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terça-feira, 28 de julho de 2020

Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses. Luís Albuquerque. «Como consequência dele, os périplos da Antiguidade, já então chamados portulanos, passaram a acrescentar às distâncias que separavam dois portos o rumo (magnético) que o piloto…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Antecedentes da Náutica dos Descobrimentos
A Náutica Medieval
«Desde a Antiguidade que os homens do mar, responsáveis pelo êxito das navegações, criaram o hábito de registar por escrito as indicações consideradas importantes para assegurar o êxito da viagem, caso viessem a repeti-la. Fazendo uma navegação quanto possível costeira, esses primitivos apontamentos dos pilotos e navegadores, não obstante o seu grande interesse histórico, fornecem um pequeno número de dados. Lendo, por exemplo, o Périplo do Mar Eriteu, redigido em grego por autor desconhecido antes de iniciada a nossa era, verifica-se que esse texto aponta o nome dos principais portos do Mar Vermelho, indicando quase sempre a distância (em estádios) que separa entre si dois ancoradouros consecutivos, e ainda algumas breves informações sobre os habitantes (ictiofágios e agriofágios, por exemplo) que viviam nas terras circunvizinhas desses lugares marítimos. Mas os esclarecimentos prestados são, na maioria dos casos, sucintos e imprecisos; é certo que, excepcionalmente, podem descer a alguns pormenores de interesse, mas nunca apontam o rumo pelo qual o navio devia ser encaminhado, como na Idade Média se leria nos textos análogos; tal falta é apenas significativa de que a navegação não se fazia nesse tempo por rumos geográficos ou magnéticos; o piloto impunha à sua embarcação, como já ficou dito, uma derrota à vista de costa, e isso dispensava qualquer tipo de orientação geográfica, que se tornaria mais tarde indispensável, quando tais condições se alteraram. Há testemunhos suficientes, embora de diversas origens, de terem existido vários textos deste tipo; eles constituem os mais antigos livros de náutica de que temos conhecimento, sendo de salientar que não há naqueles que nos chegaram em fragmentos ou integralmente outros dados suplementares que pudessem auxiliar o piloto na sua tarefa. Para citar um exemplo, direi que nenhum desses textos alude a qualquer determinação de latitude, que aliás seria absolutamente inútil para a arte de navegar a que se recorria; é certo que se tem sustentado ter Pytheas de Marselha medido esta coordenada geográfica umas quatro vezes nas suas deambulações oceânicas, que o teriam levado até a ilha de Tule, às costas da Noruega e ao Báltico; Laguarda Trias estudou-as cuidadosamente, mas a verdade é que tais pretendidas observações foram todas feitas em terra e em lugares desconhecidos (apenas de uma delas se sabe que teve lugar em Marselha); o seu interesse para a náutica é, por conseguinte, nulo ou muito longínquo. As navegações mediterrânicas da Idade Média, seriam bastante mais exigentes à medida que se intensificaram, e sobretudo depois que os pilotos começaram a utilizar a agulha marear; este acontecimento de que se não sabe exactamente a história, verificou-se, o mais tardar, no decorrer do século XIII (embora existam em autores europeus referências às propriedades da agulha magnetizada anteriores a essa data). Como consequência dele, os périplos da Antiguidade, já então chamados portulanos, passaram a acrescentar às distâncias que separavam dois portos o rumo (magnético) que o piloto devia adoptar para se dirigir de um a outro.
Dois outros aperfeiçoamentos da náutica aparecem também antes do século XV: a carta de navegar (a que modernamente se deu o nome de carta-portulano, por estar intimamente relacionada com os textos náuticos designados por portulanos) e a toleta ou raxon de marteloio. Quanto à carta, e a despeito de muitas especulações que em torno do seu traçado têm sido feitas, continuo persuadido que ela de facto surgiu exclusivamente como desejo de dar expressão gráfica aos portulanos; quer dizer que, em minha opinião, não seguiu qualquer sistema de representação matemática, como muitos historiadores pretenderam, por vezes relacionando-a sobre o muito falado sistema de projecção de Marino de Tiro, de que não há notícias satisfatórias; um estudo atento das cartas deste tipo mostra, com efeito, que nelas se utilizaram os elementos que estavam escritos nos portulanos, e que foram transpostos para o desenho tal como hoje ainda se faz um levantamento topográfico expedito, para representação de áreas restritas; é claro que, dada a extensão das áreas representadas na carta portulano, ela apresentava-se geograficamente errada; mas cortada de linhas de rumos magnéticos (inicialmente em números de dezasseis, que foi dentro de pouco tempo duplicado), ou seja, exactamente os rumos seguidos pelos pilotos, adaptava-se perfeitamente à náutica, quer dizer, estava nauticamente correcta. Tanto assim é que os seus erros só vieram a ser notados pelos seus utilizadores quando a arte de navegar passou a recorrer a outros dados que entravam em conflito aberto com o traçado da carta.
Os dois dados até aqui referidos saíram da prática dos pilotos; os portulanos correspondiam ao mais elementar cuidado de preservar experiência vivida, e não envolviam, de início (na sua fase de périplos) mais do que o cálculo estimado das distâncias percorridas (com tendência para arredondar os números para as centenas, nos textos da Antiguidade) e a leitura, feita pela bússola, do rumo adoptado; o desenho da carta, embora exigisse já uma técnica (e ficaram célebres as escolas mediterrânicas de Génova, Veneza e Maiorca), não implicava mais do que alguns conhecimentos muito elementares de geometria». In Luís Albuquerque, Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses, Conselho da Europa, 1983, Biblioteca Breve 73, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Livraria Bertrand, Instituto Camões.

Cortesia BibliotecaBreve/JDACT

domingo, 7 de junho de 2015

Pedro Nunes. Os Homens do Mar do seu Tempo. «Tal ideia, que assentava sem dúvida nos dois pequenos tratados de Nunes intitulados Em defensão da carta de marear e Sobre certas dúvidas da navegação (impressos em 1537 juntamente com o Tratado da Esfera)…»

