«Apresento-lhes
aqui um livro muito original, muito bem escrito, de leitura agradável, que combina
a erudição clássica ao compromisso com as agendas progressistas actuais. O
autor trata de um filme com temática histórica e de seus possíveis usos em sala
de aula, analisando várias camadas da memória e da recepção do seu personagem
central, uma figura aparentemente excepcional na História, a matemática e
filósofa neoplatónica Hipátia de Alexandria (360 - 415). Digo
aparentemente, porque o autor se incumbe de nos mostrar o quanto ela como mulher
filósofa e professora não é um fenômeno único em seu tempo, apesar de
invisibilizado pela visão masculina da História.
Mesmo que até ao momento não
disponhamos de nenhum texto de autoria de Hipátia, sabem-se vários aspectos de
sua biografia e de seu pensamento, pois há referências a ela em seus
contemporâneos e pósteros dirextos; daí se podem inferir sentidos sobre ela e
sobre o contexto em que actuou, como mulher, como filósofa, como professora e como
pagã (termo cristianocêntrico preconceituoso, a se evitar, que designava
alguém que não havia aderido ao cristianismo e seguia fiel à cultura clássica).
Por si só, um filme sobre a biografia de uma mulher com protagonismo
intelectual na Antiguidade, ao evocar o tema da agência feminina, já justifica
interesse pela sua suma actualidade. Diante disto, José Petrúcio Farias
Junior, movido pelo potencial uso deste filme em sala de aula, desenvolve
um estudo aprofundado sobre como pensar as relações entre cinema e história, e
sobre como compreender a forma específica como o filme Agora constrói uma
narrativa própria, que é bem estudada, bem informada, mas faz suas escolhas,
frente aos factos e frente às interpretações propostas pela tradição.
A partir de finais dos anos 80,
com a vulgarização das fitas VHS, dos aparelhos videocassete e das
videolocadoras, torna-se acessível ao ensino uma nova possibilidade: o uso em
sala de aula do cinema, seja de documentários ou de filmes históricos ou
ficcionais. Isso estimulou muitos a pensarem sobre aspectos variados que
suscita o uso de episódios históricos pelo cinema, primeiro, como ferramenta
didáctico-pedagógica, depois, na perspectiva do que chamamos estudos da recepção
ou dos usos da Antiguidade. Nas escolas e universidades, integraram-se à rotina
académica os debates sobre algum filme histórico.
Entretanto, certo vício rançoso
vindo da torre de marfim em que se encastelava boa parte do mundo académico
levou a que esses debates fossem dominados pela crítica contumaz ao género, ao
se identificarem os seus erros, e a academia se via na posição de dar o
veredicto quanto a estes filmes: seriam melhores ou piores a depender da sua fidelidade
à história, se estes filmes abordavam a história e os textos clássicos de modo certo
ou errado.
Em 2000, estoura nas bilheterias
o filme Gladiador, dirigido por Ridley Scott, tendo o imperador romano
Cómodo como personagem central. Este filme, sucesso nas bilheterias, teve também
um grande impacto sobre os estudos da História Antiga, levando muitos
investigadores a reverem sua postura diante das potencialidades abertas pelo
uso cinematográfico da Antiguidade. Isto leva ao surgimento propriamente dito
de um novo flanco de estudos e reflexões sobre a Antiguidade, que de certo modo
se acomoda no campo já existente dos estudos de recepção, porém alargando-o e
talvez até extrapolando-o, dada a quantidade de questões novas que se começaram
a colocar, ao ponto de Joanna Paul (2005, p. 688) considerar que a interface
entre os estudos clássicos e o cinema desponta no início deste século como líder
no campo dos estudos de recepção.
Exemplo
da ampliação deste debate é Gladiator:
Film and History (Oxford: Blackwell), colectânea de 2004 organizada
por Martin Winkler, pesquisador seminal na renovação do olhar académico sobre a
Antiguidade no cinema. Em Maio deste mesmo ano, em que Winkler publica a colectânea
Gladiator, ocorre o
lançamento de Troia, de
Wolfgang Peterson, em um momento em que entre a comunidade de pesquisadores classicistas
muitos ainda persistem no ranço filológico de refutar o mérito das leituras e
recriações fílmicas da Antiguidade, mas não são poucos os que estão agora com a
mente mais aberta a perceber o papel arrebatador do cinema na disseminação da
cultura clássica». In José Petrúcio F. Júnior, Hipátia de Alexandria, 2022, RFB Editora, 2022
ISBN 978-655-889-6.
Cortesia de RFBEditora/JDACT
JDACT, Hipátia de Alexandria, Matemática, Filósofa, Conhecimento, Antiguidade,