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terça-feira, 26 de outubro de 2021

Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina. José Presas. «Depois de feitos os primeiros cumprimentos, ofereceu-me uns periódicos para que me entretivesse com sua leitura enquanto voltava para despedir-se do núncio…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O bergantim atingira, na sua rota, o ponto em que me era forçoso abandoná-lo para continuar a viagem, e, aproveitando um cúter inglês, única embarcação que havia no porto, segui caminho até ao Rio de Janeiro. Previa o risco iminente que corria de ser considerado prisioneiro de guerra. Por outro lado, porém, não podia por mais tempo permanecer estacionado na vila de Santos, onde podia passar-se um ano sem que arribasse navio nacional ou estrangeiro. Com três dias de navegação fundeamos na baía do Rio, e logo tivemos a visita regulamentar. Informado o seu chefe, da minha procedência, voltou imediatamente a participar ao Governo a minha chegada. Pelas providências que este tomou, vim saber que se dava à minha pessoa grande importância, pois que no mesmo momento fui mandado chamar pela própria falua da visita, e conduzido por um ajudante-de-ordens perante o general comandante da praça, o qual, depois de amplo interrogatório, me despediu com a única ressalva de não sair da cidade sem expressa permissão sua. Com semelhante disposição, confirmaram-se meus receios e previsões, e vi-me reduzido, na minha opinião, à triste sorte de prisioneiro. Assim permaneci coisa de um mês, até que se apresentou, com dois navios de linha e outras embarcações menores, o contra-almirante Smith, que tendo recomendado a seu imediato, o comodoro Moor, que escoltasse a Família Real de Portugal até ao Rio de Janeiro, ficara cruzando diante da barra do porto de Lisboa, a fim de observar e tomar conhecimento das operações do general Junot e compenetrar-se dos objectivos e planos que este formava acerca de Portugal.

Dois dias depois da chegada do contra-almirante Smith, este me mandou, por intermédio do seu ajudante-de-ordens, Carol, solicitar instantaneamente tivesse a bondade de ir a bordo do seu navio, sem nada adiantar-me quanto ao objecto da entrevista que desejava. Mais a necessidade que a curiosidade decidiu-me a comparecer perante sir Sidney Smith, que me recebeu, na antecâmara de seu navio, com uma amabilidade e cortesia pouco comum em pessoas de sua carreira e categoria, ainda mais quando estão dominando, de suas fortalezas marítimas, a todos que encontram no seu caminho, ou nos lugares em que têm arvorado seu pavilhão, atitude que, geralmente, deixa de ser ameaçadora, para converter-se em fulminante. Depois de feitos os primeiros cumprimentos, ofereceu-me uns periódicos para que me entretivesse com sua leitura enquanto voltava para despedir-se do núncio de Sua Santidade, monsenhor Caleppi, que em companhia de dois portugueses tinha ido felicitá-lo por sua feliz chegada. Livre já das visitas de cerimónia, fez-me entrar no camarote, e iniciou a conversa perguntando-me acerca da situação do Rio da Prata, a saber: a respeito da opinião pública, número de tropas, meios e recursos com que podia contar o general Liniers para sua defesa, e se, quando saí de Buenos Aires, ali se temia que voltassem pela terceira vez os ingleses a conquistá-la. Minha resposta a todos esses quesitos foi um tanto exagerada a favor do general Liniers, de quem disse ter à sua disposição uns vinte mil homens, porque, após a última derrota experimentada pelos ingleses, se engrossaria o exército espanhol com tropas mandadas vir de todas as províncias, e que o aumentariam ainda reforços que se esperavam do vice-rei de Lima. Vi, pela fisionomia de Smith, que essa notícia lhe era pouco agradável; não obstante, continuou seu interrogatório apresentando-me um plano de toda a costa do vice-reinado de Buenos Aires, para que lhe indicasse qual o ponto que, na minha opinião, era o mais qualificado e favorável a um desembarque de tropas. Respondi-lhe ser essa matéria bastante estranha a meus conhecimentos, e que, mesmo quando possuísse alguns, sempre seriam muito inferiores, por uma razão natural, ao de um chefe de primeira ordem da Marinha Real Inglesa.