jdact

Pedro Nunes e os homens do mar do seu tempo
«Tornou-se desde há muito corrente a afirmação de que o matemático Pedro Nunes, cosmógrafo de João III desde 1529 e cosmógrafo-mor do reino a partir de 1547, desempenhou um papel de grande relevo no aperfeiçoamento da arte náutica portuguesa da sua época. Tal ideia, que assentava sem dúvida nos dois pequenos tratados de Nunes intitulados Em defensão da carta de marear e Sobre certas dúvidas da navegação (impressos em 1537 juntamente com o Tratado da Esfera), veio há quase uma quarentena de anos a reforçar-se com a divulgação de um outro texto noniano, até então desconhecido, o opúsculo para que foi oportunamente encontrado o título, com que corre, de Defensão do tratado da rumação do globo para a arte de navegar. O manuscrito deste trabalho do matemático andou desencaminhado em arquivos italianos, por culpa de um cosmógrafo-mor do século XVII, Luís Serrão Pimentel, que o ofereceu ao grão-duque de Toscana, Cosmo de Medicis, quando em 1669 este passou por Portugal numa curta visita de aproximadamente dois meses; a primeira folha do manuscrito, que Giacinto Manuppella desencantou na Biblioteca Nacional de Florença, atesta tal procedência, pois ostenta a seguinte dedicatória de Pimentel: Serenissimo Senhor Cosmo, Terceiro Grande Duque de Toscana, este manuscrito do insigne Petro Nonio Salaciense, offerece, dedica e consagra a Vossa Alteza Serenissima o Engenheiro Mor e Cosmographo Mor dos Reynos e Senhorios de Portugal. Seu humilíssimo servo Luiz Serrão Pimentel; aquele professor e lusófilo italiano logo fez chegar cópia do precioso achado à mão de Joaquim Carvalho, que era então activo membro da comissão da Academia das Ciências encarregada de publicar as Obras de Pedro Nunes, e o professor conimbricense apressou-se a editar o texto com uma erudita e útil introdução, no ano de 1952. Não vem a propósito proceder agora à análise desta obra de Pedro Nunes, trabalho que se guardará para outra publicação, por reclamar o desenvolvimento de cálculos que seriam aqui descabidos; bastará dizer que, como em outros trabalhos seus, Pedro Nunes baseia toda a exposição em considerações de carácter geométrico; ou seja, esquecendo o recurso à trigonometria (o que é incompreensível, pois chegou a anunciar um trabalho sobre tal matéria), que podia facilmente evitar-lhe alguns lapsos; e ainda informar que este escrito vem na sequência de ideias expostas num dos tratados de 1537, exactamente o primeiro dos acima citados. Sobre este último ponto não pode, aliás, haver quaisquer dúvidas. Com efeito, no introito da obra, o matemático dirige-se ao infante Luís (iá veremos mais de perto em que termos) e refere-se a críticas que num livro escrito por um bacharel não individualizado sobre o arrumar do globo tinham sido feitas ao que sobre isso escrevi na obra que dirigi a Vossa Alteza; e esta obra é, de facto, o tratado em defensão da carta de marear, que foi dirigido ao muito esclarecido e muito excelente príncipe o infante Luís.
No entanto, não é suficiente saber-se que Nunes escreveu sobre a astronomia náutica e sobre a cartografia para estarmos autorizados a afirmar que a sua interferência nas navegações portuguesas do século XVI foi altamente positiva; também se torna necessário apreciar o alcance prático dessas contribuições e o modo como elas foram encaradas pelos marinheiros do seu tempo. Quando, neste duplo sentido, procuramos inteirar-nos sobre a repercussão que tiveram as suas obras e as soluções que nelas propunha, verifica-se logo que o cosmógrafo-mor foi criticado pelo menos por um outro cosmógrafo e que a prioridade de algumas ideias que apresentou como inovadoras lhe foi disputada. Falemos disso um pouco. Ficou dito atrás que o opúsculo Defensão do tratado da rumação do globo para a arte de navegar é dedicado ao infante Luís, e que no primeiro parágrafo da introdução, dirigindo-se a este príncipe, o autor alude a umas críticas que haviam sido feitas ao Tratado em defensão da carta de marear. O autor desses reparos foi o bacharel Diogo Sá, que publicou em Paris, no ano de 1549, um texto latino, sob o título De Navigationi Libri Tres, em que é agressivo para com o cosmógrafo-mor; e sabemos ser dele que este se defende naquele escrito, porque quase no final da exposição Nunes volta ao assunto e escreve: Dizem mal de meus tratados aproveitando-se deles e usando muitas vezes de minhas próprias palavras, e querendo falar em tudo, danão tudo; ora, fora, de facto, Diogo Sá quem usara as próprias palavras de Nunes, colocando-as na boca da Matemática na parte do livro em que ela dialoga com a Filosofia, a quem cabe expor as ideias do autor do De Navigationi.
Nessa parte final, em que explicita com mais clareza os seus pontos de vista, Pedro Nunes mostra que estava bastante magoado com a crítica; declarando escrever com desgosto, pois se considerava no direito de esperar ser tratado com mais respeito, afirma, com certo orgulho, porque eu primeiramente nestas partes tratei a Cosmografia por modos científicos e engenhosos, onde não se sabia mais que buscar um lugar em Ptolomeu e ler por Pomponio Mela. Achei como se tomasse a altura do Sol a toda a hora do dia e outras coisas proveitosas para a navegação. Adiante veremos que outros contributos terá ele dado para a solução de problemas náuticos; anote-se aqui somente que não parece ter ido muito além de Ptolomeu, de quem traduzira o livro I da Cosmografia, com um extenso comentário, no Tratado da Esfera; quanto ao livro elementar de Pompónio Mela, se é certo que fora obra de referência muito usada por Duarte Pacheco Pereira, portanto anteriormente a Nunes, também é verdade que João de Castro ainda a ele recorre depois do magistério do cosmógrafo. Ao terminar as alusões aos seus méritos e aos trabalhos, em que se não esquece de incluir o ensino dos príncipes Luís, Henrique e Duarte, o cosmógrafo mostra-se desanimado com as críticas, e por isso declara: Tenho terminado por estarazâo, acabando de alimpar obras que escrevi, passar meus estudos à Filosofia e largar'lhes as Matemáticas, no estudo das quais perdi a saúde irremediavelmente». In Luís Albuquerque, As Navegações e a sua Projecção na Ciência e na Cultura, Gradiva, Colecção Construir o Passado, 1987.

Cortesia de Gradiva/JDACT

Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses. Luís de Albuquerque. «Todavia, no caso em que o homem de ciência, obcecado pelas suas ideias a ‘priori’, falseia os resultados, ou supõe lícito interpretá-los abusivamente de modo favorável ao seu ponto de vista…»

jdact

«(…)
Sobre o Descobrimento da América. Uma pedra e um mapa I
Começarei pela pedra com inscrições, que é uma fantasia relativamente recente sobre o descobrimento do nordeste da América do Norte, com honras de museu, que merecia em termos diferentes, e também com honras de réplicas, que de modo algum merece com o significado que lhe dão; iremos ver porquê. O rochedo, matéria de acesa e longa polémica, encontrava-se numa das margens do rio Tauton, mas de facto foi removido há anos para o Dighton Rock Museum, de mistura com objectos associados com os Descobrimentos portugueses, em parte ofertas do Museu da Marinha de Lisboa e em parte dádivas da Fundação Calouste Gulbenkian; isto diz-nos o médico português emigrado naquela área dos Estados Unidos, Manuel Luciano Silva, que tem sido um estrénuo defensor da teoria de a pedra ser um testemunho irrecusável da presença naquelas terras americanas, durante pelo menos quase uma década, do infeliz navegador Miguel Corte Real. Com persistência e convicção notáveis, mas também dignas de causa com melhores raízes, tem publicado folheto após folheto, escrito carta sobre carta a sucessivos governantes do nosso país, pronunciando palestra atrás de palestra em rádios lusófilas do estado americano em que se radicou (e em que vivem inúmeros portugueses) e indo até ao limite de romper relações pessoais com quem põe sérias dúvidas em decifrar no pedregulho o que ele lá teima em ler e ver. Como se divergências de leituras epigráficas tivessem alguma coisa a ver com o possível convívio amável entre os que vivem a mesma época e falam a mesma língua materna.
E, no entanto, a celebridade da pedra de Dighton não começou por diligências deste médico beirão; iniciou-se até uns dez anos antes de ele ter nascido. De facto, Edmund Delabarre, professor da Brown University, e por sinal professor de Psicologia, interessado nas inscrições gravadas em pedras da região, publicou em 1916 um primeiro artigo sobre o rochedo do rio Tauton e o emaranhado das inscrições que nele se desenharam; outros artigos seus se seguiram, e a teoria, sobre a pedra acabou por ser exposta num volumoso livro (360 páginas) intitulado The Dighton Rock, que saiu a lume em 1928 na cidade de Nova Iorque. Delabarre teve a princípio naturais perplexidades perante os traços entrecruzados e sobrepostos do rochedo; e quem quer que o tenha visto (vi-o ainda junto do rio Tauton há muitos anos) logo compreende as dúvidas iniciais do professor americano; dúvidas que também então me assaltaram, e, o que é mais sério, igualmente intrigaram peritos em epigrafia; não o sou, nem o era Delabalre, nem o é, que eu saiba, Manuel Luciano Silva.
Perante essas dificuldades lembrou-se Delabarre de fotografar a pedra iluminada artificialmente; penso que com diversas luzes, e estou certo que de vários ângulos de incidência; entre as muitas fotografias feitas, algumas foram colhidas quando no traçado fez incidir uma luz rasante. Isto foi realizado em meados de 1918, e marcou o ponto de partida de uma contenda histórica, que devia estar encerrada há muito tempo, mas continua viva, e agora com pompa, graças à teimosia daquele nosso compatriota. Metido em casa com as suas fotografias, Edmund Delabarre começou a procurar nelas a confirmação de ideias que o perseguiam, ou seja, a ver no conjunto de traços rectilíneos e curvilíneos das mais variadas formas, que tinha na sua frente, o que desejava ver. Seja-me permitida aqui uma reflexão à margem. Em qualquer ciência, mesmo a mais ligada à parte experimental (e muitas vezes não é bem claro para mim onde se encontra a raia de demarcação entre o teórico e o experimental…), em qualquer ciência, ia dizendo, parte-se naturalmente de hipóteses, que análises insistentes e repetidos ensaios confirmam ou desmentem; e os ensaios frustrados serão decerto em muito maior número do que os resultados espantosos (haja em vista o extraordinário número de experiências inconsequentes sobre o cancro!), sem esquecer que os positivos muitas vezes se devem a um acaso feliz (estou a lembrar-me, é claro, de Fleming e da sua descoberta da penicilina!). Se um cientista falha, volta ao princípio e retoma as suas experiências noutro sentido, tendo de ser corajoso e repetir o caminho tantas vezes quantas as necessárias para chegar a algum resultado, ou morrer sem lamentavelmente ter contribuído com qualquer novidade, por ínfima que seja, para a ciência por si cultivada. Nenhum mal vem daí ao mundo, para além do lamentável tempo perdido pelo cientista fracassado.
Todavia, no caso em que o homem de ciência, obcecado pelas suas ideias a priori, falseia os resultados, ou supõe lícito interpretá-los abusivamente de modo favorável ao seu ponto de vista (e neste caso nem sempre haverá desonestidade…), então criam-se problemas muito graves que chegam a ter repercussões de ordem social e de ordem política (claro: estamos todos a lembrar-nos de Lissenko!) Em História também assim é, evidentemente: perante um conjunto de acontecimentos ou até de um simples facto isolado (no caso vertente, a descoberta da pedra de Dighton, coberta de sinais variados), é lícito colocar hipóteses, mas é ilícito forçar tudo e usar de batota para que elas se confirmem, por muito que tais hipotéticas conclusões forçadas sejam gratas à nossa perspicácia e à nossa argúcia». In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, colecção Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1990, ISBN-972-699-258-3.

