por que lhe dar a mão tatuada de alguém?»

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«Com todo o respeito, minha senhora, todos nós já ouvimos falar na Fonte da Juventude e em Shangri-la, mas isso não significa que existam. O chiado alto do rádio de Anderson os interrompeu. Chefe?, disse a voz no rádio. Anderson arrancou o aparelho do cinto. Anderson falando. Senhor, já concluímos a busca do local. Ninguém aqui dentro corresponde à descrição. Mais alguma ordem, senhor? Anderson lançou um olhar rápido para Sato, claramente esperando uma reprimenda, mas a directora não parecia interessada. Ele se afastou um pouco dos dois, falando baixinho no rádio. Sato estava totalmente concentrada em Langdon. Está querendo dizer que o segredo que ele acredita estar escondido em Washington... é uma fantasia? Langdon assentiu.

Um mito muito antigo. Na verdade, o segredo dos Antigos Mistérios é anterior ao cristianismo. Tem milhares de anos. E mesmo assim continua vivo? Assim como várias crenças igualmente improváveis. Langdon muitas vezes lembrava a seus alunos que a maioria das religiões modernas incluía histórias que não resistiam ao escrutínio científico: desde Moisés abrindo o mar Vermelho até Joseph Smith usando óculos mágicos para traduzir o Livro de Mórmon a partir de uma série de placas de ouro que encontrou enterradas no norte do estado de Nova York. A aceitação generalizada de uma ideia não é prova de sua validade. Entendo. Então o que são exactamente esses... Antigos Mistérios? Langdon suspirou. A senhora tem algumas semanas? Resumidamente, os Antigos Mistérios se referem a um conjunto de conhecimentos secretos reunidos muito tempo atrás. Um dos aspectos intrigantes desse conhecimento é que ele supostamente permite àquele que o detém entrar em contacto com poderosas habilidades adormecidas dentro da mente humana. Os adeptos esclarecidos que possuíam esse conhecimento juraram mantê-lo escondido das massas, porque ele era considerado poderoso e perigoso demais para os não iniciados.

Perigoso de que forma? As informações foram ocultadas pelo mesmo motivo que mantemos fósforos fora do alcance das crianças. Nas mãos correctas, o fogo pode proporcionar luz... mas, nas mãos erradas, ele pode ser altamente destrutivo. Sato tirou os óculos e estudou Langdon. Diga-me, professor, o senhor acredita que essas informações poderosas possam realmente existir? Langdon não sabia ao certo como responder. Os Antigos Mistérios sempre tinham sido o maior paradoxo de sua carreira académica. Praticamente todas as tradições místicas da Terra giravam em torno da ideia de que havia um conhecimento misterioso capaz de dotar os seres humanos de poderes sobrenaturais, quase como os de um deus: o tarô e o I Ching davam ao homem a capacidade de ver o futuro; a alquimia, por sua vez, concedia a imortalidade graças à lendária pedra filosofal; a wicca permitia aos praticantes avançados conjurar poderosos feitiços. A lista não tinha fim.

Como académico, Langdon não podia negar o registo histórico dessas tradições, tesouros incalculáveis de documentos, artefactos e obras de arte que, de facto, sugeriam claramente que os antigos possuíam um poderoso saber que só compartilhavam por meio de alegorias, mitos e símbolos, garantindo assim que apenas os devidamente iniciados pudessem ter acesso aos seus poderes. Mesmo assim, sendo realista e céptico, Langdon ainda não estava convencido. Digamos apenas que eu sou um céptico, disse ele a Sato. Nunca vi nada no mundo real que sugerisse que os Antigos Mistérios são algo mais do que uma lenda, um arquétipo mitológico recorrente. Parece-me que, se fosse possível para os humanos adquirir poderes milagrosos, haveria provas disso. Mas até agora a história não nos deu nenhum homem com poderes sobre-humanos. Sato arqueou as sobrancelhas. Isso não é totalmente verdade.

Langdon hesitou ao perceber que, para muitas pessoas religiosas, havia de facto um precedente para deuses humanos, dos quais Jesus era o mais evidente. É verdade, disse ele, que muitas pessoas instruídas acreditam nesse conhecimento capaz de conferir poder, mas ainda não estou convencido. Peter Solomon é uma dessas pessoas?, perguntou a directora, olhando de relance para a mão no piso da Rotunda. Langdon não conseguiu se forçar a olhar novamente para a mão. Peter vem de uma família que sempre teve paixão por todo tipo de coisa antiga e mística. Então a resposta é sim?, indagou Sato. Posso garantir à senhora que, ainda que Peter acredite que os Antigos Mistérios sejam verdadeiros, ele não crê que seja possível acessá-los atravessando algum tipo de portal escondido em Washington. Ele entende o conceito de simbolismo metafórico, algo que evidentemente não se pode dizer de seu sequestrador. Sato aquiesceu.

Então o senhor acredita que esse portal é uma metáfora? É claro, disse Langdon. Pelo menos em teoria. É uma metáfora bem comum: um portal místico que se deve atravessar de modo a alcançar a iluminação. Portais e portas são constritos simbólicos recorrentes, que representam ritos de passagem transformadores. Procurar um portal literal seria como tentar localizar os verdadeiros Portões do Paraíso. Sato pareceu reflectir sobre a questão por alguns instantes. Mas me parece que o homem que sequestrou o Sr. Solomon acredita que o senhor é capaz de destrancar um portal de verdade. Langdon soltou o ar com força. Ele cometeu o mesmo erro de muito zelotes: confundir metáforas com realidade. De modo semelhante, os alquimistas primitivos se esforçaram em vão para converter chumbo em ouro sem nunca perceber que essa transformação nada mais era do que uma metáfora para a exploração do verdadeiro potencial humano: pegar uma mente obtusa, ignorante, e transmudá-la em uma mente brilhante e iluminada.