Sorriu com a resposta; e disse-me, então, francamente, que o objectivo de sua vinda era o de tentar, pela terceira vez, a conquista de Buenos Aires, para a qual se estava preparando uma grande divisão nos portos da Inglaterra. Já se passara algum tempo nessa conversação, e julgando ter satisfeito seus desejos, quis despedir-me, mas instou muito comigo para que o acompanhasse no jantar. Os ingleses costumam servir-se da mesa para arrancar dos convivas o que convém a seus interesses. Nessa ocasião, tinha de agir com a maior circunspecção, para ficar sempre senhor de mim mesmo e medir bem as palavras». In José Presas, Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina, Edição do Senado Federal, volume 130, Brasília, 2013, ISBN 978-857-018-271-5.

Cortesia de ESenadoFederal/JDACT

JDACT, José Presas, Literatura, Carlota Joaquina, Brasil, 

Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina. José Presas. «Em começos do ano de 1808, precisando voltar da América do Sul para Espanha, embarquei-me num bergantim português que partia de Buenos Aires para a costa do Brasil…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Qual o intuito de José Presas escrevendo as Memórias secretas de Dona Carlota Joaquina? Na verdade, o aventureiro catalão só teve em mira cobrar-se dos seus serviços como secretário particular e fomentador da intriga do Prata. Escreveu esta obra com o intuito premeditado de fazer revelações indiscretas e dar a entender à então rainha viúva de Portugal que poderia ir mais longe ainda, relatando por miúdos factos a que faz alusões veladas e remotas. Em suma: tentava uma chantagem em grande estilo contra a antiga senhora e ama, cujas veleidades políticas animara, a fim de melhor fazer valer os seus serviços e justificar a permanência a seu lado. Época pitoresca era essa, em que os reis e rainhas colocavam acima do seu poder pessoal o seu confessor, temerosos de uma omissão, punível pela justiça divina, a ponto de escreverem suas confissões completas que, imprudentemente, deixavam ao alcance dos seus áulicos, capazes de comerciar com esses segredos, exigindo dinheiro em troca de silêncio! A parte final do livro de Presas, a conclusão, o arremate dessa obra que seria um simples pano de amostra, uma indicação do muito que ele sabia e do quanto seria perigoso deixar a rainha de atendê-lo, insinua com tanta arte e habilidade quando era possível em tão escuso negócio a premeditada chantagem: Medite também sobre as fatais consequências que lhe poderia ter acarretado, pondo em mãos do próprio príncipe (João) a confissão geral que, involuntariamente, e por esquecimento, me entregou..., e que devolvi, como devia, com os demais papéis, sem dar-me por entendido de que a havia visto e lido, etc. Finório como era, se naquela época já estivessem em uso as cópias fotostáticas, Presas teria, sem dúvida, muito inocentemente, tirado fac-símile das confissões de dona Carlota, como por certo havia tirado cópia manuscrita dos trechos mais comprometedores...

Em começos do ano de 1808, precisando voltar da América do Sul para Espanha, embarquei-me num bergantim português que partia de Buenos Aires para a costa do Brasil com destino ao porto da vila de Santos. Foi ali que tive a primeira notícia de que os exércitos francês e espanhol tinham invadido Portugal, e de que o general Junot, comandante do primeiro, se havia apoderado de Lisboa, sem ter conseguido impedir a fuga da Família Real, que, sob a protecção e guarda da esquadra inglesa, capitaneada pelo contra-almirante sir Sidney Smith, se refugiara nos seus Estados do Brasil. Ao mesmo tempo que os franceses se assenhoreavam de Lisboa, os espanhóis, às ordens do general Tarauco, ditavam leis na opulenta e importante cidade do Porto, e, operando ambos os exércitos com estreita aliança, tinham subjugado toda a Lusitânia, oprimindo extraordinariamente a todos os habitantes com o peso insuportável de uma guerra injusta e assoladora. O auxílio, que o governo da Espanha prestava com tanta generosidade aos projectos do imperador Napoleão nesta empresa, comprometeu a segurança pessoal de todos os espanhóis, que na ocasião se achavam nos domínios sujeitos ao príncipe regente de Portugal, o qual, pelas consequências de uma justa represália, não podia deixar de considerar como inimigos os súbditos espanhóis. Essa a sorte que me era lícito esperar desde que pusesse o pé em terra no porto de Santos. Não obstante, nenhum estorvo ali sofri, quer de parte do governo, quer da polícia». In José Presas, Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina, Edição do Senado Federal, volume 130, Brasília, 2013, ISBN 978-857-018-271-5.