Cortesia de Vega/JDACT

As Navegações e a sua Projecção na Ciência e na Cultura. Luís Albuquerque. «Os planisférios de Ribeiro ostentam diversas cartuchas com dados importantes sobre os Descobrimentos e as técnicas de navegação, tão importantes, que não hesito em declará-las preciosas»

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A descoberta do mundo pelos Ibéricos
«(…) A par disto temos os diários de viagens. Em relação a estes dispomos de cópias dos textos de Colombo (que podemos suspeitar não serem inteiramente dignos de crédito), os diários das duas primeiras viagens de Vasco da Gama, o diário da viagem de Álvares Cabral (um pouco suspeito, é forçoso reconhecê-lo) e o diário da viagem de Francisco Almeida. Existem outros, mas estes são os mais importantes, porque nos dão as primeiras impressões dos navegadores acerca dos povos até então absolutamente desconhecidos. No diário da primeira viagem de Vasco da Gama são notáveis a precisão objectiva dos dados registados, o cuidado do seu autor (muito provavelmente Álvaro Velho) em assinalar tudo o que observou (e Camões, no seu poema, segui-lo-ia frequentemente de muito perto), mas também o desejo dos navegadores de encontrar, em qualquer parte, cristãos. Este desejo preocupou durante mais tempo a mente dos Portugueses no Oriente do que a dos Espanhóis na América; neste diário, Álvaro Velho chega a supor a existência de uma cidade na costa oriental africana, separada em duas partes, habitadas exclusivamente por cristãos e muçulmanos; aceita a ideia de que muitos dos pequenos reinos indostânicos estariam povoados por católicos; em Melinde pensa ser visitado por irmãos de religião, etc. Apesar da ausência de verdadeiros cristãos, empreendeu-se o movimento missionário no Oriente, o que fez com que se gastassem enormes somas sem grande proveito. A par dos diários de bordo, devemos ter em consideração as cartas dos viajantes, às quais já nos referimos. Este corpus tem uma enorme importância, como testemunha que é do descobrimento do mundo, mas também como documento inspirado pela realidade que estava ao alcance do observador. Não posso e não quero levantar aqui a discussão um pouco estéril da sua autenticidade, em particular das cartas de Vespúcio, por exemplo; mas quero deixar dito que o conjunto de todas estas cartas (e haverá ainda certamente bastantes a descobrir) representa um dado importante como testemunho das viagens e contactos estabelecidos com os povos de todo o mundo. Devo referir como paradigmática a carta escrita do Brasil por Vaz de Caminha, quando do descobrimento de Cabral: o sentido da objectividade, a preocupação de fazer um relatório correcto, de observar as coisas dos dois lados (o dos navegadores e o dos Índios), e tudo isto imbuído de uma verdadeira compreensão por um povo com o qual tinham estabelecido os primeiros contactos europeus, são particularidades que conferem a esta carta um lugar único no conjunto da documentação dos Descobrimentos.
Caminha adianta nesta carta a ideia de que os navegadores perseguiriam a busca dos países ricos em ouro, em prata e em pedras preciosas; fá-lo, aliás, de uma forma bastante crítica, mas não podemos esquecer que o autor do diário da primeira viagem de Gama notaria diversas vezes a riqueza dos países da África oriental e suporia mesmo que, num desses países, as pedras podiam ser apanhadas em certos lugares com cestos; não devemos também esquecer que, quando; em Calecut, o mouro Moçaide chega à nau de Vasco da Gama, o texto põe na boca do muçulmano a boa notícia: os Portugueses encontrariam rubis e esmeraldas por toda a parte! Depois das cartas e roteiros devemos dar atenção às cartas geográficas ou náuticas. O planisfério dito de Cantino dá-nos valiosas informações acerca das mercadorias orientais, através de apontamentos feitos perto dos lugares mais importantes desta rede comercial que atraía os Portugueses. Partindo de um outro ponto de vista, devemos salientar que esta carta, justamente célebre, nos dá ainda valiosas informações acerca da navegação praticada no oceano Índico no momento da chegada dos Portugueses. Para citar apenas mais um exemplo, devo dizer que os planisférios de Diogo ou Diego Ribeiro (um português instalado em Sevilha que trabalhava para os reis de Espanha) contêm inúmeras informações de grande importância sobre o conhecimento do mundo na sua época (1525-32), e nomeadamente sobre o conhecimento da América. Os planisférios de Ribeiro ostentam diversas cartuchas com dados importantes sobre os Descobrimentos e as técnicas de navegação, tão importantes, que não hesito em declará-las preciosas. Parece-me necessário acrescentar que muitos cartógrafos do século XVI fornecem também informações interessantes para a história dos Descobrimentos e do conhecimento do mundo. Penso que, nesse domínio, seria preciso retomar o estudo das cartas da época, não mais com a preocupação de as catalogar ou de escrever a biografia dos seus autores, mas no sentido de se lerem todas as legendas, de observar a transformação da representação das costas, das ilhas, das terras, etc. Este trabalho é, no meu entender, uma verdadeira história, tornando-se necessário levá-lo a cabo o mais cedo possível». In Luís Albuquerque, As Navegações e a sua Projecção na Ciência e na Cultura, Gradiva, Colecção Construir o Passado, 1987.

