O Rei Sancho III
Sierra
de Leyre. Novembro de 1027
«Ora, ora. Vejo que tens muito para
aprender, vou sair para o bosque. Acompanha-me, por favor. Eneca assim fez,
pensando que lhe mostraria algo em particular, mas limitaram-se a caminhar até uma
saliência pedregosa e aí permaneceram até que o Sol se pôs. Depois, a mulher levou-a
para o interior do refúgio e instalou-a numa cavidade com chão de palha. Artal
dormiria ao seu lado. Assim passou Eneca a noite naquele sóbrio lugar.
Não foi a última. A menina foi acolhida
com certa indiferença pela anfitriã. que a ignorava durante grande parte do
dia, mas que, ao mesmo tempo, se encarregava de que comesse e nào passasse frio.
A mulher chamava-se Nunila e aquele abrigo era a sua morada. No interior, guardava
todo o tipo de utensílios, ervas e beberagens. O espaço oco na montanha era profundo
e estava repleto de locais de armazenamento. Além disso, a temperatura era constante
lá dentro e havia pouca humidade. Nunila ordenou-lhe que a limpasse todos os dias,
e Eneca, pouco habituada a esses labores, quis inicialmente opor-se. Mas, por
algum estranho motivo, Nunila agradava-lhe e sentia a necessidade de lhe obedecer.
Uma manhã, saíram juntas para o bosque,
acompanhadas por Artal. Aonde vamos?, perguntou Eneca. Hoje, vou ensinar-te a apanhar
cogumelos, por isso presta atenção, pois são tão saborosos e úteis como
perigosos. A maioria tem veneno. Cada cogumelo bom tem o gémeo nocivo. Às vezes
a diferença entre as duas variedades é tão
subtil que muitos homens confundem-nas e morrem.
Passaram grande parte da manhã a caminhar.
Eneca! Olha, vês esse? É um tortulho. Tem uma espécie de chapéu. Assim é. É de
cor parda, com a orla mais clara. Cresce entre faias, carvalhos e pinheiros. Nunila
agachou-se e mostrou à menina como devia cortá-lo. Deambularam pelo bosque a maior
parte do dia, apanhando cogumelos, e, ao chegar a noite, guisaram os mais saborosos
no interior da gruta. Lembrar-te-ás de como são os tortulhos?, perguntou Nunila,
sorridente. Sim, com um chapéu castanho, muito carnudo e um pé forte. E mais nada?
Acho que não.
Maldita criança! O chapéu tem uma
margem mais clara, a cor não é uniforme. Se não és capaz de prestar atenção a esses
pormenores, não me serves para nada. Como podes ser tão estúpida? Estou só a perder
tempo contigo! Eneca afastou-se a chorar. Nunila tão depressa se mostrava
amável e preocupada com ela como mudava subitamente de humor, se encolerizava, desprezava-a
e ignorava-a.
Decorreram as semanas e chegou o Inverno
rigoroso, durante muitos dias, não puderam sair do refúgio. Nunila continuou sem
falar muito com Eneca. Assim passavam os dias para a menina, até que veio a Primavera
e depois o bom tempo. Numa das primeiras noites de calor, Eneca acordou às escuras
e descobriu um brilho no exterior do abrigo. Sem hesitar, levantou-se e saiu da
gruta. Lá fora, as chamas de uma fogueira colossal erguiam-se em direcção ao céu
estrelado e Nunila fitava-as em silêncio numa das pontas, ensimesmada. Não te vais
aproximar?, perguntou sem se mexer. Eneca dirigiu-se cautelosamente a ela e postou-se
à sua esquerda. Nunila tinha uma faca na mão. Aproximou-a do rosto de Eneca,
que viu o próprio medo reflectido na lâmina. Não se mexeu, sustendo a respiração
enquanto a arma percorria, a pouca distância, o seu pescoço.
Nunila parou, fitou de novo a pequena
e ergueu a faca até cortar uma madeixa do seu cabelo negro. Deu um par de
passos e pousou-a no chão, dentro de um círculo de pedras, ao lado de uma vela
que se consumia. Hoje é o primeiro dia
do Verão, a noite mais longa. Tempo de deixar para trás o velho e dar as boas-vindas
ao novo. Vais renascer, Eneca. Tenho-te observado ao longo destes meses e por isso
sei que a partir de hoje, tudo será diferente.
Nunila pegou na madeixa e introduziu-a
numa pequena bolsa de couro. Depois, guardou também as pedras e o que restava
da vela. Fechou-a e guardou-a. A mulher tinha razão. Depois do solstício, nada foi
igual. Começou a acompanhar a mulher ao bosque, a recolher plantas e raízes. Acediam
a lugares recônditos, no mais profundo do vale, entre frondosos carvalhais ou à
sombra de violentos cursos de água. Assim começou Eneca a identificar os habitantes
da montanha: ursos, lobos, lontras, gamos, também as árvores, os arbustos,
plantas e ervas. Com tudo isso, como se fosse um curioso jogo, a cada dia aprendia
algo novo. Até que, uma noite, se formou uma terrível tempestade e começou uma chuva
sem fim. Durante três dias, não saíram da gruta. Longe de abrandar, uma tempestade
de raios caiu sobre o bosque, desencadeando o pânico em todas as criaturas.
A menina nunca vira nada assim.
Era como se, desde o alto, o céu ameaçasse abrir-se e cair sobre as suas
cabeças. Não tenhas medo, Eneca, em breve passará. É apenas uma forte tempestade.
E se é Nosso Senhor que está zangado? Como? Não digas disparates. Desde os tempos
mais remotos que os homens sentiram a necessidade de explicar tudo aquilo que lhes
causava medo. Precisavam de dar sentido ao frio, à chuva, à seca, à fome, às doenças.
à morte... Porquê?, inquiriu Eneca». In Luis Zueco, El
Castillo, O Castelo, 2015, Titivillus, Alma dos Livros, 2020, ISBN
978-989-899-914-0.
Cortesia de AdosLivros/JDACT
JDACT, Luis Zueco, Idade Média, Século XI, Espanha, Literatura, História,