sábado, 26 de abril de 2014

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «Que haveria eu de fazer na cama com Marfisa, ‘a não ser olhar para ela e procurar umas metáforas?’ Um soneto também, talvez: mas vamos lá a ver quem é o valentão que se atreve a pintar…»

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«(…) Sem a largar, passou com ela por uma porta de grandes almofadões e levou-a pelos frescos meandros do mosteiro. Através de uma janela, verdejavam as plantas do jardim e ouviam-se os trinados das avezinhas, recolhidas naquela frescura. A madre rodeira ficou a pensar por que razão metia a abadessa um mancebo tão formoso na clausura, mas, como outras tantas coisas que não entendia, afugentou a pergunta do seu espírito. Também tinha calor, e naquela solidão era-lhe permitido arregaçar o hábito e refrescar um pouco a entreperna com o ar que entrava por algum orifício.
Por causa do calor, as pessoas tinham deixado a capa em casa. Abanavam-se com o que tinham mais à mão, e muitos apareciam ligeiramente esgoleirados, peitos peludos de machos excessivos, uns de preto, outros de cinzento. Os grupos tinham-se reunido aqui e além, sobre os degraus, ou no meio do átrio, ou aos cantos, até pisarem as próprias pedras do limiar sagrado. Clérigos de barretes pontiagudos iam de cá para lá. E o sol batia com força. O círculo mais concorrido rodeava Lucrécia, bem tapada, que por vezes levantava uma ponta do véu e pedia ao mais próximo que lhe soprasse no pescoço suado. Tinha contado já a aventura de sua ama com o rei, e começava a descrever com abundância de pormenores a sua com o conde, mas essa não interessava tanto à assistência. - Com que então quatro pecados mortais? - E uma nega. - Pois quatro na mesma noite é o limite que os teólogos põem aos exageros da carne. - Sabes lá se foram quatro! Tu não estavas lá. - Mas sei-o de boa fonte. - E nós sabemos que Marfisa é devota da monarquia. Como havia ela de deixar mal o monarca? Quator eadem nocte é um número que abona qualquer um.
 - Para mim, a única coisa crível é a nega - disse um padre narigudo e entrado em anos. - O resto são fantasias de Marfisa, que abonam, mais do que a sua fidelidade às instituições, o seu orgulho profissional. Para uma mulher como ela, menos de quatro pecados capitais não seria nada. Ocorrem-me uns versos... - Diga-os lá, padre Luís, se é que os tem na mente! - Só quatro, de momento, que podem ser os primeiros de uma décima:

Con Marfisa en la estacada
entraste tan desguarnido,
que su escudo, aunque hendido,
no pudo rajar tu espada.

(Com Marfisa na estacada / entraste tão desvalido, / que seu escudo, inda fendido, / não pôde rachar tua espada.)

- Muito bons, padre Luís! Prometem uma décima imortal! - O que diz o padre é uma ignomínia. O rei pecou quatro vezes e, à quinta, adormeceu. Pobrezinho! Convém não esquecer que, além de rei, é um rapaz. - Tu cala-te, alcoviteira. Por que havemos de acreditar em ti, e não no padre  Luís? É homem de experiência. - Gostaria de saber que faria ele na cama com Marfisa. O chamado padre Luís ergueu as sobrancelhas e sorriu tristemente. - Tem razão, a moça. Que haveria eu de fazer na cama com Marfisa, a não ser olhar para ela e procurar umas metáforas? Um soneto também, talvez: mas vamos lá a ver quem é o valentão que se atreve a pintar, ainda que seja em verso, uma mulher nua! E fez com as mãos um sinal alusivo à Santa Inquisição (maldita).
Foi nesse momento, talvez, ou talvez um pouco mais tarde, que alguém recém-chegado armou rebuliço noutra roda, um rebuliço descomunal que deixou Lucrécia sem clientela e, de momento, sem continuação a décima do padre Luís. O recém-chegado jurava pelos seus mortos que o rei, havia nem uma hora, à saída da missa, tinha expressado aos gritos, e sem a menor precaução, que desejava ver a rainha nua. Desejo, disse, ou quero? Porque não é a mesma coisa». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da Caminho/JDACT