Cortesia de Gradiva/JDACT

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Antão Gonçalves. O mercador-navegador como agente da Expansão. «Que visava a proposta de Antão Gonçalves? Não é necessário imaginá-lo, porque o cronista transcreve-lhe o discurso e este declara-o directamente: o que formoso acontecimento seria, nós que viemos a esta terra para levar carga de tão fraca mercadoria…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Entre os vários navegadores que serviram no tempo do infante Henrique salientou-se, sem dúvida, Antão Gonçalves; pelo menos o cronista Azurara presta-lhe grande atenção, citando-o com muita frequência, para o acompanhar de perto nas suas aventuras pela costa de África. Por isso o escolhemos para figurar neste livro, tomando-o como modelo do navegador típico do seu tempo, embora, e porventura, Antão Gonçalves tivesse sido dos mais insistentes nas suas tentativas exploratórias e comerciais. Era ainda muito jovem homem assaz de nova idade, diz Azurara, mas já desempenhava o cargo de guarda-roupa do Infante, quando este, em 1441, estando o país em sossego (esta alusão tem em vista a primeira grande crise na regência do Reino, evidentemente), lhe entregou a capitania de um navio pequeno com fins meramente comerciais: com efeito, Gonçalves deveria ir carregar peles e óleo de lobos-marinhos, a lugares já bem conhecidos da costa africana; explica o cronista que, para lhe não dar uma incumbência mais honrosa, o príncipe teve em atenção a sua pouca idade. Antão Gonçalves é que se deve ter sentido por isso ferido no seu orgulho; assim, não é de estranhar que, depois de ter carregado a sua embarcação com a mercadoria que lhe fora encomendada, chamasse os seus vinte e um companheiros (as tripulações das caravelas deviam oscilar então entre vinte e trinta homens) e, ao que parece, com o apoio do seu amigo Afonso Guterres, propôs-lhes que levassem a acção mais longe do que lhes fora expressamente indicado; e isto por ser vergonhoso (considerava ele) regressar com tão pequeno serviço.
Que visava a proposta de Antão Gonçalves? Não é necessário imaginá-lo, porque o cronista transcreve-lhe o discurso e este declara-o directamente: o que formoso acontecimento seria, nós que viemos a esta terra para levar carga de tão fraca mercadoria, acertarmos agora em nossa dita de levar os primeiros cativos até a presença do nosso príncipe! O plano era o de um assalto em terra, pela calada da noite, de uns dez homens entre os mais dispostos para isso, com o intuito de apanharem algum pequeno grupo desprevenido e aprisionar pelo menos um azenegue; proposta que foi aceite sem dificuldade pelos seus companheiros. A acção veio a ter lugar na noite imediata, os dez aventureiros saíram em terra e internaram-se até umas três léguas da costa, isto é, até encontrarem trilhos de homens, que tinham deixado um rasto em sentido oposto ao daquele em que eles seguiam. Porque estavam cansados e sequiosos, Gonçalves propôs o regresso pela linha marcada pelos azenegues, com a esperança de encontrar algum grupo isolado sobre o qual facilmente fizessem presas; o que foi aceite. No caminho toparam, na verdade, um mouro que seguia só em um camelo e foi capturado, apesar de se ter defendido com as suas azagaias; rendeu-se.
Alguns dos navegadores que se distinguiram nesta primeira fase dos descobrimentos foram armados cavaleiros, numa clara demonstração da sua origem plebeia. Nuno Tristão, já cavaleiro, como conta Azurara, armou Antão Gonçalves, gesto que foi o primeiro que teve lugar em aquelas partes. Das viagens de Antão Gonçalves, típico navegador-comerciante, ao Rio do Ouro, resultaram duas consequências importantes para a evolução do processo de expansão: o comércio de escravos e o aparecimento do primeiro ouro. Quando Guterres o feriu com um dardo; adiante viram sobre um outeiro o grupo a que o mouro aprisionado pertencia e perseguiram-no; mas acabaram por considerar mais prudente não o acometer, por estar a cair o dia, por se encontrarem cansados e o número dos mouros a atacar ser elevado; apanharam, no entanto, uma moura negra, que era serva de algum daqueles que se encontravam no outeiro, a captura foi feita por decisão de Antão Gonçalves, mas contra a vontade de outros, que teriam preferido tê-la deixado livre. Esta acção, que parece de pequena monta, foi então considerada de grande valor; e como entretanto chegara àquele lugar Nuno Tristão, todos os companheiros de Antão Gonçalves quiseram que ele fosse armado cavaleiro, o que, na verdade, foi feito, como se alude ao tratarmos da biografia de Nuno Tristão.
Também no trecho dedicado a Tristão é dito como o Infante recebeu com satisfação tanto Antão Gonçalves como o navegador que o armara cavaleiro, não só pelo lucro que tirava da venda dos cativos, mas pela santa intenção que o príncipe tinha de salvar almas perdidas. Antão Gonçalves estava, porém, destinado a ser pioneiro em acções fundamentais que os Portugueses fizeram na costa ocidental africana; além de ter sido ele a fazer os primeiros cativos, como acaba de ser dito, logo no ano imediato ao dessa viagem foi fazer o primeiro resgate como se lê no título do capítulo XVI da Crónica.
Que resgate? A simples troca do mouro honrado, que viera na leva dos dois navios, por uns dez mouros negros, que por ele seriam dados em troca. Antão Gonçalves foi quem propôs o negócio a Henrique, baseando-se em três ordens de razões: 1.ª, era melhor tentar salvar dez almas do que três (ao nobre mouro juntavam-se, na troca, dois moços), visto que, embora estes fossem trocados por negros, mesmo assim estes tinham alma com os outros; 2.ª, que através desses negros obtidos na permuta poderia eventualmente saber da terra muito mais longe; 3.ª, que ele, Antão Gonçalves, teria maneira, quando no trato falasse, de se trabalhar de saber as mais novas que pudesse. Assentiu o príncipe, fazendo notar ao peticionário que, tendo por bom serviço as informações que ele se propunha recolher, não somente daquela terra desejava de haver sabedoria, mas ainda das Índias, e da terra do Preste João, se ser pudesse. E de esclarecer que o Preste João, mais tarde reconhecido como imperador da Etiópia ou Abissínia, (como se refere ao tratar do padre Francisco Álvares e de Pêro da Covilhã), era ainda, na primeira metade do século XV uma personagem mítica. A partir de uma carta apócrifa, que lhe fora atribuída e divagara pela Europa nos últimos séculos da Idade Média, admitia-se que se tratava de um rei muito poderoso e riquíssimo, cujos territórios centrais se situavam para além do Nilo portanto, em áreas ainda consideradas por esse tempo como parte da Ásia, mas com domínio que cobriam quase toda a África; alguma cartografia dos séculos XIV a XV situaria a Etiópia em vários lugares africanos; e em especial uma Etiópia arenosa na costa ocidental da Africa e a Etiópia Meridional na África do Sul! Deste e de outros passos da Crónica de Azurara em que a relação com os habitantes da costa de África foi preocupação dominante dos primeiros navegadores. Comunicação nem sempre facilitada pela diferença já estabelecida entre os dominadores maometanos e a restante população indígena». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, Antão Gonçalves, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

Cortesia de Caminho/JDACT

sábado, 30 de agosto de 2014

O Mediterrâneo como fonte de informação do Oriente. Martim Lopes. «Começa o doutor Martim Lopes por tecer considerandos sobre as viagens empreendidas por portugueses no decorrer do século que então findava, fazendo especial menção das que realizaram em tempo do Infante e dos reis Afonso V e João II»

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«Até hoje ainda se não conseguiu descobrir qualquer pista que nos informasse com segurança quem terá sido o doutor Martim Lopes. Da carta que de Roma escreveu ao rei Manuel I, em 1 de Fevereiro de 1500, publicada por António Baião, que a encontrou no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, pode depreender-se que vivia habitualmente na corte romana; e é também lícito concluir, e de um modo irrefutável, que tinha a curiosidade aguçada para o conhecimento de novos reinos e de novas terras, pois a carta é quase que exclusivamente dedicada a indicações sumárias sobre os seus itinerários de andarilho. Vamos seguir essa única fonte de informação de que dispomos sobre as suas aventuras. Começa o doutor Martim Lopes por tecer considerandos sobre as viagens empreendidas por portugueses no decorrer do século que então findava, fazendo especial menção das que realizaram em tempo do Infante e dos reis Afonso V e João II; todavia, alude a elas de um modo geral, apenas reconhecendo que todas se tinham dirigido para sul. A essas viagens havia que acrescentar a grande expedição de Vasco da Gama, efectuada já no reinado do monarca a quem se dirigia e que tinha levado os Portugueses à Índia e, segundo ele diz, com claro exagero, também ao mar Vermelho. Com efeito, é bem sabido que até à data em que a carta foi subscrita nenhuma embarcação portuguesa tinha penetrado nesse mar. Por outro lado, não pode deixar de ser assinalado que, apesar de a notícia da viagem de Gama se ter espalhado rapidamente pela Europa, Martim Lopes não parece mostrar-se muito seguro da sua realização; as informações sobre essa recente e decisiva expedição tinham-lhe chegado, aliás, por via oral, circunstância que o aconselhava a não ser afirmativo, como deixa expresso através de duas palavras cautelosas segundo dizem que intercala no trecho em que a ela se refere. Verificando que a tendência dos seus compatriotas viajantes era dirigirem-se para o Meio-Dia, e que poucos ou nenhum, entre os que seguiam para o Norte, ultrapassavam a Inglaterra e a Flandres, tomara ele mesmo a decisão de empreender uma viagem de horizontes mais largos, ou seja, no sentido de fazer o conhecimento de regiões da nossa gente não sabidas, como escreve. A carta reduz praticamente a peregrinação realizada às suas escalas mais importantes. Diz Martim Lopes que, ao sair de Roma, se dirigira à Alemanha, e daí descera a Esclavónia; esta designação ptolomaica (como aliás muitas outras da missiva, o que se assinalará em cada caso) veio mais tarde a ser substituída por Eslavónia, e integrada na Croácia; abrangia três condados, e chegava até o Adriático. Da Esclavónia passara à Boémia (também assinalada nas tábuas das edições ptolomaicas), à Hungria, à Polónia e à Valáquial esta última nação era, ao tempo, um principado danubiano, que está hoje integrado na Roménia, constituindo a área a poente desta república. Deixando a Valáquia, entrara na Turquia, que visitara em grande parte, na Rússia (entendida aqui, como é evidente, no sentido clássico da designação) e na Tartária, ambos topónimos registados nas tábuas das edições quatrocentistas de Ptolomeu, esclareça-se que a Tartária se estendia até o mar Negro, ocupando uma boa área da actual Ucrânia. Continuando no sentido do sul, atingira o mar (ou lago) Meotes (ou seja, o Palus Maeotes de Ptolomeu), identificável com o mar de Azove sem qualquer sombra de dúvida. Esclarece o doutor Martim Lopes que daí se podia passar por terra, em poucas jornadas, ao mar Vermelho, à Arábia e ao Egipto; mas não quantifica os dias de viagem nem diz qual a via a seguir. Continuando o seu caminho, atingira o rio Tanais (quer dizer, o Don), que em certa cartografia medieval aparece representado a separar a Europa da Ásia; para o signatário da carta que se está a seguir, essa separação fazia-se, porém, nos montes Rifeios, como ele diz aliás expressamente. Os montes Rifeios são identificáveis com os Cárpatos, e neste sentido o autor não teria razão ao indicá-los como zona fronteiriça entre os dois continentes só, porventura, o terá feito porque a Turquia se estendia então pela Europa, e a Turquia era asiática. Não seria, porém, a única fronteira e ele mesmo parece dar-se conta disso quando escreve que ali soubera que os chamados montes Hiperbóreos não ficavam muito distantes, e que, para além deles, e não muito distanciada, se situava a India». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, Afonso de Albuquerque, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