Cortesia de ESenadoFederal/JDACT

JDACT, José Presas, Literatura, Carlota Joaquina, Brasil, 

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina. José Presas. «Esse livro se caracteriza, sobretudo, pela polémica com o abade de San Juan de la Pena, defensor do absolutismo e de Fernando VII»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Merecia absoluta confiança da princesa. Pode-se dizer que foi ele quem conduziu sobre os ombros o pesado encargo de todas as negociações a fim de realizar os propósitos da infanta, tendo activa correspondência com os partidários de sua senhora e com vice-reis e demais autoridades coloniais. O marquês de Casa Irujo lhe imputa o facto de haver protegido no Rio de Janeiro os perseguidos pelo vice-rei de Buenos Aires. Isso, se realmente prejudicava os interesses da Espanha, favorecia os da princesa, posto que muitos desses perseguidos eram partidários seus. Por sua mediação, foram enviados importantes auxílios para Montevideu, sendo, para isso, burladas as intrigas de lord Strangford. Apesar das censuras dos historiadores argentinos à conduta de Presas, devemos reconhecer nele grande habilidade para a intriga e excelente perspicácia para observar as questões políticas. Esses dons representam o motivo que influi para que o embaixador inglês obtivesse, em 1812, a separação de Presas da princesa, seguindo ele para a Espanha no desempenho de missão especial. Sua vida, anos mais tarde, na Espanha, teve lances de certa sensação. Resolveu o ex-secretário de dona Carlota Joaquina fazer-se publicista, contribuir com a sua opinião para o esclarecimento das questões políticas e entrou logo a guerrear o absolutismo. O seu primeiro livro, impresso na casa Carlos Lawalle Sobrinho, em Bordeaux, circulou em 1817 e despertou grande celeuma, sendo proibido por decisão das autoridades policiais.

Aludindo a esse panfleto, cujo autor mereceria, no seu entender, pena de açoites, senão mesmo de fuzilamento, disse o alcaide de Madrid, Julian Cid Miranda: se Presas cai em meu poder, em menos de três dias eu o terei mandado à Plaza de la Cebada... Era o lugar em que os inimigos da realeza pagavam pela sua audácia. Presas teve, porém, a prudência de fugir para a França... Esse livro não era outro senão a Pintura de los males que há causado a la España el gobierno absoluto de los últimos reinados y de la necessidad del restablecimiento de las antiguas cortes por estamentos, o de una Carta Constitucional dada por el rey Fernando.

Além desse livro e destas Memórias secretas de Dona Carlota Joaquina, escreveu Presas um Juicio imparcial sobre las principales causas de la revolución de la América Española, y acerca de las poderosas razones que tiene la Metropoli para reconocer su absoluta independencia, um proyecto sobre el nuevo método de convocar lãs antiguas cortes de Espanã, conforme a las leyes fundamentales de la monarquia, y arreglado a las luces y circunstancias del dia; um panfleto político, Filosofía del trono y del altar del império y del sacerdocio, a que se seguiu outro: El triunfo de la verdad; e , por fim, uma Cronología de los sucesos más memorables ocurridos em todo el âmbito de la monarquia española, desde el año 1759 hasta 1836, este editado na Imprenta de M. Calero, em Madrid, em 1836, ao passo que todos os demais foram impressos em Bordeaux.

