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Aprofunda-se o conhecimento Atlântico
«Diogo Gomes representa o
caso típico do navegador, mercador e aventureiro português do século XV, que andou
no mar desde os tempos do Infante Henrique até os do rei João II, e teve a boa
sina de contar as suas aventuras ao alemão Martinho da Boémia, que as
registou em mau latim para a posteridade. Digamos, desde já, que o estudo
crítico desse texto (de que corre uma tradução portuguesa feita no século XIX)
nunca foi empreendido, e que certos passos dele tornaram-se fortemente
suspeitos de serem simples interpolações de quem o redigiu ou de quem o transcreveu
para o Códice em que se conserva, ou seja, do aventureiro e tipógrafo Valentim
Fernandes, também ele alemão. Com efeito, a única cópia conhecida da versão
latina da narrativa, habitualmente designada por Relação, encontra-se no grosso
caderno que o último alemão citado, mercador estabelecido em Lisboa, compilou
para mandar ao humanista Conrado Peutinger, residente em Nuremberga;
essa colectânea, que é habitualmente designada por Manuscrito de Valentim Fernandes
e foi editada pela Academia Portuguesa de História, contém os mais antigos
textos portugueses conhecidos para a historia das navegações portuguesas, desde
uma cópia, com variantes em relação ao protótipo da Biblioteca Nacional de
Paris, da Crónica da Guiné, de Azurara, até o mais antigo roteiro
português conhecido (designado por Este
Libro É de Rotear, palavras com que o texto se inicia), passando por uma
descrição das Ilhas do Mar Oceano,
pelo menos em parte também da autoria de Gomes.
Aliás, deve ser acentuado que esse interesse de Peutinger pelas viagens
marítimas portuguesas não é caso único. Outros humanistas europeus da época
compartilharam dessa curiosidade, existindo manuscritos com descrições de uma
ou de diversas viagens, que se conservam em várias bibliotecas famosas, desde a
da cidade de Florença à de Bratislava.
As interpolações feitas ao nosso texto inicial por Martinho da Boémia
ou por Valentim Fernandes, segundo alguns pretendem, estariam sobretudo
patentes numa alusão de Ptolomeu, que o marinheiro não conheceria, e num de
certo modo confuso trecho em que a Relação refere certas particularidades
acerca do tipo de náutica praticada no seu tempo. Há também na narrativa lapsos
e informações erradas, que seriam igualmente da responsabilidade de um dos dois
alemães. Somos de opinião absolutamente contrária. Quanto a Ptolomeu, é
hoje bem conhecida a voga que a sua Cosmografia (depois chamada Geografia,
mais de acordo com a forma moderna) teve no século XV, e natural nos parece que
o navegador dela tivesse ouvido falar, embora sem ter contacto com a obra, só
conquistada para o Ocidente já naquele século; como que a confirmar este nosso
ponto de vista (defendemos um conhecimento indirecto), verifica-se, de
resto, que o geógrafo alexandrino é citado e criticado na Relação um pouco a
despropósito. Pelo que respeita às informações acerca da arte de navegar,
podemos considerá-las preciosas, pois, se não são inteiramente claras, não
oferecem dúvidas na alusão que fazem à primitiva maneira de navegar por
alturas de estrelas. Por último, diremos que não surpreende encontrarem-se
no texto erros e deformações da verdade; se
Gomes já participava em
viagens por volta de 1445, quando
Martinho da Boémia chegou a Portugal, em 1484,
não devia de ter menos de sessenta anos; ora a narrativa foi compilada pelo
alemão depois dessa data, e talvez até nos anos finais do século XV, quando o
navegador estava já em idade avançada; não espanta que a memória o atraiçoasse
aqui e além, quando se refere a factos passados há dezenas de anos. Em todo o
caso, é bem claro que alguns desses lapsos lhe não podem ser imputados». In Luís
de Albuquerque, Diogo Gomes, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses,
Séculos XV e XVI, António Fernandes, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.
Cortesia de Caminho/JDACT