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terça-feira, 20 de maio de 2014

Tomé Pires. A Presença do Espírito Científico. Viajantes. Aventureiros. Luís Albuquerque. «… desempenhava o lugar de boticário de João II, e que ele se lançara na mesma profissão, sendo apontado por Fernão Lopes de Castanheda como boticário do príncipe Afonso; e a informação é de certo modo corroborada por Afonso de Albuquerque…»

Tomé Pires, boticário e filho de boticário
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«É bastante obscura a vida de Tomé Pires antes de ter chegado à Índia. De Malaca escreveu ao irmão João Fernandes uma carta datada de 7 de Novembro de 1512, que pouca luz faz sobre o caso; pelo endereço sabe-se que o irmão estava em Lisboa e há no texto referências a familiares, nomeadamente a um cunhado que vivia com o signatário; além disso, Pires confessa que enriquecera, mas não incita o destinatário a seguir-lhe o exemplo, antes lhe dá a entende que o não faça, por causa dos trabalhos em que estaria envolvido se intentasse tal aventura. Do que avulsamente nos dizem as crónicas apura-se que seu pai desempenhava o lugar de boticário de João II, e que ele se lançara na mesma profissão, sendo apontado por Fernão Lopes de Castanheda como boticário do príncipe Afonso; e a informação é de certo modo corroborada por Afonso de Albuquerque, que numa carta o designa por boticário do príncipe. O facto de o governador ter silenciado o nome deste levou os historiadores a desentenderem-se, pois alguns pretendem que tal príncipe fosse o futuro João III. É um problema de secundária importância, e até prova em contrário devemos aceitar o que de modo tão afirmativo nos transmitiu Castanheda. O príncipe será, pois, o único filho legítimo de João II, falecido prematura e desastrosamente em 13 de Julho de 1491.
Para exercer o cargo de boticário deste infante de Portugal, não podia Pires ter menos de uns vinte a vinte e cinco anos à data do desastre que vitimou o herdeiro do trono, o que situa o nascimento do boticário entre os anos de 1465 e 1470. Armando Cortesão, a quem se deve a melhor biografia de Tomé Pires, chama de resto a atenção para os termos em que o seu biografado, numa carta de 10 de Janeiro de 1513, alude a Pêro Pessoa, que sucedera ao experiente Rui Araújo como feitor de Malaca; com efeito, Pires considera-o tão mancebo, dando a entender que lhe repugnava, como escrivão, servir sob as suas ordens. Isto mostra que seria homem de idade madura, entre os quarenta e três e os quarenta e oito anos, se está certa a nossa hipótese acerca da data do seu nascimento. Em um outro passo da mesma carta parece confirmar essa indicação acerca da sua idade; de facto, apontando a grande importância da posse de Malaca para a coroa portuguesa, deseja que nela estivessem três ou quatro homens de barbas brancas que não entrassem na fazenda de El-Rei; o homem experiente, que ele era, tinha dúvidas quanto à qualidade do serviço de gente jovem, posição que parece confirmar que já não seria novo.
Quanto ao lugar do seu nascimento, tem sido apontada a cidade de Leiria. Quem espalhou a notícia foi Faria Sousa, mas a origem dela está na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto; diz este aventureiro que, no decurso das suas deambulações pela China, em 1543, encontrara uma luso-chinesa, que sabia algumas palavras de português e declarou chamar-se Inês de Leiria; seria filha de Tomé Pires, e o patronímico indicaria a terra da origem do seu progenitor. E uma suposição plausível, que em todo o caso não convenceu Armando Cortesão, pois a considerou mera conjectura. Pires partiu para a Índia na armada de Garcia de Noronha, que largou de Lisboa em Março ou Abril de 1511; só duas das seis velas da armada chegaram no mesmo ano ao seu destino, segundo diz o Livro das Armadas, e Pires teve a sorte de seguir embarcado em uma delas. Segundo ele mesmo afirma, em carta endereçada a Afonso de Albuquerque, ia despachado como feitor das drogarias, tendo três homens ao seu serviço, que com ele embarcaram em Lisboa; além disso, ter-lhe-ia sido também entregue uma botica, avaliada em quatro ou cinco mil reais, que levou consigo. Sabe-se ainda que o lugar lhe rendia de vencimento trinta mil reais por ano e que tinha o direito de negociar anualmente vinte quintais de drogas, à sua escolha; pelo menos durante algum tempo, Pires optou pela canela. Armando Cortesão diz-nos que terá chegado a Cananor à volta de l0 de Setembro de 1511, tendo-se instalado nessa fortaleza, onde de facto exerceu o cargo para que ia nomeado, como é lícito inferir da leitura de uma das cartas que dele se conservam». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, Afonso de Albuquerque, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

Cortesia de Caminho/JDACT

Afonso Albuquerque. Navegadores. Viajantes. Aventureiros. Luís Albuquerque. «É verdade que Socotorá de pouco ou nada valeu para o objectivo que levou à sua conquista, mas esta desilusão, que levou, poucos anos depois, ao abandono da fortaleza construída pelos portugueses na ilha…»

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A construção de um império marítimo
«(…) Esta sua primeira aventura guerreira no Oriente é típica do procedimento que manteria sempre; com efeito, e como já ficou dito, Albuquerque tinha uma ideia muito segura da possível política a seguir para avantajar o domínio do seu rei no oceano Índico, mas foi com muita frequência infeliz nos meios bélicos escolhidos para a levar à prática; as suas vitórias, aliás quase sempre incensadas pelos historiadores, em geral só apareceram depois de rotundos ou de relativos fracassos. Regressado ao reino dessa primeira experiência no Oriente, por quanto tempo se deteve aqui? Diz João de-Barros, e outros autores confirmam, que, por decisão real, foi agregado à armada da carreira da Índia no ano de 1506, cujo comando fora entregue a Tristão da Cunhal; este devia regressar logo com a preciosa carga de especiarias, mas Afonso de Albuquerque tinha por missão expressa andar com os cinco navios na costa da Arábia, ou seja, de cortar o comércio marítimo que estava em mãos de muçulmanos. Cunha e Albuquerque comandavam armadas independentes, mas deviam juntar-se para desencadear uma acção que desmantelasse a fortaleza moura da ilha de Socotorá, onde Diogo Fernandes Pereira estivera recentemente; o porto da ilha era então considerado estratégico para a vigilância do movimento marítimo do estreito de Babelmândebe, e por isso estava determinado que lá ficasse instalada uma guarnição portuguesa. Os dois capitães largaram juntos do Tejo em 6 de Março daquele ano, sendo os quatro companheiros do futuro governador Francisco Távora, Manuel Teles Barreto, Afonso Lopes Costa e António Campo. Não vamos aqui deter-nos com o descobrimento das ilhas do Atlântico Sul que ainda hoje têm o nome de Tristão da Cunha, nem com as acções de reconhecimento e de guerra que este capitão-mor desenvolveu ao longo da costa oriental africana; interessa-nos falar de Afonso de Albuquerque, que só ficou de posse absoluta do comando da armada depois de tomada a fortaleza de Socotorá, quando Tristão da Cunha se dirigiu para a Índia, a fim de proceder à carga das suas naus.
Como se disse, a principal incumbência do futuro governador era guardar com as suas naus a entrada do mar Vermelho; embora João de Barros diga que também lhe tinha sido recomendada pelo rei a conquista da Arábia (o que parece um claro exagero), é certo que nem o primeiro plano que expressamente lhe cumpria executar pôde ser cumprido. Albuquerque talvez tenha pensado que a posse da ilha de Socotorá não era suficiente para servir de base estratégica para essa missão de vigilância, e lançou por isso as suas vistas para perspectivas mais largas; sem que tal estivesse explícito nas ordens reais, considerou que, se a entrada e a saída do mar Vermelho podiam ser barradas com um bloqueio a partir de uma base sitiada em Socotorá, outro caminho para a penetração das especiarias na Europa, o estreito de Ormuz, estava aberto ao comércio oriental que se quisesse subtrair à fiscalização portuguesa. É verdade que Socotorá de pouco ou nada valeu para o objectivo que levou à sua conquista, mas esta desilusão, que levou, poucos anos depois, ao abandono da fortaleza construída pelos portugueses na ilha, só com o tempo se tornaria bem clara. É certo igualmente que Barros explica a alteração ao projecto inicial pela circunstância de a armada ter encontrado tempos contrários para navegar ao largo de Adém.
O historiador estaria bem informado; todavia, parece-nos significativo verificar que, logo que Afonso de Albuquerque se viu com a liberdade de decidir pela sua vontade e de acordo sobretudo com os seus planos, zarpou de Socotorá em 20 de Agosto de 1507, decerto já com o propósito de ir até Ormuz, passando por várias cidades ou lugares de que os Árabes eram senhores na costa da Arábia, embora na dependência daquele reino; acompanharam-no as naus que tinham partido sob o seu comando de Lisboa, e mais uma nau de João da Nova e uma fusta, construída na ilha de Socotorá, cujo comando foi entregue a Nuno Vaz Castelo Branco». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, Afonso de Albuquerque, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