Sato gesticulou em direcção à mão. Se esse homem quer que o senhor localize algum tipo de portal para ele, por que simplesmente não lhe diz como encontrá-lo? Por que toda essa encenação? Por que lhe dar a mão tatuada de alguém? Langdon havia feito a mesma pergunta a si mesmo, e a resposta era perturbadora. Bem, parece que o homem com quem estamos lidando, além de mentalmente instável, é muito instruído. A mão é uma prova de que ele é versado nos Mistérios, assim como em seus códigos de confidencialidade. Sem mencionar seus conhecimentos relativos à história desta sala. Não estou entendendo. Tudo o que ele fez hoje à noite se encaixa perfeitamente nos protocolos antigos. Tradicionalmente, a Mão dos Mistérios é um convite sagrado, devendo, portanto, ser feito em um local igualmente sagrado».  In Dan Brown, O Símbolo Perdido, 2009, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-252-014-0.

 Cortesia de BertrandE/JDACT

 JDACT, Washington DC, Dan Brown, Literatura, Maçonaria, 

Dan Brown. O Símbolo Perdido. «No meu trabalho, nós aprendemos que a fronteira entre insanidade e genialidade é tênue. Seria sensato de nossa parte ter um pouco de respeito por esse homem. Ele cortou a mão de uma pessoa!»

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«A Directora Inoue Sato estava em pé, de braços cruzados, olhando com cepticismo para Langdon enquanto processava o que ele havia acabado de lhe dizer. Ele disse que quer que o senhor destranque um antigo portal? O que é que eu faço com essa informação, professor? Langdon deu de ombros, desanimado. Estava se sentindo mal novamente e tentou não baixar os olhos para a mão cortada do amigo. Foi exactamente isso que ele me falou. Um antigo portal... escondido em algum lugar na cidade, acho que neste prédio. Eu disse a ele que não sabia de portal nenhum.

Então por que é que ele acha que o senhor pode encontrá-lo? Evidentemente ele é louco. Ele disse que Peter iria apontar o caminho. Langdon baixou o olhar para o dedo esticado de Peter, sentindo-se novamente enojado pelo sádico jogo de palavras de seu captor. Peter apontará o caminho. Langdon já havia permitido que seus olhos seguissem a direcção do dedo, que indicava a cúpula. Um portal? Lá em cima? Loucura. Esse homem que me ligou, disse Langdon a Sato, é a única pessoa que sabia que eu estaria no Capitólio hoje à noite, então, quem quer que tenha informado à senhora que eu estava aqui é o principal suspeito. Eu recomendo... Não é da sua conta onde eu obtive minhas informações, interrompeu Sato, com a voz cada vez mais incisiva. Minha prioridade máxima neste momento é cooperar com esse homem, e eu tenho informações que sugerem que o senhor é o único capaz de dar o que ele quer. E a minha prioridade máxima é encontrar meu amigo, retrucou Langdon, frustrado. Sato respirou fundo, evidentemente se esforçando para não perder a paciência.

Se quisermos encontrar o Sr. Solomon, só temos um curso de acção possível, professor: começar a cooperar com a única pessoa que parece saber onde ele está. Sato verificou o relógio de pulso. Nosso tempo é limitado. Posso lhe garantir que é essencial atendermos rapidamente às exigências desse homem. Como?, perguntou Langdon, incrédulo. Localizando e destrancando um antigo portal? Não existe portal nenhum, directora Sato. Esse homem é maluco. Sato chegou mais perto, parando a menos de meio metro de Langdon. Permita-me observar... que o seu maluco já manipulou com habilidade dois indivíduos relativamente inteligentes hoje de manhã. Ela encarou Langdon e, em seguida, olhou de relance para Anderson. No meu trabalho, nós aprendemos que a fronteira entre insanidade e genialidade é tênue. Seria sensato de nossa parte ter um pouco de respeito por esse homem. Ele cortou a mão de uma pessoa! Justamente. Isso está longe de ser o comportamento de um indivíduo indeciso ou hesitante. Mais importante ainda, professor, esse homem obviamente acredita que o senhor pode ajudá-lo. Ele o trouxe até Washington e deve ter feito isso por um motivo. Ele falou que o único motivo pelo qual pensa que eu posso destrancar esse portal é que Peter lhe disse que eu poderia fazer isso, rebateu Langdon.

E por que Peter Solomon diria isso se não fosse verdade? Tenho certeza de que Peter não falou nada disso. E, se falou, ele o fez sob pressão. Estava confuso... ou amedrontado. Sim. Isso se chama interrogatório sob tortura e é bastante eficaz. Mais razão ainda para o Sr. Solomon dizer a verdade. Sato falava como se conhecesse a técnica por experiência própria. Ele explicou por que Peter acha que só o senhor pode destrancar o portal? Langdon fez que não com a cabeça. Professor, se a sua reputação estiver correcta, então o senhor e Peter Solomon compartilham um interesse por este tipo de coisa: segredos, factos históricos esotéricos, misticismo e assim por diante. Em todas as suas conversas com Peter, ele nunca mencionou sequer uma vez nada sobre algum portal secreto aqui em Washington?

Langdon mal podia acreditar que uma alta funcionária da CIA estava lhe fazendo uma pergunta dessas. Tenho certeza que não. Peter e eu conversamos sobre coisas bem misteriosas, mas pode acreditar: se ele algum dia me dissesse que existe um antigo portal escondido em qualquer lugar, eu o mandaria procurar um médico para ver se estava tudo bem com a sua cabeça. Ainda mais um portal que conduz aos Antigos Mistérios. Ela ergueu os olhos. Como assim? O homem lhe disse especificamente aonde este portal pode levar? Disse, mas não precisava. Langdon indicou a mão com um gesto. A Mão dos Mistérios é um convite formal para se atravessar um portal místico e obter conhecimentos secretos ancestrais, um poderoso saber conhecido como Antigos Mistérios... ou o saber perdido de todas as épocas. Então o senhor já ouviu falar no segredo que ele acredita estar escondido aqui. Muitos historiadores já ouviram. Então como o senhor pode dizer que o portal não existe?» ». In Dan Brown, O Símbolo Perdido, 2009, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-252-014-0.

