domingo, 20 de abril de 2014

Damião de Góis. The Life and Thought of a Portuguese Humanist. Elisabeth F Hirsch. «… insistia em que os príncipes e, supõe-se, os cortesãos, lessem regularmente as velhas crónicas. Por isso Damião aprendeu um pouco da disciplina a que mais tarde iria dedicar as suas energias de escolar, e começou a ter uma concepção da historiografia como ciência»

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A Corte de Manuel I
«(…) Enquanto se formava o carácter intelectual de Góis também se desenvolviam os seus interesses culturais. O rei Manuel I devia ter sido um professor sagaz que pelo exemplo e pelo entusiasmo foi capaz de despertar as capacidades latentes do discípulo. As inclinações de Góis harmonizavam-se com as predilecções pessoais do rei, e a personalidade do jovem desabrochava plenamente na atmosfera do palácio real que tão conforme era à sua própria índole. O tom da corte, alegre e despido de formalidades, tornou-se parte da atitude e do modo de vida de Góis. Como um príncipe típico da Renascença, Manuel I patrocinava múltiplas actividades culturais e espirituais. Assim, por exemplo, manifestava piedade religiosa deplorando abertamente os abusos verificados durante o pontificado de Alexandre VI. As comédias e farsas do maior dramaturgo português da época, Gil Vicente, famoso pela crítica social que incluía a censura severa da Igreja e das ordens religiosas, eram apresentadas regularmente na corte. É possível que Góis tivesse ganho o gosto pela discussão franca de pontos controversos de religião através de Gil Vicente, muito antes de se ter familiarizado com o Elogio da Loucura de Erasmo, mas os seus escritos não mencionam o nome do dramaturgo.
É provável que as peças ou autos de Gil Vicente tenham sido especialmente aliciantes para Góis pelos trechos musicais que continham. Embora Damião fosse sensível a todas as artes, era pela música que se exprimia o seu talento criador. A boa sorte de Gois quis que o rei fosse amigo da música, mantivesse uma capela excelente, e não só apreciasse a música nas horas de lazer mas também pedisse com frequência aos seus músicos que tocassem enquanto trabalhava. Gois familiarizou-se com vários instrumentos e tocava alguns. Ouviam-se os tons suaves da espineta, da harpa ou do violino nas reuniões sociais de maior intimidade, enquanto que a flauta ou o tamborim eram fontes de distracção ou de música de dança. Usavam-se o tambor e o trombone nos desfiles militares, e a trombeta nas funções de cerimonial.
Góis distinguiu-se como executante do clavicórdio, do címbalo e da cítara, e é possível que nessa época tenha tentado compor na tradição dos famosos músicos flamengos Ockeghem e Josquin. Embora não haja a certeza quanto às datas das suas composições, na juventude manifestou preferência pela polifonia. Manuel I, como Góis nos conta na crónica do monarca, procurava atrair à corte os melhores músicos da Europa e do além-mar; devem ter sido incluídos representantes da música polifónica, visto que esse género de música se tinha espalhado em muitos países e era popular na vizinha Espanha, em especial na Universidade de Salamanca e na corte de Carlos V. Durante a permanência de Góis no palácio, Manuel I pôs em prática um ambicioso programa de construção que só foi igualado pela reedificação de Lisboa por Pombal após o terrível terramoto de 1755. Os olhos de Gois cedo se treinaram a distinguir a obra do artista autêntico da de imitação inferior. Tornou-se um coleccionador entusiasta de quadros e acabou por ser conhecido pela sua colecção de obras de grandes artistas contemporâneos.
Por se preocupar com as artes, o monarca não mostrava interesse por reformas na esfera académica, embora elas fossem bem precisas, e em consequência Damião não teve no palácio grandes oportunidades para adquirir conhecimentos da literatura da Antiguidade. Apesar disso, contudo, recebeu bastante encorajamento nas suas primeiras mostras de interesse pela história. Manuel I tinha um grande sentido da tradição, e foi no seu reinado que começou a enfadonha tarefa de se pôr ordem nos Arquivos Nacionais, tarefa que seria continuada muitos anos mais tarde pelo próprio Góis. Para mais, Manuel I insistia em que os príncipes e, supõe-se, os cortesãos, lessem regularmente as velhas crónicas. Por isso Damião aprendeu um pouco da disciplina a que mais tarde iria dedicar as suas energias de escolar, e começou a ter uma concepção da historiografia como ciência». In Elisabeth Feist Hirsch, The Life and Thought of a Portuguese Humanist, The Hague Netherlands, 1967, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, ISBN 972-31-0677-9.

Cortesia de FCG/JDACT