Imprimiu também, em 1815, antes de qualquer outro livro, uma Representación que eleva al Rey Nuestro Señor D.Fernando VII, por motivo das perseguições que sofreu em Granada, onde foi contador provincial, por parte de vários empregados por ser ligado à família reinante e, especialmente, à princesa do Brasil, de quem fora secretário. Em El triunfo de la verdad, publicou o ex-secretário de dona Carlota as cartas de Fernando VII a Napoleão Bonaparte, escritas em Valençay e nas quais o fraco soberano espanhol, num deplorável excesso de bajulação e covardia, felicitava o poderoso imperador dos franceses, usurpador de sua coroa e dos seus domínios, pelas brilhantes vitórias militares alcançadas... Esse livro se caracteriza, sobretudo, pela polémica com o abade de San Juan de la Pena, defensor do absolutismo e de Fernando VII». In José Presas, Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina, Edição do Senado Federal, volume 130, Brasília, 2013, ISBN 978-857-018-271-5.

Cortesia de ESenadoFederal/JDACT

JDACT, José Presas, Literatura, Carlota Joaquina, Brasil,

Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina. José Presas. «… como secretário de dona Carlota mereceu sempre lisonjas por parte desta, que apreciava e reconhecia nele as qualidades necessárias para o desempenho da sua difícil missão»

Cortesia de wikipedia e jdact

«As Memórias Secretas de dona Carlota Joaquina de José Presas constituem um dos livros mais pitorescos e mais ricamente informativos que se escreveram sobre o período regencial do Brasil. Essa obra, verdadeira raridade, que poucas bibliotecas actualmente possuem, nas suas duas únicas edições, uma tirada em Bordeaux, em 1830, na casa impressora Carlos Lawalle & Sobrinho, e outra em 1858, na Imprenta El Comércio, de Montevidéu, é citada unicamente por todos os historiadores que se ocuparam daquele importante período da nossa história ou da intriga desenvolvida pela princesa do Brasil para se apossar da coroa de rainha do Prata, em detrimento dos interesses de seu próprio irmão, o rei Fernando VII, da Espanha. Para alguns historiadores, como, por exemplo, Oliveira Lima, essa obra deve ser examinada sob prudente reserva. O depoimento de Presas é apaixonado e injusto, sem dúvida, em muitos passos. Isso, porém, não invalida a larga soma de informações que o livro possui sobre uma série de factos e episódios que interessam à história. Para outros, porém, o testemunho de Presas é digno de fé, merecedor de crédito. A julgar pela opinião da própria Carlota Joaquina, seu secretário deve merecer inteira fé, diz o sr. Tobias Monteiro, na sua nota à sua História do Império (Elaboração da Independência,  procurando dar forças a essa opinião com a transcrição da carta em que a princesa, recomendando-o a Fernando VII, dizia que era ele desprovido de toda a mentira e lisonja. Não pode, porém, prevalecer esse julgamento de dona Carlota sobre a atitude futura de José Presas. A princesa o teria, com toda a certeza, reformado totalmente... Preferimos, neste passo, a opinião de Oliveira Lima, que muito aproveitou, na sua obra D. João VI no Brasil, os subsídios de Presas. Podemos dizer, sem nenhum erro, que o retrato moral e físico da princesa, nessa obra se baseia quase que exclusivamente nos apontamentos das Memórias secretas de Dona Carlota Joaquina, também utilizados, em maior ou menor escala, em Duas grandes intrigas, de Alfredo Varela; A Corte de Portugal no Brasil, de Luís Norton; Carlota Joaquina, de César Silva; A Corte no Brasil, de A. C. d’Araújo Guimarães; Carlota Joaquina, de Assis Cintra; e D. João VI no Brasil, livro de Luís Edmundo que está sendo publicado fraccionadamente na imprensa.

Quem era esse singular personagem, que surgiu inesperadamente no Rio de Janeiro e se ligou, de tal forma, à história do período regencial no Brasil? São poucos os vestígios que deixou José Presas de si mesmo nos arquivos e bibliotecas. Os dicionários biográficos nada dizem sobre a sua existência, seu nascimento, sua origem, suas obras, sua morte. Omissão completa e inexplicável. Pouco conseguimos apurar sobre esse misterioso espanhol, hábil intrigante, arguto observador dos acontecimentos políticos, homem de muito engenho e habilidade, capaz de encher de sonhos vãos a cabeça da infanta Carlota, servi-la, enquanto possível, como secretário e homem de confiança e, em seguida, ainda obter, por sua real mercê, uma boa sinecura na Espanha, além da promessa de uma gorda pensão... O não pagamento dessa pensão foi a origem deste curioso livro, cheio de encarecimento dos serviços prestados e de ameaças de escândalo, caso não fosse o autor pago dos atrasados de dezassete anos de completo olvido...