Cortesia de BertrandE/JDACT

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Dan Brown. O Símbolo Perdido. «O meu software não é diferente de, digamos, um simulador de voo. Alguns vão usá-lo como treino para missões aéreas de primeiros socorros em países subdesenvolvidos»

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«É, eu sei que parece loucura. O que estou querendo dizer é que ele quantifica o estado emocional do país. Proporciona uma espécie de barómetro da consciência cósmica, se preferir. Trish explicou como, usando um campo de dados constituído pelas comunicações do país, era possível avaliar o humor da nação com base na densidade de ocorrência de determinadas palavras-chave e indicadores emocionais no campo de dados. Épocas mais felizes tinham uma linguagem mais feliz, e épocas de stress tinham uma linguagem mais stressada. Em caso de atentado terrorista, por exemplo, o governo poderia usar os campos de dados para estimar a mudança na psique dos Estados Unidos e informar melhor o presidente sobre o impacto emocional do acontecimento.

Fascinante, comentou Katherine acariciando o queixo. Então você está basicamente examinando uma população de indivíduos... como se eles fossem um organismo único. Exacto. Um metassistema. Uma entidade única definida pela soma de suas partes. O corpo humano, por exemplo, é constituído por milhões de células individuais, cada qual com atribuições e finalidades diferentes, mas funciona como uma entidade única. Katherine aquiesceu, animada. Como um bando de pássaros ou um cardume que se move como se fosse uma coisa só. Nós chamamos isso de convergência ou de entrelaçamento.

Trish sentiu que a sua convidada famosa estava começando a perceber o potencial da programação de metassistemas e sua aplicabilidade no campo da ciência noética. O meu software, explicou Trish, foi criado para ajudar as agências governamentais a avaliar melhor e reagir de maneira apropriada a crises em grande escala: pandemias, tragédias nacionais, terrorismo, esse tipo de coisa. Ela fez uma pausa. É claro que nada impede que ele possa ser usado para outras coisas... talvez para capturar o estado de espírito do país em um dado momento e prever o desfecho de uma eleição presidencial ou a direcção em que o mercado de acções vai oscilar quando o pregão abrir.

Parece uma ferramenta poderosa. Trish fez um gesto indicando sua casa. O governo, pelo menos, achou. Então, os olhos cinzentos de Katherine se fixaram em Trish. Você se importa que eu pergunte sobre o dilema ético gerado pelo seu trabalho? Como assim? Quer dizer, você criou um software que pode facilmente ser usado para fins escusos. Quem quer que o detenha possui acesso a informações poderosas que não estão disponíveis para todo o mundo. Você não ficou preocupada ao criá-lo? Trish nem sequer pestanejou.

De jeito nenhum. O meu software não é diferente de, digamos, um simulador de voo. Alguns vão usá-lo como treino para missões aéreas de primeiros socorros em países subdesenvolvidos. Outros, para aprender a jogar aviões de passageiros contra arranha-céus. O conhecimento é uma ferramenta e, como todas as ferramentas, seu impacto está nas mãos do usuário. Katherine se recostou na cadeira, parecendo impressionada. Então deixe-me lhe fazer uma pergunta hipotética. De repente, Trish percebeu que a conversa havia se transformado em uma entrevista de emprego.

Katherine estendeu o braço e recolheu um minúsculo grão de areia do piso da varanda, erguendo-o para Trish ver. O que me parece, disse ela, é que, basicamente, seu trabalho sobre metassistemas permite calcular o peso de toda a areia de uma praia, pesando um grão de cada vez. Basicamente, é isso mesmo. Como você sabe, este grãozinho de areia tem uma massa. Muito pequena, mas mesmo assim uma massa. Trish aquiesceu. E justamente pelo facto de este grão de areia ter uma massa, ele exerce uma força de gravidade. Ela também é pequena demais para ser sentida, mas existe. Certo. Então, disse Katherine, se nós pegarmos trilhões de grãos de areia como este e deixarmos que atraiam uns aos outros para formar, digamos, a lua, a força de gravidade combinada deles será suficiente para mover oceanos inteiros e fazer subir e descer as marés por todo o nosso planeta.

Trish não sabia aonde Katherine pretendia chegar, mas estava gostando do que ouvia. Então vamos elaborar uma hipótese, falou Katherine, descartando o grão de areia. E se eu dissesse a você que um pensamento, qualquer ideia minúscula que se forme na sua mente, possui uma massa? E se eu lhe dissesse que um pensamento é uma coisa de verdade, uma entidade mensurável, com uma massa mensurável? Minúscula, é claro, mas ainda assim uma massa. Quais seriam as implicações disso?

Hipoteticamente falando? Bem, as implicações óbvias seriam: se um pensamento tem massa, então ele exerce uma força de gravidade e pode atrair coisas para si. Katherine sorriu. Você é boa. Agora avance mais um passo. O que acontece se muitas pessoas começam a se concentrar no mesmo pensamento? Todas as ocorrências desse mesmo pensamento passam a se consolidar em uma só, e a massa acumulada dele começa a aumentar. Portanto, sua gravidade aumenta. Certo. O que significa que... se um número suficiente de pessoas começar a pensar a mesma coisa, então a força gravitacional dessa ideia se torna tangível e exerce uma força de verdade. Katherine deu uma piscadela. E ela pode ter um efeito mensurável no nosso mundo físico». In Dan Brown, O Símbolo Perdido, 2009, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-252-014-0.

Cortesia de BertrandE/JDACT

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O Segredo da Descoberta Portuguesa das Américas. José Gomes Ferreira. «Cruzando as duas coordenadas, longitude e latitude, somos forçados a concluir que o território chamado Cipango é, nada mais nada menos, do que... a Florida»

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«Já longe iam os anos em que ainda vigorava a concepção de Ptolomeu sobre o oceano Índico como um mar fechado, um lago gigante cercado de terra, com a ponta sul de Africa falsamente ligada a uma hipotética terra alongada desde o sul da Ásia. olhando para o canto superior direito do mapa de Henricus Martellus de 1490-1491, pode ver-se representada uma ilha de dimensões enormes, baptizada pelo autor como Cipango (Japão). Há, no entanto, um problema em relação a esta ilha de Cipango, se for considerada como uma representação do Japão: está situada muito longe das costas da então Catai, a China, em pleno oceano, a mais de meia distância da Ásia para a Europa.

