quinta-feira, 17 de abril de 2014

Hegel. A Justificação da Filosofia. Manuel Carmo Ferreira. «… o que de imediato suscita duas questões: qual a natureza da experiência intelectual que constitui essa transferência de interesse profundo e qual a exigência que desencadeou o destino do pensar que se reivindica do estatuto de Ciência e, como tal, se justifica?»


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A Decisão pela Filosofia. Natureza do impulso para a Ciência
A vontade de intervenção na vida dos homens
«(…) Ao descrever a situação presente, Hegel insiste numa nota a que já se aludiu por diversas vezes e que se revela fundamental para a inteligibilidade dos novos rumos do seu pensamento: a consciência expressa do carácter instante da decisão pela Filosofia, a imperatividade da mudança, ele tinha de ser impelido para a Ciência, o ideal da juventude tinha de transformar-se na forma da reflexão. Esta coerção ab intra é uma exigência, e uma urgência, simultaneamente de ordem pessoal e em referência à génese da própria atitude científica. Mas é também um apelo da situação histórica. No prolongamento desta dinâmica, desta eficácia oculta que orienta a sua formação e que provoca a alteração dos princípios rectores da sua existência, entronca a perspectiva do futuro: como agir no plano da história imediata, que tipo de participação, justificada por que razões e dirigida a que fins?

Pergunto-me agora, enquanto me ocupo ainda disso, que retorno se tem de encontrar para intervir na vida dos homens.

Seria condenar-se a uma incompreensão irremediável entender que Hegel se interroga aqui por uma aplicação, por uma tradução instrumental da Ciência, por uma exploração do sistema na acção imediata. O retorno a que a carta se refere não é uma consequência exterior ou posterior à decisão pela Ciência, mas uma explicitação, um desentranhar da razão de ser da necessidade que a ela conduz e que ela satisfaz, a afirmação do saber por si mesmo, o qual, como afirmação absoluta, é autodeterminação, intervenção livre, trabalho essencial. A razão do intervir consistirá no estabelecer dos fundamentos da legitimidade do saber. Tal irá ser a função pedagógica que Hegel reivindicava para o seu labor intelectual desde os tempos recuados de Tubinga, uma vez descoberta a Filosofia como a definitiva e mais radical pedagogia da vida. A Ciência é o reconhecimento do absoluto da razão e da liberdade, suprema iniciativa em que a vida dos homens supera o que nela há de morto, toda a cisão,

o sentimento da contradição da natureza com a vida existente é a necessidade

que urgia resolverl. Por isso, o caminho procurado para a intervenção na vida dos homens confundir-se-á com o caminho para a Ciência. O primeiro escrito de Iena confirma esta interpretação: a Filosofia torna-se imperativa e inadiável, quando a cisão se torna insuportável na esfera da existência, como compreensão e acção reunificadoras, como reconciliação da vida cindida de si mesma. O verdadeiro eixo sobre o qual gira toda a evolução de Hegel, tal como esta carta a deixa delineada, é o primado do ético.

A Razão Infeliz. Fenomenologia e dialéctica da crise
Francoforte representa o momento crítico em que se impõe a Hegel a necessidade de abandonar o ideal da juventude, através de uma decisão pela Filosofia sistemática, o que de imediato suscita duas questões: qual a natureza da experiência intelectual que constitui essa transferência de interesse profundo e qual a exigência que desencadeou o destino do pensar que se reivindica do estatuto de Ciência e, como tal, se justifica? Sobre a natureza da crise, dispomos de informações fornecidas pelo próprio Hegel que designa tal situação peculiar, complexa na sua componente afectivo-intelectual, obscura nas suas raízes e localizada por ele no tempo de uma forma imprecisa, por hipocondria. Não é de modo algum pacífica a interpretação desse período que precede Iena, ou de parte dele, como constituindo uma vivência particularmente agudizada e que se deixasse adequadamente conter nesta expressão hipocondria; seria antes em Berna que Hegel experimentaria algo de semelhante a uma grave tensão pessoal, inibidora de reflexão e da acção, que o obrigaria a uma muito ampla reformulação das perspectivas filosóficas que eram então as suas. Tal é, nomeadamente, a convicção de Pöggeler, um investigador particularmente orientado para o estudo da evolução hegeliana até à publicação da Fenomenologia. Se remonta a Dilthey a percepção desta fase como a de uma viragem abrupta, num clima de acentuada crise pessoal, é, no entanto, Rosenzweig o primeiro a tomar o tema da hipocondria como uma chave de leitura privilegiada, insistindo no factor existencial, Hegel seria uma bela alma, em estado de rompimento radical com o seu tempo; a génese de uma solução especulativa ocultar-se-ia nesse conflito e o princípio desta, a reconciliação com o destino, o mundo e a história no saber sistemático, só no fim do período de Francoforte seria encontrado. Numa linha interpretativa totalmente diferente, quanto aos pressupostos, Lukács retoma, porém, parcialmente (nos dois sentidos do termo), esta tese». In Manuel Carmo Ferreira, Hegel, E A Justificação da Filosofia (Iena, 1801-1807), Estudos Gerais, Série Universitária, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, ISBN 972-27-0516-4.

Cortesia INCM/JDACT