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sábado, 3 de maio de 2014

A Boa Esperança surge das Tormentas. Bartolomeu Dias. Luís Albuquerque. «… fora um dos companheiros de Diogo Cão em uma ou nas duas viagens que este fez, aparecendo o seu nome escrito na célebre inscrição de Ielala. É de Bartolomeu e da bem sucedida viagem que ele orientou…»

O primeiro a dobrar o cabo das Tormentas
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«A decisão de enviar nova frota para procurar a ligação do Atlântico com o Índico, que João II havia de tomar imediatamente depois de se ter reconhecido que as duas tentativas de Diogo Cão se concluíram por desilusões, mostra que o rei estava absolutamente convencido de que as duas grandes massas oceânicas se comunicavam. Em todo o caso, é de presumir que o Príncipe Perfeito não esperasse, com a iniciativa então tomada, para dar seguimento a projectos antigos, que os seus enviados, por muito longe que lograssem ir, chegassem até o oriente: com efeito, se tal estivesse na sua ideia, não teria decerto enviado por terra, quase simultaneamente, Afonso Paiva e Pêro Covilhã, este com a missão expressa de obter informações pormenorizadas sobre os centros indostânicos onde comerciavam as especiarias, tarefa de que ele se desempenhou de modo satisfatório. Para pôr em prática a nova tentativa de alcançar aquele objectivo em que se empenhara a fundo desde o início da década de 1480, o monarca mandou aparelhar uma armada de três caravelas, mas a história só registou o nome de uma a S. Pantaleão; esta veio a ser capitaneada por João Infante, e as duas outras tiveram por capitães Bartolomeu Dias, que era igualmente responsável pelo êxito da expedição, e o irmão deste último, Diogo Dias, que o havia de acompanhar como capitão de um navio, na viagem de Pedro Álvares Cabral, e veio a ser o primeiro português a chegar por via marítima à entrada do mar Vermelho, como a seu tempo se dirá neste livro. A navegação destas três caravelas seria entregue a pilotos escolhidos entre os mais práticos e mais famosos daquele tempo, ou seja, Álvaro Martins, João Santiago e Pêro Alenquer.
Ê de salientar que pelo menos João Santiago conhecia bem os mares a que a armada se dirigia, pois fora um dos companheiros de Diogo Cão em uma ou nas duas viagens que este fez, aparecendo o seu nome escrito na célebre inscrição de Ielala. É de Bartolomeu e da bem sucedida viagem que ele orientou que vamos agora falar. A bibliografia sobre este feito e o marinheiro que o levou a cabo é muito vasta. Seguiremos aqui a esplêndida síntese de Damião Peres, publicada na sua História dos Descobrimentos, e bem assim, mas em segundo plano, alguns trabalhos que Gago Coutinho, Luciano Cordeiro, Teixeira da Mota e Armando Cortesão dedicaram ao navegador e a vários dados adquiridos na sua viagem, de decisivo valor para o enriquecimento dos conhecimentos geográficos.
A incerteza sobre a origem e data do nascimento de Bartolomeu é idêntica a semelhantes dúvidas que existem acerca de outros navegadores e aventureiros de que nos temos ocupado. De positivo apenas se sabe que o navegador era escudeiro do rei; que navegou com Diogo de Azambuja até São Jorge da Mina, e ajudou a tomar a fortaleza; que na década de 1491-1500 desempenhou o cargo de recebedor do Armazém da Guiné; e que encontrou a morte no mar em 1500, quando a embarcação que comandava, e ia integrada na armada de Cabral, foi com mais três tragada por uma súbita tempestade, quando navegavam em águas do Atlântico Sul. Além disso, sabe-se que viajou para a Mina em 1497, navegando até Cabo Verde juntamente com a armada de Vasco da Gama.
A sua situação de escudeiro contradiz a hipótese proposta por alguns autores de que teria sido um nobre de alta estirpe. Essa ideia surgiu a partir do apelido de Novais que lhe é acrescentado numa carta de doação da capitania de Angola a um seu neto, assinada em 1571 pelo rei Sebastião; mas a data tardia deste diploma deixa dúvidas quanto à razão que levou a esse acréscimo ao nome de um descendente do navegador. Se o problema da fidalguia do nosso Bartolomeu parece ter sido de vez solucionado, pelo facto de estar documentada a sua condição de escudeiro na corte, já, pelo contrário, não pôde até hoje ser feita de modo concludente a destrinça entre o navegador e vários homónimos, alguns também ligados a actividades marítimas, que viveram pela mesma época. Damião Peres enumera alguns desses homónimos, e os documentos em que são citados foram em parte publicados por Silva Marques; mas além desses, que já não eram poucos, há ainda outros textos com referências a um Bartolomeu Dias. Citar-se-ão primeiramente os diplomas que com muita verosimilhança podem referir-se ao navegador, e depois aqueles que tratam dos seus homónimos. Quanto aos primeiros, temos de enumerar os seguintes:
  • Um alvará, de mercê, datado de 21 de Junho de 1478, que concede a um Bartolomeu Dias o quinto real das presas que tomara, como reembolso de uma quantia despendida no resgate de um escravo do príncipe João, que se encontrava cativo em Génova. O alvará está subscrito por João II, quando ainda príncipe, e diz o seguinte: Nós, o Príncipe, fazemos saber a quantos este nosso alvará virem, que nos praz fazermos por ele mercê a Bartolomeu Dias de todo o quinto que a El-Rei meu Senhor e a nós pertence de haver as presas que ele ora tomou, e isto por os doze mil reais que lhe devíamos por outros tantos que deu por um nosso escravo que achou cativo em Génova [...]
In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, Bartolomeu Dias, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

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domingo, 27 de abril de 2014

Nuno Tristão. O Escudeiro mareante como protótipo dos primeiros tempos da Expansão portuguesa. Luís Albuquerque. «… num discurso que a Crónica reproduz (ou, mais provavelmente, Azurara reinventou), propôs aos seus companheiros que saltassem em terra e fizessem por obter os primeiros cativos; com essa acção alcançavam-se dois fins»