O mapa mostra um grande oceano a leste da Ásia, o Pacífico, como se este estivesse fundido com o Atlântico e, no meio dos dois, uma estranha ilha cujo formato e localização não pode ser o verdadeiro Japão. Se o fosse, teria de estar muito mais próximo da Ásia. Na verdade, a ilha de Cipango do mapa de Henricus Martellus está a apenas um terço de distância da Europa e a mais de dois terços da Ásia.

Em resumo, por mais que se tente forçar a comparação, as coordenadas geográficas deste território não podem ser as mesmas do verdadeiro Japão. Se seguirmos a escala de longitude desenhada no friso inferior do mapa de Henricus Martellus, transpondo os valores para a escala moderna que tem o meridiano de Greenwich como o ponto de partida e de chegada, 0/360 graus, verificamos que a Cipango está situada entre os 75 e os 80 graus de longitude oeste, em relação à Europa Ocidental.

Considerando a escala das latitudes à direita, bem como as linhas do Trópico de Câncer e do Equador, vemos que a grande ilha de Cipango está posicionada na direção noroeste-sueste, sensivelmente entre os 15 e os 30 graus de latitude norte.

Cruzando as duas coordenadas, longitude e latitude, somos forçados a concluir que o território chamado Cipango é, nada mais nada menos, do que... a Florida.

Olhando agora para um planisfério moderno, podemos imediatamente verificar que as coordenadas da península americana da Florida são as seguintes:

- Entre 25 e 30 graus de latitude norte;

- Entre 78 e 80 graus de longitude oeste;

Tamanha semelhança entre o posicionamento da Cipango de Henricus Martellus e da Florida dos mapas modernos não pode ser pura coincidência. Mas há mais características comparáveis entre os dois territórios. Desde logo, o formato e o contorno das costas são surpreendentemente idênticos.

Para uma detalhada visualização destas semelhanças, pedimos agora ao leitor para ampliar a imagem de Cipango do mapa de 1490. A melhor ferramenta informática para o fazer está disponível num artigo publicado no sítio da National Geographic Magazine, intitulado A 500 year old map used by Columbus reveals its secrets, acessível através do seguinte link: https://www.nationalgeographic.com/culture/article/columbus-map-discovery-secrets-newwold

Uma vez no artigo, peço ao leitor que, quando chegar à frase: …you can play around with an interactive map created by one of Van Duzer's colleagues, clique na palavra here. O leitor acede imediatamente ao mapa interactivo de Henricus Martellus de 1490-1491., que é fruto de uma investigação aprofundada de Chet Van Duzer, professor universitário e investigador da Biblioteca do Congresso dos EUA, e da sua equipa. Graças a esse trabalho, é possível ampliar ou reduzir as partes do mapa que se desejar.

Ora, quando se amplia o território de Cipango, a imagem que se obtém é a que se pode observar na página 24 deste livro. Como facilmente se verifica, são surpreendentes as semelhanças entre o mapa desenhado há mais de meio milénio por Henricus Martellus e a actual imagem da Florida no Google Maps. Estas semelhanças entre os dois mapas existiriam contra todas as probabilidades se ambos não fossem duas representações do mesmo território e das mesmas costas situadas no mesmo mar das Caraíbas». In José Gomes Ferreira, O Segredo da Descoberta Portuguesa das Américas, Oficina do Livro, chancela LrYa, 2022, ISBN 978-989-661-557-4.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

JDACT, José Gomes Ferreira, História, Conhecimento, Caso de Estudo, Literatura,

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Hipátia de Alexandria. José Petrúcio F. Júnior. «Até meados da década de 80, muitos historiadores, entre eles T.S. Eliot, (1944), Bernard Knox, em (1994) e Allan Bloom em (1987), viam a liberdade de criação da indústria cinematográfica com certa indignação e desprezo pela literatura clássica…»

Cortesia de wikipedia

Prefácio

«Como salienta Winkler (2005, p. 688), nevertheless, it is the cinema

and its offshoot, television, that today keep the Homeric epics before the eyes of millions worldwide, if often in rather loose adaptations. Em 2007, na esteira do impacto do filme Troia sobre a academia, Winkler publica a coletânea Troy. From Homer’s Iliad to Hollywood Epic (Oxford, Blackwell), com seu texto Iliad and the cinema, cujas questões escolhidas para analisar sinalizam possibilidades metodológicas para este campo emergente de estudos e reflexões, apontando a importância de se estudar a presença no cinema de temas extraídos/oriundos do universo da Antiguidade.

De certo modo, é de se prever que, do outro lado da trincheira, a renovação do olhar da academia sobre o que a sétima arte anda fazendo na sua recepção e usos da Antiguidade gere também um novo contexto para o produzir e dirigir filmes inspirados na Antiguidade. E é neste contexto que, em 2009, estreia o filme Agora, do cineasta chileno-espanhol Alejandro Amenábar, até então conhecido por suas produções no género do terror, trazendo agora para a tela sua leitura da vida da matemática, filósofa neoplatónica e professora Hipátia de Alexandria.

Excelente produção, não exerceu tanto impacto sobre o grande público, mas, inversamente, foi acolhida com muito interesse pela academia, visto trazer no bojo da sua narrativa questões muito contemporâneas, como a agência feminina e a intolerância cultural, temas hoje ainda mais actuais e pungentes que à época do lançamento do filme. José Petrúcio Farias Júnior é um historiador atento a diferentes liames entre o presente e a Antiguidade, entre o Brasil e Grécia & Roma. Não em um sentido passivo de um legado grandioso e civiliza tório que se imponha sobre nós, como herança a ser louvada como algo superior a outras vertentes histórico-culturais. Mas sim no sentido da presença da Antiguidade, que não ocorre por uma passividade do presente, ou de um Brasil colonizado. Ocorre por meio de contínuos processos de reinvenção do Antigo, pelos vários presentes que se sucedem em vários lugares, processo que vai acontecendo ao longo de inúmeras camadas de tempo. José Petrúcio encara a complexidade destes processos, abdicando de uma compreensão superficial destes fenómenos de presença do Antigo.