Do pouco que se sabe ao seu respeito, consta o seu lugar de origem, a Catalunha. Meninote, ainda, José Presas fora para Buenos Aires, onde se educou sob os cuidados de seu tio e protetor, dom Francisco Sálvio Marull, que o internou, por sua conta, no Real Colégio de São Carlos. Terminado o curso de humanidades, Presas cursou a Universidade de Charcas, onde obteve o título de licenciado em leis. Estabeleceu-se, então, por conta própria, em Buenos Aires, com banca de advogado, fazendo-se chamar, de então por diante, dr. Presas. Quando a Inglaterra, tomando represálias contra a atitude política da Espanha em face de Napoleão, fez invadir Buenos Aires, Presas se declarou pelo partido inglês, convencido de que a dominação britânica era um facto consumado. Ao verificar-se a reconquista de Buenos Aires, com Santiago Liniers à frente, Presas foi preso como traidor, conseguindo, no entanto, fugir para o Rio de Janeiro. Nas Memórias secretas de Dona Carlota Joaquina o ardiloso catalão omite, por completo, esses interessantes detalhes...

A maneira pela qual chegou ao Rio e se colocou ao serviço da princesa, ele próprio no-la relata nesse trabalho. J. M. Rubio, na sua obra La infanta Carlota Joaquina y la politica de España en América, dá-nos algumas notas sobre as actividades de Presas: sua actuação como secretário de dona Carlota mereceu sempre lisonjas por parte desta, que apreciava e reconhecia nele as qualidades necessárias para o desempenho da sua difícil missão». In José Presas, Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina, Edição do Senado Federal, volume 130, Brasília, 2013, ISBN 978-857-018-271-5.

Cortesia de ESenadoFederal/JDACT

JDACT, José Presas, Literatura, Carlota Joaquina, Brasil, 

domingo, 25 de julho de 2021

Carlos Haag. A Mulher Que Amamos Odiar. «A traição teve um preço alto: Carlota foi colocada incomunicável, confinada no palácio como prisioneira, afastada dos amigos e dos pais e a sua correspondência…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O conhecimento que boa parte de nós tem sobre Carlota Joaquina (1775-1830) costuma ter densidade de um enredo histórico de escola de samba: é aquela espanhola bigoduda que odiava o Brasil e chacoalhou os sapatos ao sair daqui, para não levar nenhum grão de poeira do país. O filme de Carla Camurati tampouco ajudou muito: se ajudou o renascimento do cinema nacional, enterrou de vez a personalidade da soberana. O movimento liberal e as transformações sociais e políticas do século XIX exigiram reinvenções do passado como forma de legitimar um presente que se queria construir. Carlota Joaquina, rainha portuguesa que nunca perdeu a sua identidade espanhola, foi contra a vinda da família real ao Brasil, e declarou o seu regozijo com a volta a Portugal, que defendeu o absolutismo e se recusou a assinar a Constituição Liberal portuguesa, certamente não servia para subir ao pódio dos personagens dignos da memória nacional, explica a professora Francisca Nogueira Azevedo, autora do recém-lançado Carlota Joaquina na Corte do Brasil (Civilização Brasileira), um retrato surpreendente da rainha, que surge como uma política hábil, capaz de ir muito além do papel subalterno a que a corte lusitana constrangia as mulheres.

