Introdução
«Há uma promessa judaica que garante: no fim dos tempos, quando assomar
o Filho do Homem em toda a sua glória, ele esclarecera, não apenas o sentido
escondido das palavras da Escritura, mas também o do espaço em branco que
existe entre elas. Talvez, porque a global apreensão de um sentido nos remeta
sempre para essa escatologia, dos grandes textos da nossa cultura, o Cântico dos Cânticos, colocando-se entre
os mais obstinadamente lidos e comentados, não deixou de ser nunca um território
inapreensível, um corpo obscuro. É verdade que explorando os fenómenos de
intertextualidade se descobrem os segredos fechados das correspondências. Mas a
correspondência que significa?
Relação, cortejo, dependência,
conhecimento? Ou o contrário disso?
Ou outra coisa além de tudo isso?
Assim, parece-nos muito importante cruzar o Cântico
dos Cânticos com as literaturas vizinhas. Do Egipto, como recomendam
numerosos exegetas desde Teodoro de Mopsuéstia. E dois documentos ofuscam-nos
com similitudes perturbantes: os textos contidos no Papiro Harris 500,
publicados por Maspero em 1883,
e os Cantos da grande alegria do coração,
do Papiro Chester Beatty I publicado, já neste século, por Gardiner. Derivará,
por isso, o nosso livro das canções de
divertimento egípcias? Teodoro de Mopsuéstia tinha razão quando o
descrevia como encenação literária das núpcias
de Salomão com uma filha do faraó?
[…]
Só muito tarde se permitiu considerá-lo naquilo que ele é: epitalâmio, canto
de admiração e de amor trocado por uma mulher e por um homem, sussurro de
amantes. Mapa instável, sempre a ser refeito, cartografia de um grande amor
desencontrado, da solidão que os amores muito grandes proporcionam, do assalto
violento ou, afinal, ténue ou do assombro ténue e, depois, e logo depois,
turbulento, terrífico do amor. Só muito tarde se leu a noite e o desejo, o
corpo nomeado, perseguido, suplicado, o jardim entreaberto, a prece atendida. É
este o sentido natural do Cântico dos
Cânticos. E, porque não se teme enunciar o sentido das palavras, é que nos
podemos abrir à revelação escatológica do silêncio guardado entre elas. (Texto original hebraico, e que acompanha
a tradução, é o fixado na 3.ª edição da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, de 1987)».
Cântico dos Cânticos de Salomão
beije-me com os beijos da sua boca
melhores tuas carícias do que vinho o
aroma dos teus perfumes é melhor
tua fama é odor que se derrama por isso as raparigas amam-te
arrasta-me atrás de ti corramos fez-me entrar o rei em sua penumbra
folgaremos e alegrar-nos-emos contigo lembrar-nos-emos de teus amores
mais que do vinho
com razão as raparigas amam-te.
In José Tolentino Mendonça, Cântico dos Cânticos, tradução do hebraico,
Edições Cotovia, Lisboa, 1997, ISBN 972-8028-68-7.
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