Em sua primeira obra, como já sugere seu título,  História Antiga: trajetórias, abordagens e metodologias de ensino,  ele analisa em profundidade diacrónica como se desenvolveu em nosso país, desde o período colonial, o ensino da História Antiga. Partindo desta erudição necessária ao trato aprofundado do tema, o autor encara debates contemporâneos,  muitas vezes bastante acalorados, com referência aos comos e porquês do ensinar História em nosso país. Trata-se de um historiador jovem, pertencente a uma nova geração de investigadores  preocupada em se perguntar,  e também responder  sobre por que se pesquisar e ensinar hoje e no Brasil a História Antiga. Em sua primeira obra, a questão do cinema já estava apontada como uma das possibilidades metodológicas. E é amarrando com esse ponto que inicia e conclui sua segunda obra, Hipátia de Alexandria: história e cinema.

José Petrúcio inicia com o debate sobre as abordagens teórico-metodológicas para se tratar um filme como fonte histórica, para tanto analisando também como a narrativa fílmica, pela síntese operada pelo director, dá voz a múltiplas vozes que discorrem sobre o assunto narrado, da Antiguidade, da tradição historiográfica moderna, assim como de outras influências recentes ou antigas. Mas o cineasta tudo isto mistura de acordo com um modo seu de narrar o passado partindo de como, para ele, este passado permite ver questões pungentes da sociedade do presente, não sendo preocupação ou sequer dever seu, como cineasta, a mesma sorte de compromissos que guiam a actuação do historiador, do arqueólogo ou do filólogo na sua relação com a Antiguidade. (…)

O Cinema e os Estudos Clássicos

O sucesso de Gladiador (2000), por Ridley Scott, e das minisséries Roma (2005-2007), pela HBO, Spartacus (2004), pela Starz, e Helena de Troia (2003), por Kent Harrison, energizaram os estudos sobre a Antiguidade Clássica, especialmente no tocante à sua recepção pelo cinema, o que tem oportunidade aos historiadores da Antiguidade mais um tipo de fonte histórica para análise. Sob essa óptica, para Kirsten Day, nas quatro últimas décadas, o estudo sobre as representações da Antiguidade em produções cinematográficas têm crescido em várias subáreas dos estudos clássicos e é actualmente reconhecida como uma forma legítima de explorar e questionar a construção de um passado clássico em diálogo com demandas de nosso tempo..

Até meados da década de 80, muitos historiadores, entre eles T.S. Eliot, em What is a Classic? (1944), Bernard Knox, em Backing into the Future: the Classical Tradition and its Renewal (1994) e Allan Bloom em The Closing of the America Mind (1987), viam a liberdade de criação da indústria cinematográfica com certa indignação e desprezo pela literatura clássica e pelos esforços investigativos dos estudos clássicos na Academia, para quem a popularidade crescente dos filmes históricos sobre a Antiguidade, em vez de valorizar e fomentar os estudos clássicos, empobrecia-os (Wyke, 1997)». In José Petrúcio F. Júnior, Hipátia de Alexandria, 2022, RFB Editora, 2022 ISBN 978-655-889-6.

Cortesia de RFBEditora/JDACT

JDACT, Hipátia de Alexandria, Matemática, Filósofa, Conhecimento, Antiguidade,

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Hipátia de Alexandria. José Petrúcio F. Júnior. «… como mulher, como filósofa, como professora e como pagã (termo cristianocêntrico preconceituoso, a se evitar, que designava alguém que não havia aderido ao cristianismo e seguia fiel à cultura clássica)»

Cortesia de wikipedia

 Prefácio

«Apresento-lhes aqui um livro muito original, muito bem escrito, de leitura agradável, que combina a erudição clássica ao compromisso com as agendas progressistas actuais. O autor trata de um filme com temática histórica e de seus possíveis usos em sala de aula, analisando várias camadas da memória e da recepção do seu personagem central, uma figura aparentemente excepcional na História, a matemática e filósofa neoplatónica Hipátia de Alexandria (360 - 415). Digo aparentemente, porque o autor se incumbe de nos mostrar o quanto ela como mulher filósofa e professora não é um fenômeno único em seu tempo, apesar de invisibilizado pela visão masculina da História.

Mesmo que até ao momento não disponhamos de nenhum texto de autoria de Hipátia, sabem-se vários aspectos de sua biografia e de seu pensamento, pois há referências a ela em seus contemporâneos e pósteros dirextos; daí se podem inferir sentidos sobre ela e sobre o contexto em que actuou, como mulher, como filósofa, como professora e como pagã (termo cristianocêntrico preconceituoso, a se evitar, que designava alguém que não havia aderido ao cristianismo e seguia fiel à cultura clássica). Por si só, um filme sobre a biografia de uma mulher com protagonismo intelectual na Antiguidade, ao evocar o tema da agência feminina, já justifica interesse pela sua suma actualidade. Diante disto, José Petrúcio Farias Junior, movido pelo potencial uso deste filme em sala de aula, desenvolve um estudo aprofundado sobre como pensar as relações entre cinema e história, e sobre como compreender a forma específica como o filme Agora constrói uma narrativa própria, que é bem estudada, bem informada, mas faz suas escolhas, frente aos factos e frente às interpretações propostas pela tradição.

A partir de finais dos anos 80, com a vulgarização das fitas VHS, dos aparelhos videocassete e das videolocadoras, torna-se acessível ao ensino uma nova possibilidade: o uso em sala de aula do cinema, seja de documentários ou de filmes históricos ou ficcionais. Isso estimulou muitos a pensarem sobre aspectos variados que suscita o uso de episódios históricos pelo cinema, primeiro, como ferramenta didáctico-pedagógica, depois, na perspectiva do que chamamos estudos da recepção ou dos usos da Antiguidade. Nas escolas e universidades, integraram-se à rotina académica os debates sobre algum filme histórico.