Não foi a intenção da pesquisadora fazer a reabilitação de sua figura histórica. Quis acompanhar a trajectória de vida de Carlota, preocupada com o universo feminino de seu tempo, com a produção historiográfica que delineou os estereótipos que marcam a sua memória e com sua actuação na esfera pública, onde, desde fins do século XVIII, ela assume um papel preponderante na política externa portuguesa, avalia a Francisca. Filha primogênita do rei Carlos IV, de Espanha, casou-se, com apenas 10 anos, com o futuro dom João VI. Embora um típico casamento diplomático que visava ao pacto entre as duas coroas ibéricas, nas cartas referia-se ao marido como um homem bom e honesto, culpando o grupo que os cercava pela desarmonia do casal, que, em 1806, chegou ao ápice com a chamada Conspiração do Alfeite. Vários documentos comprovam que dom João passou por um longo período de depressão, afastando-se completamente do poder. A corte portuguesa dividia-se, então, entre anglófilos e francófilos. O grupo de tendência francesa apoiou Carlota para que ela assumisse o poder, como regente no lugar do marido.

A traição teve um preço alto: Carlota foi colocada incomunicável, confinada no palácio como prisioneira, afastada dos amigos e dos pais e a sua correspondência passou a ser controlada pelo grupo político de dom João. É nesse espírito que se vê a bordo de um navio com destino à Colónia, onde, mal chegando, descobriu que os pais, monarcas da Espanha, estavam prisioneiros de Napoleão, com quem haviam estabelecido pouco antes uma aliança (condenada por Carlota com notável antecipação) que permitira a Bonaparte cruzar o território espanhol para invadir Portugal. O irmão de Carlota, Fernando VII, liderou um motim contra o pai e deu a Napoleão a chance de arrancar o trono dos espanhóis para colocar em seu lugar o irmão José Bonaparte. Assim, o problema maior de Carlota não era a Colónia, mas as condições em que veio para o Brasil, praticamente um exílio. As uas cartas revelam sua luta para, de início, não partir de Portugal e, depois, o seu desejo de voltar à Europa. Não encontrei nenhuma referência a um desprezo pelo Brasil, mas várias tentativas de sair da Colónia, diz Francisca.

Sem rei, os criollos dos vice-reinados espanhóis na América viram a chance de pôr fim à opressão dos Bourbon, movimento logo percebido por Carlota. No exílio colonial, ela decidiu lutar pela preservação do império de seu pai nos trópicos. Carlota queria a regência da Espanha e, a partir da sede da monarquia, em Buenos Aires, coordenar a resistência à invasão napoleónica e garantir para a dinastia dos Bourbon a coroa espanhola, ou seja, fazer o mesmo que dom João fez, diz a pesquisadora. Para tanto, reuniu o apoio de parte da nobreza espanhola e da portuguesa, descontente com a vinda da Corte ao Brasil, à ajuda intelectual do almirante-de-esquadra britânico no Rio, Sidney Smith, e enviou, em 1808, um manifesto à Espanha, no qual se coloca como a defensora dos direitos de sua família. Ganhou, com isso, na Colónia, pesados inimigos para seus planos de se tornar a regente exilada de Espanha. Entre eles, o chefe do gabinete de dom João, o conde de Linhares, que logo percebeu o perigo dessa acção para seus planos de estender o império português para as áreas ocupadas pela coroa espanhola. O conde tinha um aliado forte: lord Strangford, o embaixador inglês em Lisboa e desafecto de Smith. Strangford achava que o Brasil deveria ser um empório para as mercadorias inglesas, destinadas ao consumo de toda a América do Sul.

O embaixador espanhol no Rio também se irou com Carlota, pois tinha ordens expressas da junta que governava a Espanha de mantê-la longe das colónias de Prata. Afinal, as lembranças desagradáveis da última união entre as coroas ibéricas levava a considerar os infortúnios que viriam de uma nova soberania portuguesa sobre os hispânicos. Como se não bastasse, Carlota, apesar do que diziam seus desafectos, não era um homem… O sistema que ordenava a sociedade lusitana entre os séculos XVIII e XIX privava a mulher do convívio social, mantendo-a presa ao quotidiano doméstico. A atuação de Carlota na esfera pública, negociando acordos diplomáticos, articulando com parte da nobreza portuguesa para ascender ao poder a pleiteando a regência da Espanha, certamente transgredia o espaço determinado para as princesas consortes na corte bragantina, observa Francisca». In Carlos Haag, A Mulher Que Amamos Odiar, 2004, Edição 96, 2004, Wikipédia.

cortesia de wikipedia/jdact

JDACT, Carlos Haag, Conhecimento, Carlota Joaquina,