Viriato. O nosso avô
«(…) É provável que nas encostas e chãs começassem a cultivar de
sachola o centeio e outros cereais rústicos, e que a vinha, mais ou menos
selvagem, rubescesse ao Sol das escarpas, e pisassem a uva nas lagaretas,
talhadas a picão na rocha viva das penhas. Mas o principal da alimentação
consistia na caça, alguma coisa na pesca, sem falar no provimento subsidiário
de currais e pocilgas, reservado como hoje aos privilegiados. Sem embargo, não
será temerário supor, pelos sinais que se enxergam nas ruínas neolíticas e
mesmo proto-históricas, como sejam os olhais perfurados no lajedo, que o mais
pária possuísse a sua cabrinha e até uma vaca. Forneciam-lhe o leite, e ele
iria apascentá-las pelas rampas, presas por um vencilho de giesta ou de palha,
ao passo que as guardava tão bem do lobo e do urso como do salteador. Reza
Estrabão que a carne de cabra era uma das suas comidas predilectas. Presume-se
com muitas probabilidades de acerto que não fosse nada pestinheiro em matéria
de boca, e que tanto lhe servisse o cabrito como o borrego, a lebre ou qualquer
bicho do monte. As aves de capoeira seriam manjar de mulher parida. A era dos
Vitélios estava ainda para amanhecer para lá de muitas rotações dos astros.
Os povoados alcandoravam-se nos altos desabridos, e compreende-se. O
primeiro requisito que o homem exigia do seu tugúrio era a de situação
desassombrada: vista larga, terra escampa, caminhos descobertos. Aqueles nossos
longínquos antepassados, quando não andavam a ferro e a fogo, viviam em guerra
lassa uns com os outros. Para Trás-os-Montes existe um castro chamado de Mau
Vizinho, que pode ter-se como paradigma. Em verdade todos tinham maus
vizinhos no seu próximo. Se alguma vez as tribos se concertavam entre si, era
quando o inimigo externo acampava já nos eidos e estava iminente o extermínio.
Assim, os povos celtibéricos, na resistência a Roma, apenas se uniram aos
lusitanos à hora extrema e quando já não havia salvação possível. São provas
deste instinto de rixa e de irredutibilidade os ódios, malquerenças, brigas,
que se dão ainda hoje entre aldeias sertanejas limítrofes, nutrindo-se às vezes
do mesmo rio e do mesmo monte. Olim, o rapto das Sabinas
constituiria porventura o vulgar casus belli entre as tribos. Hoje só
por retorno atávico de rancores tão específicos se explica a latente
animosidade.
Este estado de beligerância entre os nossos avós vinha de resto de
longe, de sempre, que lá estão a atestá-lo certos dólmenes a céu aberto com seu
cemitério de maxilares partidos, crânios arrombados, dentes em astilhas, devido
a outros agentes que não à compressão natural do terreno. Os castros, que se
afigura nada terem que ver com a arte de construção militar romana, eram
lugares de defesa civil e compunham-se de grossas muralhas, por vezes duas e
três, concêntricas à cividade propriamente dita. Um primeiro ândito tinha em
mira proporcionar refúgio imediato, mal soasse o alarme, a rebanhos e pessoas
surpreendidas fora do campo entrincheirado. A parte residencial era por assim
dizer o último reduto com suas casotas circulares, a fonte, e os celeiros que
deviam ser escassos. A citânia de Besteiros e de modo mais complexo a citânia
do Monte de Santa Tecla elucidam-nos sobre estes particulares. A Cava de
Viriato, subjacente ao morro em que assenta a Viseu antiga, em vez de
acampamento militar, formaria um imenso redil para os rebanhos em caso de
emergência». In Aquilino Ribeiro, Príncipes de Portugal, Suas grandezas e misérias,
Livros do Brasil, Lisboa, 1952.
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