Entretanto, certo vício rançoso vindo da torre de marfim em que se encastelava boa parte do mundo académico levou a que esses debates fossem dominados pela crítica contumaz ao género, ao se identificarem os seus erros, e a academia se via na posição de dar o veredicto quanto a estes filmes: seriam melhores ou piores a depender da sua fidelidade à história, se estes filmes abordavam a história e os textos clássicos de modo certo ou errado.

Em 2000, estoura nas bilheterias o filme Gladiador, dirigido por Ridley Scott, tendo o imperador romano Cómodo como personagem central. Este filme, sucesso nas bilheterias, teve também um grande impacto sobre os estudos da História Antiga, levando muitos investigadores a reverem sua postura diante das potencialidades abertas pelo uso cinematográfico da Antiguidade. Isto leva ao surgimento propriamente dito de um novo flanco de estudos e reflexões sobre a Antiguidade, que de certo modo se acomoda no campo já existente dos estudos de recepção, porém alargando-o e talvez até extrapolando-o, dada a quantidade de questões novas que se começaram a colocar, ao ponto de Joanna Paul (2005, p. 688) considerar que a interface entre os estudos clássicos e o cinema desponta no início deste século como líder no campo dos estudos de recepção.

Exemplo da ampliação deste debate é Gladiator: Film and History (Oxford: Blackwell), colectânea de 2004 organizada por Martin Winkler, pesquisador seminal na renovação do olhar académico sobre a Antiguidade no cinema. Em Maio deste mesmo ano, em que Winkler publica a colectânea Gladiator, ocorre o lançamento de Troia, de Wolfgang Peterson, em um momento em que entre a comunidade de pesquisadores classicistas muitos ainda persistem no ranço filológico de refutar o mérito das leituras e recriações fílmicas da Antiguidade, mas não são poucos os que estão agora com a mente mais aberta a perceber o papel arrebatador do cinema na disseminação da cultura clássica». In José Petrúcio F. Júnior, Hipátia de Alexandria, 2022, RFB Editora, 2022 ISBN 978-655-889-6.

Cortesia de RFBEditora/JDACT

JDACT, Hipátia de Alexandria, Matemática, Filósofa, Conhecimento, Antiguidade,

Idade Média. Umberto Eco. «… finge sempre comentar e explicar o que já foi dito antes dele, e provavelmente acredita nisso, pois admite que a autoridade tem um nariz de cera que pode ser virado em todas as direcções»

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Em que sentido a Idade Média foi radicalmente diferente dos nossos tempos

«Esta divindade inacessível não nos fala, portanto, directamente, mas por símbolos, ou seja, por aspectos do mundo natural que, embora incompletamente, nos remetem para a sua origem, de modo que o mundo parece (como sugere Hugo de São Vítor) um imenso livro escrito pelo dedo de Deus e onde, segundo Ricardo de São Vítor, todos os corpos visíveis manifestam alguma semelhança com os bens invisíveis. Ler o mundo como reunião de símbolos é o melhor modo de pôr em prática o ditame dionisíaco e de poder elaborar e atribuir nomes divinos (e com eles moralidades, revelações, regras de vida, modelos de conhecimento). E João Escoto Eriúgena dissera, em chave neoplatónica, que não há nenhuma coisa visível e corpórea que não signifique alguma coisa invisível e incorpórea (De Divisione Naturæ).

A segunda fonte é de origem escritural e tem a sua mais extensa teorização em Agostinho. Se videmus nunc per speculum et in ænigmate, enigmático será também o discurso das Escrituras. E não só no sentido de que as Sagradas Escrituras usam metáforas e outras expressões figuradas, mas também que os próprios factos que narram não devem, muitas vezes, ser tomados à letra, mas como sinais de uma realidade ou preceito superior. Ora, visto que alguns factos de que falam as Escrituras, como, por exemplo, os pormenores do nascimento de Jesus ou da sua Paixão, são, certamente, tomados à letra, Agostinho põe o problema de saber que factos não têm valor literal mas alegórico, e fornece algumas regras para a identificação desses casos: os factos significam outra coisa quando parecem contradizer as verdades da fé ou os bons costumes, quando a Escritura se perde em superfluidades ou põe em jogo expressões literalmente pobres, quando se detém excessivamente na descrição de alguma coisa sem que vejamos as razões de tão grande insistência na descrição. Enfim, têm certamente um segundo sentido as expressões semanticamente pobres como os nomes próprios, os números e os termos técnicos.

Mas se a Bíblia fala por personagens, objectos e acontecimentos; se nomeia flores, prodígios da natureza ou pedras, se põe em jogo subtilezas matemáticas, convirá procurar no saber tradicional qual é o significado daquela pedra, daquela flor, daquele monstro ou daquele número. E eis porque depois de Agostinho a Idade Média começa a elaborar as suas enciclopédias, para definir com base na tradição as regras da atribuição de um significado figural a qualquer elemento do mobiliário do mundo físico. Deste modo, até os sátiros e os ciápodes adquirem significado espiritual e, admitindo que nunca seriam encontrados, também teriam significado espiritual os animais, as plantas e as pedras do bestiário, do herbário e do lapidário quotidianos.

Estas enciclopédias tratam (para definir as matérias em termos contemporâneos) dos céus, de geografia, demografia e etnografia, de antropologia e fisiologia humana, de zoologia, botânica, agricultura, jardinagem, farmacopeia natural, medicina e magia, mineralogia, arquitectura e artes plásticas. Mas uma característica, que as distingue das enciclopédias modernas, é não pretenderem registar o que realmente existe, mas aquilo que tradicionalmente se considera existir (dando igual espaço ao crocodilo e ao basilisco). Eis, pois, como o homem medieval vive num cosmo falante, disposto a escutar a palavra de Deus até no marulhar de uma folha.

