quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Idade Média. Umberto Eco. «… finge sempre comentar e explicar o que já foi dito antes dele, e provavelmente acredita nisso, pois admite que a autoridade tem um nariz de cera que pode ser virado em todas as direcções»

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Em que sentido a Idade Média foi radicalmente diferente dos nossos tempos

«Esta divindade inacessível não nos fala, portanto, directamente, mas por símbolos, ou seja, por aspectos do mundo natural que, embora incompletamente, nos remetem para a sua origem, de modo que o mundo parece (como sugere Hugo de São Vítor) um imenso livro escrito pelo dedo de Deus e onde, segundo Ricardo de São Vítor, todos os corpos visíveis manifestam alguma semelhança com os bens invisíveis. Ler o mundo como reunião de símbolos é o melhor modo de pôr em prática o ditame dionisíaco e de poder elaborar e atribuir nomes divinos (e com eles moralidades, revelações, regras de vida, modelos de conhecimento). E João Escoto Eriúgena dissera, em chave neoplatónica, que não há nenhuma coisa visível e corpórea que não signifique alguma coisa invisível e incorpórea (De Divisione Naturæ).

A segunda fonte é de origem escritural e tem a sua mais extensa teorização em Agostinho. Se videmus nunc per speculum et in ænigmate, enigmático será também o discurso das Escrituras. E não só no sentido de que as Sagradas Escrituras usam metáforas e outras expressões figuradas, mas também que os próprios factos que narram não devem, muitas vezes, ser tomados à letra, mas como sinais de uma realidade ou preceito superior. Ora, visto que alguns factos de que falam as Escrituras, como, por exemplo, os pormenores do nascimento de Jesus ou da sua Paixão, são, certamente, tomados à letra, Agostinho põe o problema de saber que factos não têm valor literal mas alegórico, e fornece algumas regras para a identificação desses casos: os factos significam outra coisa quando parecem contradizer as verdades da fé ou os bons costumes, quando a Escritura se perde em superfluidades ou põe em jogo expressões literalmente pobres, quando se detém excessivamente na descrição de alguma coisa sem que vejamos as razões de tão grande insistência na descrição. Enfim, têm certamente um segundo sentido as expressões semanticamente pobres como os nomes próprios, os números e os termos técnicos.

Mas se a Bíblia fala por personagens, objectos e acontecimentos; se nomeia flores, prodígios da natureza ou pedras, se põe em jogo subtilezas matemáticas, convirá procurar no saber tradicional qual é o significado daquela pedra, daquela flor, daquele monstro ou daquele número. E eis porque depois de Agostinho a Idade Média começa a elaborar as suas enciclopédias, para definir com base na tradição as regras da atribuição de um significado figural a qualquer elemento do mobiliário do mundo físico. Deste modo, até os sátiros e os ciápodes adquirem significado espiritual e, admitindo que nunca seriam encontrados, também teriam significado espiritual os animais, as plantas e as pedras do bestiário, do herbário e do lapidário quotidianos.

Estas enciclopédias tratam (para definir as matérias em termos contemporâneos) dos céus, de geografia, demografia e etnografia, de antropologia e fisiologia humana, de zoologia, botânica, agricultura, jardinagem, farmacopeia natural, medicina e magia, mineralogia, arquitectura e artes plásticas. Mas uma característica, que as distingue das enciclopédias modernas, é não pretenderem registar o que realmente existe, mas aquilo que tradicionalmente se considera existir (dando igual espaço ao crocodilo e ao basilisco). Eis, pois, como o homem medieval vive num cosmo falante, disposto a escutar a palavra de Deus até no marulhar de uma folha.

Mas não há uma Idade Média única, como está dito, e entre os séculos XII e XIII, pelo menos nas universidades, esta visão simbólica do mundo acaba por se debilitar e abre espaço, pouco a pouco, a explicações mais naturalistas. No entanto, o que torna difícil distinguir uma Idade Média de outra é que o filósofo que tentava ler a natureza segundo a filosofia aristotélica podia consultar velhos manuscritos ou livros de orações que tinham nas margens imagens de criaturas lendárias, e nenhum, na verdade, nos diz se no seu íntimo ainda as tomava a sério. Por outro lado, não são raros nos nossos dias os homens de ciência que, fora dos seus laboratórios, mandam ler a sina na palma da mão ou vão assistir a sessões de espiritismo.

A Idade Média tem uma ideia da tradição e da inovação diferente da nossa. Como se verá, considera que somos anões aos ombros de gigantes, isto é, que vemos algo mais do que os nossos predecessores, mas só porque nos baseamos no seu discurso precedente. Neste sentido, o autor medieval, que não raro inova, e frequentemente de modo radical, finge sempre comentar e explicar o que já foi dito antes dele, e provavelmente acredita nisso, pois admite que a autoridade tem um nariz de cera que pode ser virado em todas as direcções. De qualquer modo, outro dito que expõe estes procedimentos é non nova sed nove: o autor presume e assume sempre que não diz nada de diferente da tradição, apenas o diz de maneira diferente. De uma maneira geral, quando diz que uma coisa é autêntica, o autor medieval não está a falar em sentido filológico, como fazemos hoje (um documento só é autêntico quando se prova que foi realmente produzido por aquele a quem é atribuído), mas que isso significa que algo é verdadeiro. Portanto, para o medieval é autêntica a interpretação que afirma aquilo que o intérprete considera verdadeiro». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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