Nuno Tristão foi um dos mais próximos colaboradores do Infante, ultrapassando o cabo Branco e atingindo a ilha de Arguim
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O Escudeiro mareante
«O que se sabe acerca da vida de Nuno Tristão, e em especial a respeito das suas viagens à costa ocidental africana, onde veio a ser morto, é-nos transmitido, com alguns pormenores de interesse, pela Crónica da Guiné de Gomes Eanes de Azurara. Foi reunindo as informações dispersas do cronista que urdimos o presente relato. Quando se iniciou nas navegações, em 1441 ou 1442, provavelmente ainda bastante jovem (mas desconhece-se o ano do seu nascimento), Nuno Tristão tinha já recebido a honra de cavaleiro; a Crónica diz dele, e não custa acreditá-la, que se tratava de um homem destemido e de boa decisão; e sem dúvida era também da inteira confiança do infante Henrique, pois fora criado desde baixa idade na câmara deste príncipe.
Sobre os motivos determinantes da sua primeira viagem, se a Crónica os não declarasse de modo expresso, era possível tecer algumas conjecturas. Podia admitir-se, por exemplo, que Nuno Tristão fosse atraído para uma possível aquisição de escravos, por compra ou por assaltos a pequenos povoados ribeirinhos. Foi através deste último procedimento que por esse tempo se iniciou a obtenção de escravos negros, acção que, de resto, havia de continuar mesmo depois de seriamente reprovada pelo infante Henrique, via gorarem-se desse modo os seus planos de estabelecer com os Africanos linhas de comércio; com os ataques repetidos, as populações da orla marítima abandonavam as suas aldeias próximas do mar, para se refugiarem no interior, deixando a costa deserta; e sem interlocutores não é possível negociar.
Seria também de supor, e com igual probabilidade, o êxito da viagem também ficaria assegurado por essa via, que o objectivo que de início a ditara fosse antes carregar o seu navio de peles e gordura de lobos-marinhos, que existiam então em grande abundância no Rio do Ouro, e já em viagens anteriores tinham sido caçados e produzido um apreciável lucro. Esta segunda alternativa podia parecer-nos a mais plausível, porque Nuno Tristão foi encontrar-se com Antão Gonçalves exactamente no Rio do Ouro; a este último capitão, que era guarda-roupa do Infante e partira do Algarve pouco tempo antes de Tristão, tinha o Infante dado a incumbência, expressa e única, de carregar aquele navio de coirama e azeite, nos dizeres de Azurara, ou seja, de peles e óleo. Acrescente-se, porém, e ainda dando crédito ao cronista, que Antão Gonçalves, depois de ter carregado o seu navio, como lhe fora ordenado, não ficara muito satisfeito por se ver limitado a uma tarefa sem relevo militar ou cavaleiresco; ele ambicionava, certamente, ascender na escala social, e não era a caçar lobos-marinhos que podia atingir esse objectivo. Por isso, num discurso que a Crónica reproduz (ou, mais provavelmente, Azurara reinventou), propôs aos seus companheiros que saltassem em terra e fizessem por obter os primeiros cativos; com essa acção alcançavam-se dois fins: o lucro adveniente da venda como escravos daqueles que pudessem capturar; e de algum ou de alguns deles o infante Henrique vir a ter conhecimento da natureza daquela terra e quantos eram os moradores dela. O que foi posto em prática, aliás com um desanimador resultado na primeira tentativa.
Estas suposições, que ajudam a situar Tristão no clima que rodeava os navegadores daquele tempo, são, em parte, rectificadas pela Crónica. Azurara afirma, de facto, que a Tristão fora entregue uma caravela armada com o especial mandado do Infante de passar além da Pedra da Galé o mais longe que pudesse, e que, além disso, procurasse capturar gente, por qualquer maneira que melhor pudesse. A viagem tinha portanto, e seguramente, dois objectivos bem definidos: prosseguir a exploração da costa ocidental africana e cativar mouros ou negros (assim se refere sempre Azurara aos prisioneiros). É possível que existisse também uma não expressa incumbência de recolher informações sobre as áreas para o interior das costas navegadas; pelo menos Tristão levava consigo um intérprete, e que pouco serviu, pelo menos nos primeiros contactos, pois não pôde entender os dois cativos que Antão Gonçalves tinha em seu poder quando os dois navegadores se encontraram; tão-pouco pôde falar com os prisioneiros que os dois capitães fizeram em conjunto. O intérprete de Tristão falava árabe, e os cativos azenegue ou sauri, à excepção de um cavaleiro nobre que estava entre eles, porventura islamizado e que, falando também árabe, se pôde entender com o língua de Tristão». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, Nuno Tristão, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

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sábado, 19 de abril de 2014

Afonso Albuquerque. Navegadores. Viajantes. Aventureiros. Luís Albuquerque. «… depois fizeram outra grande entrada, por os rios acima seis léguas contra Repelim, em que Afonso Albuquerque se houvera de perder; porque, como andava desejoso de fazer por si alguma coisa, e eles partiram de noite, para que rompendo a alva da manhã»

Na mitologia Afonso Albuquerque ocupa um lugar cimeiro
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A construção de um império marítimo
«A História dos primeiros tempos de presença dos portugueses na Índia está repleta de fantasias e de excessos. Os historiadores oficiais do século XVI, ou seja, Castanheda, Barros, Correia e Góis, empenharam-se muito frequentemente em dar da actuação dos seus compatriotas que ali desempenharam lugares de evidência uma imagem exemplar; essa visão epopeica dos acontecimentos teve eco poético em Luís de Camões, mas, em muitos casos, tem de ser corrigida. Já se mostrou como isso aconteceu a respeito de Duarte Pacheco Pereira, depois da sua meritória actividade em Cochim; mas aqui, dir-se-á que o mesmo se verifica a propósito de Afonso Albuquerque, a despeito de este ter sido, sem qualquer dúvida, o mais consciente e mais determinado dos primeiros governadores da Índia. Filho segundo de um fidalgo que era senhor de Vila Verde, Albuquerque deve ter nascido por volta de 1460; segundo os hábitos do seu tempo, quando era jovem militou nas praças do Norte de África (em Arzila, segundo as crónicas), onde se distinguiu pela sua determinação e pelo seu entusiasmo nas actividades guerreiras em que esteve empenhado; neste tempo da sua juventude terá igualmente exercido qualquer cargo subalterno na corte de João II, mas a sua vida só se tornou verdadeiramente interessante quando foi escolhido para ir ao Oriente, em 1503. Neste ano o rei Manuel I mandou para a Índia nove velas repartidas em três capitânias, de três velas cada uma, tendo esses grupos como capitães-mores Francisco Albuquerque (primo de Afonso), António Saldanha e Afonso Albuquerque; tinham o encargo de trazer especiaria oriental para o Reino, e a António Saldanha, com os dois navios que acompanhavam o seu, competia estabelecer o bloqueio da entrada do mar Vermelho, esperando as naus dos mouros de Meca, com quem tínhamos guerra, segundo os dizeres de João de Barros. Tal como este historiador fez, vamos deixar de lado a viagem de António Saldanha, e seguiremos a actividade de Afonso nesta sua primeira aventura no Oriente.
Ele chegou a Cochim quando seu primo já tinha actuado com êxito contra os rebeldes ao rei local, e se aprestava para construir uma fortaleza, onde se recolhessem os portugueses que haviam de ficar para defesa daquele pequeno reino do Malabar, que tinha sido o primeiro a mostrar-se permeável à intromissão dos intrusos europeus. Albuquerque tomou sobre si o encargo da construção do improvisado fortim, deixando ao primo a tarefa de carregar as naus; pela devoção que tinha ao santo homónimo, e também certamente por ser cavaleiro da sua Ordem, acabou por dar à fortaleza, construída fragilmente em madeira, o nome de Santiago. Não se limitou o futuro e famoso governador da Índia a esta acção, aliás fundamental, na sua primeira visita ao Oriente; invejoso do primo, quis também participar nas represálias contra os inimigos do rei de Cochim, e juntou uma frota julgada suficiente para ir, por via marítima, dar combate ao senhor de Repelim; essa iniciativa foi levada a termo com êxito, mas também com dificuldades, como dá claramente a entender Barros; o inimigo encontrava-se bem apetrechado, com fortes meios bélicos e tropas escolhidas, para o enfrentar. Esta terá sido a primeira missão de Afonso a denunciar a sua má estrela, como se diria nesse tempo em linguagem astrológica; na verdade, o grande conquistador da Índia, como é habitualmente considerado, se mostrou sempre grande audácia nos seus planos de ocupação, nem por isso foi em todos os casos bem-sucedido quando os procurava pôr em prática: veremos que só se assenhoreou de Goa e de Ormuz à segunda tentativa, que teve de ir pessoalmente a Malaca para dominar esse porto fulcral do comércio do Índico, que falhou a ocupação vital de Adém, e que não parece ter tido em grande conta que a posse de Diu era essencial para ter na mão o activo comércio de Cambaia.
O desejo de honra e a temeridade de Afonso deitaram várias vezes a perder algumas das suas acções, e puseram noutros casos em risco medidas guerreiras ou iniciativas cavaleirescas que desencadeava. A propósito da já referida arremetida contra Repelim, diz Barros: … depois fizeram outra grande entrada, por os rios acima seis léguas contra Repelim, em que Afonso Albuquerque se houvera de perder; porque, como andava desejoso de fazer por si alguma coisa, e eles partiram de noite, para que rompendo a alva da manhã, dessem no lugar, adiantou-se tanto de Francisco Albuquerque, que teve tempo para dar [isoladamente] em um lugar, o qual estava tão apercebido, que logo à saída, antemanhã, lhe mataram dois homens e feriram vinte. E ao clarear do dia as coisas complicaram-se, visto que acudiram à defesa da terra tantos homens rudimentarmente armados que Afonso não teve outra alternativa senão retrair-se (a palavra é de Barros) com os seus, decisão que, segundo o historiador, lhe salvou a vida, com a cobertura do primo e de outros capitães, entre os quais Duarte Pacheco Pereira». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, Afonso de Albuquerque, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

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segunda-feira, 14 de abril de 2014

Diogo Gomes. Navegadores. Viajantes. Aventureiros. Luís Albuquerque. «Depois disto, diz ele, no seu Conselho, o Senhor Infante dizia que para o futuro não brigassem com aquela gente naquelas regiões, mas que travassem alianças, e tratassem de comércio…»