Mas não há uma Idade Média única, como está dito, e entre os séculos XII e XIII, pelo menos nas universidades, esta visão simbólica do mundo acaba por se debilitar e abre espaço, pouco a pouco, a explicações mais naturalistas. No entanto, o que torna difícil distinguir uma Idade Média de outra é que o filósofo que tentava ler a natureza segundo a filosofia aristotélica podia consultar velhos manuscritos ou livros de orações que tinham nas margens imagens de criaturas lendárias, e nenhum, na verdade, nos diz se no seu íntimo ainda as tomava a sério. Por outro lado, não são raros nos nossos dias os homens de ciência que, fora dos seus laboratórios, mandam ler a sina na palma da mão ou vão assistir a sessões de espiritismo.

A Idade Média tem uma ideia da tradição e da inovação diferente da nossa. Como se verá, considera que somos anões aos ombros de gigantes, isto é, que vemos algo mais do que os nossos predecessores, mas só porque nos baseamos no seu discurso precedente. Neste sentido, o autor medieval, que não raro inova, e frequentemente de modo radical, finge sempre comentar e explicar o que já foi dito antes dele, e provavelmente acredita nisso, pois admite que a autoridade tem um nariz de cera que pode ser virado em todas as direcções. De qualquer modo, outro dito que expõe estes procedimentos é non nova sed nove: o autor presume e assume sempre que não diz nada de diferente da tradição, apenas o diz de maneira diferente. De uma maneira geral, quando diz que uma coisa é autêntica, o autor medieval não está a falar em sentido filológico, como fazemos hoje (um documento só é autêntico quando se prova que foi realmente produzido por aquele a quem é atribuído), mas que isso significa que algo é verdadeiro. Portanto, para o medieval é autêntica a interpretação que afirma aquilo que o intérprete considera verdadeiro». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Idade Média. Umberto Eco. «… o homem medieval atribui um significado místico a todos os elementos do mobiliário do mundo: pedras, plantas, animais. As justificações filosóficas desta atitude têm, basilarmente, duas origens. Uma é de origem neoplatónica…»

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O que a Idade Média nos Deixou

«Finalmente, é nos últimos decénios da Idade Média que aparece no Ocidente a pólvora de tiro (provavelmente já conhecida dos chineses, que a utilizavam para efeitos pirotécnicos). Tudo muda na arte da guerra, e 18 anos antes do fim oficial da Idade Média, perante a nova invenção do arcabuz, Ludovico Ariosto cantará:

Come trovasti, scellerata e brutta

invenzion, mai loco in alcun core?

Per te la militar gloria è distrutta:

per te il mestier de l’arme è senza onore;

per te il valore e la virtù ridutta

che spesso par del buono il rio migliore;

non più la gagliardia, non più l’ardire,

per te può in campo al paragon venire (Orlando furioso, XI, 26)

E assim começa verdadeiramente, sob tão terrível agoiro, a obscura Idade Moderna.

Em que sentido a Idade Média foi radicalmente diferente dos nossos tempos

A Idade Média elaborou não só uma constante tensão para o Além mas também um sentimento visionário do mundo terreno e da natureza. O homem medieval via o mundo como uma floresta cheia de perigos, mas também de revelações extraordinárias, e a Terra como uma extensão de regiões remotas povoadas por seres esplendidamente monstruosos. Extraía estas fantasias dos textos clássicos e de inúmeras lendas, e acreditava firmemente que o mundo estava povoado por cinocéfalos com cabeça de cão, ciclopes com um olho único no meio da testa, blémies sem cabeça e com a boca e os olhos no peito e criaturas com um lábio inferior tão proeminente que ao dormir cobrem com ele toda a cara para defender-se do ardor do sol; por seres com uma boca tão pequena que comem por um buraquinho utilizando caules de aveia, e por panotos com orelhas tão grandes que podem cobrir com elas todo o corpo; por atacantes que caminham inclinados para o chão como as ovelhas e sátiros com nariz adunco, chifres na testa e pés de cabra, ou por ciápodes, só com um pé que lhes serve de guarda-sol quando se deitam de costas no chão, por causa do calor do sol.

Tudo isto e muito mais (baleias em forma de ilha, onde São Brandão aproava ao navegar em mares remotos, os reinos da longínqua Ásia, onde abundavam pedras preciosas, e muitas outras fantasias), constituía o repertório do maravilhoso medieval. Se fosse só isto, estas maravilhas não seriam diferentes das que haviam fascinado a Antiguidade e o período helenístico. Mas a Idade Média consegue traduzir grande parte deste repertório do maravilhoso em termos de revelação espiritual. Talvez nunca alguém tenha exprimido melhor este aspecto da psicologia medieval do que Johan Huizinga, no seu Outono da Idade Média: A grande verdade do espírito medieval está contida nas palavras de São Paulo aos coríntios: Videmus nunc per speculum et in ænigmate, tunc autem facie ad

faciem (agora vemos obscuramente como por um espelho, mas, então, veremos directamente). A Idade Média nunca esquece que qualquer coisa será absurda se o seu significado se limitar à sua função imediata e à sua forma fenoménica, e que todas as coisas se estendem em grande parte pelo Além. Esta ideia é-nos também familiar, como sensação não formulada, quando, por exemplo, num momento de tranquilidade, o ruído da chuva nas folhas das árvores ou a luz da lâmpada em cima da mesa nos dão uma percepção mais profunda do que a percepção do dia a dia que serve para a actividade prática. Pode, por vezes, aparecer na forma de uma opressão doentia que nos leva a ver as coisas como se impregnadas de uma ameaça pessoal ou de um mistério que deveríamos conhecer mas que não pode ser conhecido. Mais frequentemente, porém, enche-nos da tranquila e confortante certeza de que também a nossa existência participa neste sentido secreto do mundo.

O homem medieval vivia, de facto, num mundo cheio de significados, referências, espíritos, manifestações de Deus nas coisas, e numa natureza que falava continuamente uma linguagem heráldica, em que um leão não era só um leão, uma noz não era só uma noz e um hipogrifo era tão real como um leão porque era, como ele, um sinal, existencialmente insignificante, de uma verdade superior, e o mundo inteiro parecia um livro escrito pelo dedo de Deus.

