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A construção de um império marítimo
«A História dos primeiros tempos de presença dos portugueses na Índia
está repleta de fantasias e de excessos. Os historiadores oficiais do século XVI, ou seja, Castanheda, Barros, Correia e Góis,
empenharam-se muito frequentemente em dar da actuação dos seus compatriotas que
ali desempenharam lugares de evidência uma imagem exemplar; essa visão epopeica
dos acontecimentos teve eco poético em Luís
de Camões, mas, em muitos casos, tem de ser corrigida. Já se mostrou como
isso aconteceu a respeito de Duarte Pacheco Pereira, depois da sua
meritória actividade em Cochim; mas aqui, dir-se-á que o mesmo se verifica a
propósito de Afonso Albuquerque, a despeito de este ter sido, sem qualquer
dúvida, o mais consciente e mais determinado dos primeiros governadores da Índia.
Filho segundo de um fidalgo que era senhor de Vila Verde, Albuquerque deve ter nascido por volta de 1460; segundo os hábitos do seu tempo, quando era jovem militou nas
praças do Norte de África (em Arzila, segundo as crónicas), onde se distinguiu
pela sua determinação e pelo seu entusiasmo nas actividades guerreiras em que
esteve empenhado; neste tempo da sua juventude terá igualmente exercido
qualquer cargo subalterno na corte de João II, mas a sua vida só se tornou
verdadeiramente interessante quando foi escolhido para ir ao Oriente, em 1503. Neste ano o rei Manuel I mandou
para a Índia nove velas repartidas em três capitânias, de três velas cada uma,
tendo esses grupos como capitães-mores Francisco Albuquerque (primo de Afonso), António Saldanha e Afonso Albuquerque; tinham o encargo de
trazer especiaria oriental para o Reino, e a António Saldanha, com os dois navios
que acompanhavam o seu, competia estabelecer o bloqueio da entrada do mar
Vermelho, esperando as naus dos mouros de
Meca, com quem tínhamos guerra, segundo os dizeres de João de Barros. Tal
como este historiador fez, vamos deixar de lado a viagem de António Saldanha, e
seguiremos a actividade de Afonso nesta
sua primeira aventura no Oriente.
Ele chegou a Cochim quando seu primo já tinha actuado com êxito contra
os rebeldes ao rei local, e se aprestava para construir uma fortaleza, onde se
recolhessem os portugueses que haviam de ficar para defesa daquele pequeno reino
do Malabar, que tinha sido o primeiro a mostrar-se permeável à intromissão
dos intrusos europeus. Albuquerque tomou
sobre si o encargo da construção do improvisado fortim, deixando ao primo a
tarefa de carregar as naus; pela devoção que tinha ao santo homónimo, e também
certamente por ser cavaleiro da sua Ordem, acabou por dar à fortaleza,
construída fragilmente em madeira, o nome de Santiago. Não se limitou o futuro
e famoso governador da Índia a esta acção, aliás fundamental, na sua primeira
visita ao Oriente; invejoso do primo, quis também participar nas represálias
contra os inimigos do rei de Cochim, e juntou uma frota julgada suficiente para
ir, por via marítima, dar combate ao senhor de Repelim; essa iniciativa
foi levada a termo com êxito, mas também com dificuldades, como dá claramente a
entender Barros; o inimigo encontrava-se bem apetrechado, com fortes meios
bélicos e tropas escolhidas, para o enfrentar. Esta terá sido a primeira missão
de Afonso a denunciar a sua má estrela, como se diria nesse tempo em
linguagem astrológica; na verdade, o grande
conquistador da Índia, como é habitualmente considerado, se mostrou sempre
grande audácia nos seus planos de ocupação, nem por isso foi em todos os casos
bem-sucedido quando os procurava pôr em prática: veremos que só se assenhoreou
de Goa e de Ormuz à segunda tentativa, que teve de ir pessoalmente
a Malaca para dominar esse porto fulcral do comércio do Índico, que falhou a
ocupação vital de Adém, e que não parece ter tido em grande conta que a posse
de Diu era essencial para ter na mão o activo comércio de Cambaia.
O desejo de honra e a temeridade de Afonso deitaram várias vezes a perder algumas das suas acções, e
puseram noutros casos em risco medidas guerreiras ou iniciativas cavaleirescas que
desencadeava. A propósito da já referida arremetida contra Repelim, diz Barros:
… depois fizeram outra grande entrada,
por os rios acima seis léguas contra Repelim, em que Afonso Albuquerque se
houvera de perder; porque, como andava desejoso de fazer por si alguma coisa, e
eles partiram de noite, para que rompendo a alva da manhã, dessem no lugar,
adiantou-se tanto de Francisco Albuquerque, que teve tempo para dar
[isoladamente] em um lugar, o qual estava tão apercebido, que logo à saída,
antemanhã, lhe mataram dois homens e feriram vinte. E ao clarear do dia
as coisas complicaram-se, visto que acudiram à defesa da terra tantos homens
rudimentarmente armados que Afonso não
teve outra alternativa senão retrair-se
(a palavra é de Barros) com os
seus, decisão que, segundo o historiador, lhe salvou a vida, com a cobertura do
primo e de outros capitães, entre os quais Duarte Pacheco Pereira». In Luís
de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e
XVI, Afonso de Albuquerque, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.
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