Lisboa depressa conheceu grande crescimento
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Aprofunda-se o conhecimento Atlântico
«(…) Para traçar a história das actividades de Diogo Gomes, enquanto andou no mar, dispomos apenas de dois documentos avulsos. Um deles, que foi publicado por Silva Marques, é uma carta de quitação passada a Gonçalo Pacheco (pai de Duarte Pacheco Pereira) e a todos os seus herdeiros e sucessores; tem a data de 1 de Maio de 1546 e considera saldadas as contas que Pacheco apresentara, na sua qualidade de tesoureiro-mor cessante das coisas da cidade de Ceuta. O texto inclui uma alusão a um Diogo Gomes, na qualidade de escudeiro do rei, que pode muito bem ser o caravelista que andou pelas costas africanas, em missões de reconhecimento. O outro texto oficial é igualmente uma carta de quitação, datada de 5 de Julho de 1464; o documento está passado a favor de um Fernando Afonso, designado no texto por escudeiro da casa real e criado do infante Henrique; o diploma dá-o como desquitado de tudo o que despendera e de tudo o que recebera da herança do infante Henrique por mandado directo do rei ou por mandado do vedor da Fazenda, Fernando Castro, ou do conselheiro real, João Fernandes; o nome de Gomes ocorre isoladamente neste escrito, sendo muito provável que se trate do navegador. Todavia, a mais importante fonte de que dispomos para fazer hoje uma ideia da sua actividade é a Relação. Ele diz aí ter participado na armada de quatro caravelas em que iam por capitães Gil Eanes de Vilalobos (este último apelido aparece aqui, até onde sabemos, pela única vez), Lançarote, almoxarife de Lagos, Nuno Tristão e Gonçalo Afonso de Sintra (habitualmente tratado, nos textos históricos portugueses, por Gonçalo de Sintra). Gomes, ou Martinho da Boémia, como oportunamente foi anotado por Vitorino de Magalhães Godinho, por lapso de memória, ou, no segundo caso, por mau entendimento do que ouviu ao navegador, confunde aqui numa só viagem que Zurara descreve separadamente, e pela ordem seguinte; a primeira, em que Nuno Tristão foi o único a participar; e uma segunda, em que entraram como capitães Lançarote [de Freitas], Gil Eanes, Estêvão Afonso, Rodrigo Álvares, João Dias e João Bernardes.
Fala-se delas a partir do capítulo XXI da Crónica de Azurara; a primeira foi certamente iniciada em 1443, e a segunda, ao que parece, teve por objectivo principal a ilha de Tider, em que foram cativados cerca de meia centena de homens. Gomes alude a uma só viagem, em que ele mesmo terá participado, mas ainda como figura marítima secundária, visto que Azurara o não nomeia; em todo o caso, é nesse passo que o narrador se afirma como almoxarife de Sintra, quando alude com brevidade às peripécias que tiveram lugar no ataque a Tider: E eu, Diogo Gomes, almoxarife de Sintra, sozinho apoderei-me de vinte e duas pessoas, que estavam escondidas, e as trouxe ante mim, como se fossem reses, por meia légua até os navios. Trecho que bem merece o seguinte comentário de Magalhães Godinho: Diogo Gomes parece ter o defeito de se gabar! Na continuação, o testemunho do navegador mostra que a prática da caça ao homem, seguida no início das explorações ao longo da costa africana, era considerada claramente prejudicial ao comércio que se desejava implantar: Depois disto, diz ele, no seu Conselho, o Senhor Infante dizia que para o futuro não brigassem com aquela gente naquelas regiões, mas que travassem alianças, e tratassem de comércio, e com eles assentassem pazes, porque a sua intenção era fazê-los cristãos. E logo de imediato corrobora esta linha política; quando fala do contacto com os negros que habitavam a orla do mar para além da Terra de Tofia , diz assim: Os cristãos bem poderiam tomar alguns, e não ousavam, porque o Senhor Infante assim lhes ordenara, nem que lhes fizessem qualquer coisa nociva, e assim nada lhes fizeram. Como se verifica, o objectivo comercial, no sentido mais lato, sobrepunha-se ao desejo de capturar escravos; o que não invalidava a aquisição destes, que podiam ser obtidos por compra, como qualquer mercadoria. Vitorino de Magalhães Godinho observou que Azurara também alude a esta alteração de táctica em relação aos contactos com as populações negras, datando-a, porém, de 1448, ao passo que nesta relação é anterior ao descobrimento do Senegal, que teve lugar em 1445». In Luís de Albuquerque, Diogo Gomes, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, António Fernandes, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

Cortesia de Caminho/JDACT

Diogo Gomes. Navegadores. Viajantes. Aventureiros. Luís Albuquerque. «… nunca foi empreendido, e que certos passos dele tornaram-se fortemente suspeitos de serem simples interpolações de quem o redigiu ou de quem o transcreveu para o “Códice” em que se conserva, ou seja, do aventureiro e tipógrafo Valentim Fernandes»

Diogo Gomes. Manuscrito de Valentim Fernandes
jdact

Aprofunda-se o conhecimento Atlântico
«Diogo Gomes representa o caso típico do navegador, mercador e aventureiro português do século XV, que andou no mar desde os tempos do Infante Henrique até os do rei João II, e teve a boa sina de contar as suas aventuras ao alemão Martinho da Boémia, que as registou em mau latim para a posteridade. Digamos, desde já, que o estudo crítico desse texto (de que corre uma tradução portuguesa feita no século XIX) nunca foi empreendido, e que certos passos dele tornaram-se fortemente suspeitos de serem simples interpolações de quem o redigiu ou de quem o transcreveu para o Códice em que se conserva, ou seja, do aventureiro e tipógrafo Valentim Fernandes, também ele alemão. Com efeito, a única cópia conhecida da versão latina da narrativa, habitualmente designada por Relação, encontra-se no grosso caderno que o último alemão citado, mercador estabelecido em Lisboa, compilou para mandar ao humanista Conrado Peutinger, residente em Nuremberga; essa colectânea, que é habitualmente designada por Manuscrito de Valentim Fernandes e foi editada pela Academia Portuguesa de História, contém os mais antigos textos portugueses conhecidos para a historia das navegações portuguesas, desde uma cópia, com variantes em relação ao protótipo da Biblioteca Nacional de Paris, da Crónica da Guiné, de Azurara, até o mais antigo roteiro português conhecido (designado por Este Libro É de Rotear, palavras com que o texto se inicia), passando por uma descrição das Ilhas do Mar Oceano, pelo menos em parte também da autoria de Gomes. Aliás, deve ser acentuado que esse interesse de Peutinger pelas viagens marítimas portuguesas não é caso único. Outros humanistas europeus da época compartilharam dessa curiosidade, existindo manuscritos com descrições de uma ou de diversas viagens, que se conservam em várias bibliotecas famosas, desde a da cidade de Florença à de Bratislava.
As interpolações feitas ao nosso texto inicial por Martinho da Boémia ou por Valentim Fernandes, segundo alguns pretendem, estariam sobretudo patentes numa alusão de Ptolomeu, que o marinheiro não conheceria, e num de certo modo confuso trecho em que a Relação refere certas particularidades acerca do tipo de náutica praticada no seu tempo. Há também na narrativa lapsos e informações erradas, que seriam igualmente da responsabilidade de um dos dois alemães. Somos de opinião absolutamente contrária. Quanto a Ptolomeu, é hoje bem conhecida a voga que a sua Cosmografia (depois chamada Geografia, mais de acordo com a forma moderna) teve no século XV, e natural nos parece que o navegador dela tivesse ouvido falar, embora sem ter contacto com a obra, só conquistada para o Ocidente já naquele século; como que a confirmar este nosso ponto de vista (defendemos um conhecimento indirecto), verifica-se, de resto, que o geógrafo alexandrino é citado e criticado na Relação um pouco a despropósito. Pelo que respeita às informações acerca da arte de navegar, podemos considerá-las preciosas, pois, se não são inteiramente claras, não oferecem dúvidas na alusão que fazem à primitiva maneira de navegar por alturas de estrelas. Por último, diremos que não surpreende encontrarem-se no texto erros e deformações da verdade; se
Gomes já participava em viagens por volta de 1445, quando Martinho da Boémia chegou a Portugal, em 1484, não devia de ter menos de sessenta anos; ora a narrativa foi compilada pelo alemão depois dessa data, e talvez até nos anos finais do século XV, quando o navegador estava já em idade avançada; não espanta que a memória o atraiçoasse aqui e além, quando se refere a factos passados há dezenas de anos. Em todo o caso, é bem claro que alguns desses lapsos lhe não podem ser imputados». In Luís de Albuquerque, Diogo Gomes, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, António Fernandes, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

Cortesia de Caminho/JDACT