Já se falou de situação neurótica, mas no fundo era uma atitude que prolongava a actividade mitopoética do homem clássico elaborando novas figuras e referências em harmonia com o ethos cristão, reavivando por meio de uma nova sensibilidade ao sobrenatural aquele sentido do maravilhoso que o classicismo tardio já tinha perdido há muito, ao substituir os deuses de Homero pelos deuses de Luciano.

Neste sentido, o homem medieval atribui um significado místico a todos os elementos do mobiliário do mundo: pedras, plantas, animais. As justificações filosóficas desta atitude têm, basilarmente, duas origens. Uma é de origem neoplatónica (e o neoplatonismo influencia grandemente o pensamento medieval, ainda que por fontes frequentemente de segunda mão como Pseudo-Dionísio, o Areopagita). É o próprio Pseudo-Dionísio que, ao colocar o problema dos nomes divinos e, portanto, de como se pode definir e representar Deus, diz que a divindade longínqua, incognoscível e não nomeável é bruma luminosíssima do silêncio que ensina misteriosamente… treva luminosíssima… não é um corpo nem uma figura nem uma forma e não tem quantidade nem qualidade nem peso, não está num lugar, não vê, não tem um tacto sensível, não sente nem cai sob a sensibilidade… não é alma nem inteligência, não possui imaginação ou opinião, não é número nem ordem nem grandeza… não é substância nem eternidade nem tempo… não é treva nem é luz, não é erro e não é verdade, e assim por diante ao longo de páginas e páginas de fulgurante afasia mística (De Mystica Theologia)». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

 Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,  

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Umberto Eco. Idade Média. «… há quem mencione Salvino degli Armati, em 1317, e quem recue até ao século XIII, com Fra Alessandro della Spina), de uma coisa que desde então se não tem modificado muito: os óculos…»

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O que a Idade Média nos Deixou

«Ainda hoje usamos, em grande parte, a herança desta época. Embora conhecendo já outras fontes de energia, ainda usamos os moinhos movidos pela água ou pelo vento, já conhecidos dos antigos, na China e na Pérsia, mas que só depois do ano 1000 são introduzidos e aperfeiçoados no Ocidente. E parece que deste legado se deve fazer bom uso agora que, com a crise do petróleo, se reconsidera seriamente a energia eólica. A Idade Média aprende muito da medicina árabe, mas em 1316 Mondino de Liuzzi publica o seu tratado de anatomia e efectua as primeiras dissecções anatómicas de corpos humanos, dando início à ciência anatómica e à prática cirúrgica no sentido moderno do termo.

As nossas paisagens ainda estão consteladas de abadias românicas e as nossas cidades conservam catedrais góticas onde os devotos ainda hoje vão assistir às cerimónias religiosas. A Idade Média inventa as liberdades comunais e um conceito de livre participação de todos os cidadãos nos destinos da cidade, e ainda hoje as autoridades citadinas residem nos palácios destas comunas. Nestas mesmas cidades, surgem as universidades: a primeira aparece, se bem que em forma embrionária, no ano de 1088 em Bolonha; é a primeira vez que uma comunidade de professores e estudantes, com os primeiros na dependência económica dos segundos, se constituiu fora do poder do Estado ou da Igreja.

Nascem nestas mesmas cidades várias formas de economia mercantil e nelas têm origem a banca, a carta de crédito, o cheque e a letra de câmbio. Mas são inúmeras as invenções medievais que nós ainda hoje usamos como se fossem coisas do nosso tempo: a chaminé, o papel (que substituiu o pergaminho), os algarismos árabes (adoptados no século XIII com o Liber Abaci, de Leonardo Fibonacci), a contabilidade por partidas dobradas e, com Guido d’Arezzo, os nomes das notas musicais, e há quem mencione ainda os botões, as cuecas, as camisas, as luvas, as gavetas dos móveis, as calças, as cartas de jogar, o xadrez e os vitrais. É na Idade Média que se começa a comer sentado à mesa (os romanos comiam reclinados em leitos) e a usar garfo; e é também na Idade Média que aparece o relógio de escapo, antepassado directo dos relógios mecânicos modernos.

Ainda hoje assistimos com frequência a contendas entre o Estado e a Igreja e experimentamos sob formas diferentes o terrorismo místico dos entusiastas de outrora; é da Idade Média que herdamos o hospital, e as nossas organizações turísticas continuam a inspirar-se na gestão das grandes vias de peregrinação. Inspirando-se nas pesquisas dos árabes, a Idade Média presta muita atenção à óptica, e Roger Bacon declarava que era a nova ciência destinada a revolucionar o mundo: Esta ciência é indispensável para o estudo da teologia e para o mundoA vista mostra-nos toda a variedade das coisas, e por ela se abre o caminho para o conhecimento de todas as coisas, como resulta da experiência. E são os estudos de óptica, juntamente com a experiência dos mestres vidreiros, que conduzem à invenção, quase casual e de origens um tanto ou quanto obscuras (há quem mencione Salvino degli Armati, em 1317, e quem recue até ao século XIII, com Fra Alessandro della Spina), de uma coisa que desde então se não tem modificado muito: os óculos. À parte o uso que ainda hoje fazemos deles, os óculos exerceram uma influência de grande alcance na evolução do mundo moderno. Todos os seres humanos tendem a sofrer de presbiopia depois dos quarenta anos, e podemos considerar que numa época em que se lia por manuscritos, e durante metade do dia à luz de velas, a actividade de um estudioso se reduzia temivelmente a partir de uma certa idade. Mercê dos óculos, os estudiosos, os comerciantes e os artífices prolongaram e aumentaram as suas capacidades de aplicação. É como se as energias intelectuais daqueles séculos tivessem duplicado ou até decuplicado, subitamente. Se pensarmos como foi útil para o desenvolvimento científico norte-americano o facto de ter havido algumas dezenas de cientistas judeus que, fugindo ao nazismo, foram enriquecer a ciência e a técnica do Novo Continente (é em grande parte a eles que se deve o descobrimento da energia atómica e as suas aplicações), teremos uma pálida ideia do que a invenção dos óculos significou». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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